Justificado para o bem

Paulo e Tiago sobre fé e obras

Resumo: Paulo escreve: “o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”. Tiago escreve: “uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente”. Como os cristãos podem entender essa tensão no ensino apostólico? A mensagem de toda a Bíblia sobre fé e obras traz clareza ao relacionamento entre Paulo e Tiago. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento afirmam a justificação pela fé somente ao lado da necessidade de boas obras. Ambos os Testamentos, da mesma forma, alertam sobre a fé falsa e boas obras duvidosas. As mensagens de Paulo e Tiago, então, embora paradoxais à primeira vista, juntas dão testemunho do ensino consistente de que Deus nos justifica pela fé, não pelas obras – e que a verdadeira fé salvadora persevera na obediência fiel.

Se você já é cristão há algum tempo, provavelmente já passou algumas horas refletindo sobre a relação entre fé e obras. Em Romanos 3.28, Paulo declara que somos “justificados pela fé, independentemente das obras da lei”. Isso parece simples. A justificação é somente pela fé. Mas então, em Tiago 2.24, lemos: “uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente”. Como, então, qualquer pessoa racional poderia aceitar esses dois? Essa tensão – o que alguns chamam de contradição – tem sido uma questão perene ao longo da história da igreja cristã. Volume após volume tem sido escrito sobre a relação entre fé e obras, mas continuamos a tropeçar nessa tensão. Portanto, será útil para nós revisitarmos esta questão e perguntar como podemos aprimorar nosso entendimento de todo o ensino da Bíblia sobre este importante assunto.

Não quero fingir que podemos responder a todas as perguntas neste pequeno ensaio, mas no que segue, vamos percorrer uma série de princípios claros que a Bíblia nos ensina sobre fé e obras. Percorreremos vários círculos mais ou menos concêntricos, começando com afirmações mais amplas e trabalhando em direção às mais específicas. Ao examinarmos esses princípios, vamos deixá-los sob tensão no início, mas aos poucos vamos juntá-los. Por meio desse processo, veremos o quadro geral da fé e das obras em toda a Bíblia, o que também nos ajudará a ver como Tiago e Paulo se relacionam neste importante tópico e, finalmente, como essas tensões devem ser vistas à luz de nossa união com Cristo. Em outras palavras, examinaremos as evidências bíblicas e perguntaremos onde os pontos de tensão podem realmente nos ajudar a obter mais clareza sobre o que a Bíblia ensina sobre fé, obras e justificação.

Uma definição funcional de justificação nos ajudará a estruturar nossa discussão no futuro. Começaremos com a definição de justificação que J.I. Packer sugere. Packer define a justificação como “um ato judicial de Deus perdoando os pecadores (pessoas perversas e ímpias, Rm 4.5; 3.9-24), aceitando-os como justos e, assim, corrigindo permanentemente sua relação previamente alienada de si mesmo. Esta sentença de justificação é o dom da justiça de Deus (Rm 5.15-17), sua concessão de uma condição de aceitação por amor de Jesus.”[i] Para resumir, a justificação é a declaração de Deus de que uma pessoa tem a condição de justa. Consequentemente, essa pessoa, agora justificada, é aceita como parte de seu povo da aliança.[ii] É importante observar essa definição ao começarmos, pois a justificação se preocupa em responder à pergunta de como somos corretos para com Deus. Em última análise, a questão da fé e das obras centra-se em nosso relacionamento com Deus. Como nos acertamos com Deus e como esse status deve nos afetar?

Fé justificadora e obras necessárias

Os historiadores da Igreja costumam dizer que a causa material da Reforma Protestante foi a justificação somente pela fé. Ou seja, se estivermos considerando o que os reformadores estavam realmente dizendo e ensinando, a justificação somente pela fé está no topo da lista. E este princípio de justificação é claro em todo o Novo Testamento, especialmente nas cartas de Paulo. Como mencionei antes, Romanos 3.28 não é ambíguo: “o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.” Embora alguns possam discordar sobre o que exatamente Paulo quer dizer com “obras da lei”, a maioria dos protestantes (e até mesmo os católicos romanos de alguma forma)[iii] concordam que Paulo está ensinando que somente a fé nos justifica porque somente a fé nos une a Jesus.

