Um blog do Ministério Fiel
O declínio da amizade e a cultura do cancelamento
*Este artigo é um resumo da palestra de Jonas Madureira proferida na Conferência Fiel Jovens Interativa 2020.
A amizade é objeto de reflexão tanto de cristãos quanto de pagãos, sendo um tema que atinge as mais diversas vivências em todo mundo. É possível pensar na amizade muito antes do advento do cristianismo em si. Entre o pensamento grego, Aristóteles considerou, em uma de suas obras, quatro aspectos de uma vida virtuosa: prudência, justiça, coragem e a temperança. E, tratando sobre a amizade, ele define três tipos de amizades: 1. no sentido utilitário (o amigo é útil para você); 2. no sentido afetivo (o amigo como alguém que faz bem); 3. no sentido virtuoso (a amizade verdadeira, que só pode ser vivida por pessoas virtuosas nos termos propostos anteriormente). Esta última, segundo ele, independe de utilidade ou afeto e, por isso, é tão rara. No pensamento romano, Sêneca, um filósofo do séc. I, escreve cartas relacionadas à ética, de forma similar a Aristóteles, e também trata da amizade ressaltando que a plena confiança é a base da amizade. Assim vemos a influência greco-romana e chegamos a um conceito de amizade verdadeira como aquela entre pessoas virtuosas que confiam uma na outra.
O cristianismo, por sua vez, acrescenta características ao conceito de amizade, a ponto de ser possível dizer que a visão de Aristóteles e Sêneca é, no mínimo, ingênua. A palavra de Deus, a fala de Jesus sobre a amizade, tem o poder de nos fazer repensar esse conceito, não que ele esteja totalmente errado, mas que pelo menos um de seus pontos é falso, defeituoso.
Há uma diferença conceitual: Jesus propõe o amor como a base da amizade. Mas não o mero amor, e sim o amor sacrificial. “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos.” (Jo 15.13). O Evangelho nos ensina que o olhar pagão acerca da amizade não consegue contemplar a visão ingênua do homem como alguém virtuoso. O Evangelho traz uma visão mais realista. O cristianismo ensina que é possível amar um traidor e chamá-lo de amigo. E vai além: a amizade pode ser cultivada por pessoas quebradas e defeituosas que lutam para ser o que Cristo quer que sejam.
Então, em um mundo em que muitos não se preocupam com perseguir virtudes ou em confiar nos outros, resta submeter-se àqueles dois tipos de amizade: a utilitarista ou a afetiva. Só nos relacionamos com pessoas que possuem a mesma opinião, jamais com quem nos desagrada, ou quem nos dá prejuízo com seus problemas e suas dores. O declínio da amizade se dá porque não temos mais esperança de que é possível que as pessoas sejam virtuosas, tampouco acreditamos que o amor sacrificial seja a base que pode nos unir às pessoas ao nosso redor.
Agora considere a cultura do cancelamento, algo muito comum no meio das mídias sociais. É algo experimentado por alguém que falou algo considerado errado pela maioria e recebe inúmeras críticas. É como um “linchamento” virtual: colocar em uma só pessoa a responsabilidade por todo um estado de desordem. Em uma sociedade evoluída, o linchamento é visto como algo primitivo, temerário e irracional. Mas a mesma lógica do linchamento pode acontecer até mesmo no dia a dia, quando se descarrega em alguém uma violência que não se contém. Pode nem sempre ser através de violência física, mas também com palavras. Apenas se deseja livrar-se da culpa em um bode expiatório, escolhendo um culpado para toda a situação.
O cancelamento, com sua “cultura de gado”, tenta juntar pessoas para si, contaminando e contagiando outras pessoas. Mais terrível do que a pandemia que corrói o corpo é esta pandemia que corrói a alma e nos faz gigantescamente violentos enquanto achamos que estamos defendendo algo publicamente.
Frequentemente não se enxerga o que está por trás da cultura de cancelamento: os atos e afeições religiosos. Ela reproduz um contágio em grupo que se alastra rapidamente, através de uma pequena fofoca de alguém que não gostamos, por exemplo. Essa lógica é demoníaca pois não percebe a busca pela paz de um jeito errado, descarregando a violência.
Qual a relação entre o declínio da amizade e a cultura do cancelamento? Sendo as amizades definidas pela utilidade ou pela afinidade, e entendendo que os cancelamentos se justificam com justiça própria, falta consciência de que todos somos quebrados.
Jesus é o exemplo maior de amizade não baseada em utilidade ou afinidade, dando sua vida por homens maus, e não por homens equilibrados e virtuosos. É isso que nos causa espanto, que nos escandaliza. Jesus nos salva sendo nós pessoas quebradas. Ele sabia que seus amigos não eram virtuosos. A questão não é se você possui amigos úteis ou que dão prazer, mas se você possui consciência de que eles são quebrados assim como você, que ora vão te negar ou te trair.
Por fim, Jesus revela o aspecto religioso da cultura do cancelamento quando ele mesmo se submete ao mecanismo da violência de uma multidão que, sabendo que ele era inocente, escolheu salvar o bandido, chamando Jesus de inimigo. Jesus, por sua vez, salva seus amigos, ainda que estes sejam os verdadeiros bandidos.