Cristianismo e Liberalismo, de Gresham Machen (Resenha)

Perto de completar 100 anos, o livro Cristianismo e Liberalismo, escrito pelo professor de Novo Testamento do Westminster Theological Seminary, J. Grechan Machen (1881-1937), e relançado em português em 2012 pela Editora Shedd Publicações, permanece como um raro caso de livro-resposta que, tendo sido escrito para lidar com um tema em efervescência no começo da década de 1920, o liberalismo teológico, é ainda hoje de imensa relevância, pois lida com temas que tocam o cerne da fé cristã. Machen, aliás, argumenta que a importância de seu estudo está justamente neste ponto: ele lida com o conteúdo da fé cristã; um conteúdo que é ancorado na história e é “baseado em fatos, não em aspirações”. Assim, seja o leitor um erudito da teologia, um ministro cristão ou mesmo um cristão interessado em aprofundar-se em doutrina, o seu proveito é certo. A leitura deste livro também se provará útil ao leitor em seu exercício de discernimento, ajudando-o a distinguir a fé cristã de uma das mais agudas e ameaçadoras falsificações que já surgiu nos últimos 2000 anos de cristianismo: o liberalismo teológico.

O liberalismo surgiu na esteira da modernidade e das grandes revoluções dos séculos XVIII e XIX, tendo como um grande preceptor o Iluminismo. O avanço da ciência parece ter colocado em “xeque” algumas das principais reivindicações da fé cristã – particularmente aquelas que dependiam de fenômenos supernaturais. Machen demonstra que, conquanto o “movimento liberal” tenha assumido várias facetas e desenvolvido-se a ponto de não poder ser definido em termos monolíticos, “a raiz do liberalismo está no naturalismo, ou seja, na negação de qualquer intervenção do poder criativo de Deus”. Mas Machen mostrará que o liberalismo não é “cristianismo e nem científico”, embora ele valha-se de métodos da ciência para (tentar) reformular as proposições fundamentais da fé cristã.

A era “moderna”, tão fundamental na gestação do liberalismo, fez promessas de progresso e maturidade do ser humano, propondo que a razão o livraria de sua alienação. O filósofo do iluminismo Nicolas de Condorcet é alguém que expressa muito bem o espírito dessa época. Em seu quadro histórico do espírito humano, ele falou sobre o “aperfeiçoamento real do Homem” e disse que “Chegará assim o momento em que o sol iluminará sobre a terra homens livres, não reconhecendo outro mestre além da sua razão” [1]. O otimismo no homem e na ciência que marcou o nascimento do liberalismo sofreu um enorme baque e foi fortemente desacreditado após a ruína de seus pilares e prognósticos de prosperidade e paz, particularmente com o advento de duas grandes guerras, além do declínio moral e das revoluções culturais do século XX; todavia, o liberalismo achou um jeito de sobreviver, adaptando-se e resistindo, como uma periplaneta americana (o inseto conhecido também como “barata”) resiste a 10x mais radiação que o homem, e achou nas características dos tempos pós-modernos um ambiente propício para o exercício livre de suas propugnações.

Assim sendo, foi com bastante pertinência que o ministro presbiteriano Dr. Augustus Nicodemus definiu o liberalismo em seu artigo Sobre Liberais, Parasitas e Neo-Liberais:

O liberalismo teológico nasceu, alimentou-se e viveu como um parasita, usando o corpo, as energias, os recursos e a vida das organizações eclesiásticas fundadas e financiadas por conservadores. Os primeiros liberais eram ministros de denominações conservadoras – embora já minadas pelas idéias do Unitarismo e do Iluminismo – de onde tiraram seu sustento e onde ganharam respeitabilidade. Mesmo que tenham mudado suas crenças, não largaram o corpo de onde se alimentavam. Pois não teriam para onde ir.

O liberalismo nunca plantou igrejas, nunca aumentou número de membros e nem a receita financeira das igrejas. Só conseguiu reproduzir outros liberais, os quais por sua vez precisavam também sobreviver. O liberalismo teológico sempre teve que achar um hospedeiro que pudesse sugar até que o mesmo morresse, drenado. Hoje assistimos aos estertores mortais das últimas denominações históricas na Europa e nos Estados Unidos que um dia o abrigaram.

O Dr. Machen aponta para a mesma direção, ao notar que “o professor de teologia (liberal), no mais profundo de seu coração está consciente do radicalismo de seus pontos de vista, mas permanece firme na sua decisão de não perder seu lugar na atmosfera da santa igreja ao expor tudo o que pensa”.