Paulo reitera o mesmo princípio em Efésios 2. 8-9: “pela graça sois salvos, mediante a fé”. Nesse contexto, Paulo está usando a frase “salvos mediante a fé” da mesma forma que usa “justificado pela fé” em Romanos e Gálatas. Ele está descrevendo a posição gloriosa que temos por causa de nossa união com Cristo. Como observa Lynn Cohick, “Paulo já transmitiu em muitas palavras o conceito de justificação quando declarou que fomos vivificados com Cristo” (ver vv. 5-6)[iv].Como resultado disso, Deus “nos assentou com ele nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (v. 6). Assim, Paulo está enfatizando que, de certo modo, já estamos assentados com Cristo no céu; esta posição celestial está enraizada em nossa condição de justificados em Cristo. Estamos unidos a Cristo somente pela fé; portanto, somos justificados somente pela fé. Novamente, somos declarados justos somente pela fé, porque nossa única esperança de justificação está somente em Cristo.

Mas a justificação pela fé somente significa que as boas obras não têm papel na vida de um cristão? Em Mateus 7, Jesus diz que somente “aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” entrará no reino (v. 21). Alguns, talvez preocupados que esta advertência enfraqueça a justificação pela fé somente, dirão que Jesus está fazendo uma declaração sobre nossa incapacidade. Ninguém é capaz de fazer a vontade do Pai perfeitamente; portanto, Jesus deve fazer isso por nós. E isso é teologicamente verdade. Ninguém pode obedecer perfeitamente, todos nós pecamos, e a glória do Evangelho é que Jesus fez o que nunca poderíamos fazer por nós mesmos.

Não estou convencido, entretanto, de que é isso que Jesus quer dizer em Mateus 7 ou em outros lugares onde fala sobre a necessidade de boas obras para provar, no julgamento final, nossa verdadeira fé (ver Mt 16.27; 25.31- 46). A epístola aos Hebreus fala da “santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor” (12.14). Alguns podem dizer que isso se refere ao status sagrado que recebemos somente pela fé. Mas este versículo é um mandamento para buscar paz e santidade com todos. Nós não nos esforçamos pela justificação; ela nos é dada somente pela fé. Mas sem uma transformação real e crescimento em santidade, não veremos o Senhor em seu reino glorioso. Embora a justificação seja apenas pela fé, as boas obras são, em última análise, necessárias para a salvação final[v] .Vamos continuar avançando para ver como essas declarações aparentemente paradoxais podem ser reconciliadas.

Fé condenatória e obras duvidosas

Quando uma pessoa tem fé em Cristo, ela é unida a ele e mantida por ele. Mas há várias ocasiões na Bíblia onde alguém parece ter fé, mas essa fé mais tarde foi provada ser falsa. Provavelmente, o exemplo mais conhecido desse fenômeno seja Judas Iscariotes, que seguiu Jesus por anos antes de traí-lo e provar que sua fé nunca havia sido genuína.

Vemos outro exemplo dessa fé falsa em João 2.23. João nos diz que depois que as multidões, em Jerusalém, viram Jesus fazendo milagres, “muitos creram no seu nome”. No entanto, no versículo seguinte, João nos diz que Jesus não se “confiava” a eles (v. 24) porque sabia que sua fé não duraria. O verbo grego para crer no versículo 23 e confiar no versículo 24 é o mesmo (pisteuō). Poderíamos até dizer que eles acreditavam em Jesus, mas ele não cria neles – porque eles tinham um tipo de fé que não era a verdadeira fé salvadora.