A partir deste ponto, Machen passa a demonstrar que, realmente, o liberalismo é uma outra religião, distinta do cristianismo. Ele mostra essa distinção em algumas áreas fundamentais: A doutrina de Deus; antropologia; revelação; Cristo; salvação e a Igreja.

O liberalismo é uma doutrina. É uma doutrina que abandonou e rejeita o evangelho mas que possui um arcabouço teológico robusto; tem propostas teológicas; tem formulações doutrinais. Embora curiosamente o teólogo liberal afirme ser avesso à doutrina e proponha uma volta “à pessoa de Cristo” e um “estilo de vida como o de Cristo”, permanece o fato de que seu sistema de rejeição ao cristianismo histórico exige uma nova formulação. Essa nova formulação, ao rejeitar a doutrina cristã ortodoxa a priori, precisa também rejeitar os apóstolos, as Escrituras, os pais da Igreja, os credos e confissões de fé históricos. Não sobra muita coisa.

A fé cristã, todavia, reconhece que o “estilo de vida cristão”está ancorado na mensagem cristã. Não podemos voltar à pessoa de Cristo se não sabemos quem é essa pessoa e o que ela ensinou. Afinal, é a mensagem de Cristo que faz Cristo ser nosso.

Embora o liberalismo se coloque como um desenvolvimento do cristianismo, suas propostas têm pouco contato com os mais básicos postulados cristãos. Esse contato se dá, especialmente, quanto ao aspecto ético. Ambos partilham de valores e esforços humanitários comuns – mas os elementos epistemológicos que permitem formular essa ética comum são radicalmente distintos.

O liberalismo ainda não aceita a ideia de revelação divina, nas Escrituras. Contra essa denegação, o teólogo e filósofo norte americano Francis Shcaeffer, argumentou em sua importante obra “O Deus que se revela” que Deus existe e é um ser pessoal, perfeito, infinito e que não está em silêncio, antes, se deu a conhecer ao homem através da revelação que fez de si mesmo. Esse entendimento de Schaeffer é vital ao cristianismo: Deus se deu a conhecer aos homens pela criação e sustentação do universo e, ainda mais, por sua revelação especial, nas Escrituras – de modo que o padrão de beleza, perfeição, infinitude, bondade e santidade se vêem em Deus.

Esse entendimento difere radicalmente do conceito de Deus dos liberais. Esses fazem afirmações tão vagas de Deus que arruínam sua transcendência, aproximando-se perigosamente do panteísmo além de generalizar de modo grosseiro a relação pessoal que Deus estabelece com os homens com sua ideia da paternidade universal.

Quando se tem uma noção errada de quem Deus é, tudo o mais que se segue na teologia será irreparavelmente defeituoso. É como começar a abotoar um casaco na casa errada; todos os que seguem serão errados também. Por exemplo, a partir da visão vaga e panteísta de Deus, é possível supor que o homem é resultado de processos evolutivos naturais e que se encontra em evolução ainda. Nada se fala sobre o pecado e a necessidade de expiação; aliás, no liberalismo, não há consciência do pecado – mas, ao eliminar o pecado da vida humana, elimina-se também a necessidade do Evangelho e de salvação. Os liberais não têm problema com isso. Cristo não é salvador do homem, é exemplo a ser seguido e deve ter sua fé e vida imitadas. Não se fala em milagres, em ressurreição dos mortos, em mundo vindouro, Céu ou Inferno. Tudo o que Cristo fez, segundo o liberalismo, foi ensinar sobre a paternidade universal de Deus e ser um grande ser humano. Essa é a essência do liberalismo.

Mas, se existe alguma coisa chamada pecado, então existe uma lei que foi quebrada para que o pecado seja pecado. É preciso que haja um legislador santo que foi ofendido pela transgressão da sua lei. É preciso que haja também algo chamado justiça, que precisa ser satisfeita. Isso é o que o cristianismo ensina. Ensina que para que a justiça de Deus fosse satisfeita sem que isso representasse a condenação de todos os homens, Deus, por grande amor, enviou seu filho, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, para que ele vivesse a vida que o homem devia viver e sofresse a pena dos pecados dos homens, morrendo na cruz, e assim satisfizesse a justiça de Deus. Alguém que ressurgisse dos mortos para completar sua obra e ascendesse ao Céu, para de lá governar o mundo e a igreja. Isso é evangelho. Isso é salvação. Isso é o que formou os primeiros discípulos – que deram sua vida por essa mensagem – e é o que formou a igreja. Igreja que é habitada pelo Espírito de Deus e que aguarda a volta triunfante e visível de Jesus Cristo. Isso é cristianismo.


[1] Condorcet, Quadro dos Progressos do Espírito Humano (1793)