A epístola de Tiago nos fala mais sobre esse tipo de fé. No capítulo 2, Tiago diz que até mesmo os demônios creem na verdade sobre Deus: “Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem” (v. 19). Os demônios, diz Tiago, acreditam nas coisas certas sobre Deus e até têm uma resposta emocional adequada à verdade. Eles estremecem porque sabem quem é Deus e o julgamento que os espera. Mesmo assim, Tiago nos diz que esse tipo de fé não tem valor porque não está conectada a boas obras de fé.

Alguns versículos antes, quando ele introduz esse tópico, Tiago pergunta: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras?” (2.14). Ele está falando sobre um tipo específico de fé – uma fé “sem obras” – e pergunta se esse tipo de fé salva alguém. A resposta óbvia é negativa. A fé falsa não salva; é um consentimento intelectual vazio, sem devoção real a Cristo. Esse tipo de fé, em última análise, nos coloca na mesma posição que os demônios; essa fé falsa vai nos condenar.

Não só existe uma fé falsa que nos condenará, mas também uma espécie de boas obras que fará o mesmo. De volta ao Sermão do Monte, em Mateus 7.22, Jesus diz que no dia do julgamento, muitos apontarão as grandes obras que fizeram em seu nome. Mas Jesus responderá a eles: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim” (v. 23). Se é possível profetizar, expulsar demônios e fazer milagres em nome de Jesus, mas ainda assim ser lançado no inferno, então certamente é possível dar dinheiro para a igreja, sempre dizer a verdade e evitar a imoralidade sexual e ainda ser lançado no inferno.

Ao longo do Sermão do monte, Jesus está ensinando que nossas ações externas e nossa motivação interna devem estar alinhadas uma com a outra. A grande falha dos fariseus foi que eles falharam em alinhar suas ações externas com suas motivações internas. Como resultado, eles não eram justos de forma alguma. Então, quando Jesus diz que nossa justiça deve exceder a dos escribas e fariseus, em Mateus 5.20, ele não está dizendo que eles eram realmente justos, e então temos que ser “extra bons” para ultrapassá-los; ele estava dizendo que eles não eram verdadeiramente justos, porque suas motivações internas não se alinhavam com suas ações externas. Suas boas obras estavam na verdade mandando-os para o inferno, porque estavam sendo feitas da maneira errada e pelos motivos errados.

Até agora, vimos que somente a fé justifica, mas as boas obras são, de alguma forma, necessárias; entretanto, há exemplos de “fé” e “boas obras” na Bíblia que não são fé salvadora ou boas obras de fé. Vamos adicionar mais uma camada antes de juntar alguns desses fios das cartas de Tiago e Paulo.

Fé do Antigo Testamento e Obras do Novo Testamento

No século II d.C., o conhecido herege Marcion ensinou que havia uma divisão radical entre o Antigo e o Novo Testamento. Embora seja difícil saber de tudo o que o próprio Marcion ensinou, sua premissa principal era que o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento são divindades diferentes porque a mensagem do Antigo Testamento e a mensagem do Novo Testamento são fundamentalmente contraditórias. O Antigo Testamento é uma mensagem de condenação; o Novo Testamento é uma mensagem de graça.

Mesmo que a igreja sempre tenha condenado o Marcionismo de forma consistente, resquícios de suas ideias sempre permaneceram. Hoje podemos ver sua influência sempre que os cristãos sugerem que a igreja moderna não tem necessidade real do Antigo Testamento. Embora muitos não digam isso, quando o Antigo Testamento quase nunca é lido ou ensinado, a mensagem que muitos cristãos recebem é que ele é irrelevante, ou mesmo prejudicial, para a vida cristã moderna. Como resultado dessa suposição, muitos cristãos têm a vaga noção de que o Antigo Testamento e o Novo Testamento são contraditórios e que os santos do Antigo Testamento foram de alguma forma justificados pelas obras.

Mas uma leitura cuidadosa do Antigo Testamento revela exatamente o oposto. No Antigo Testamento, o povo de Deus foi declarado justo por meio de sua fé nas promessas da aliança de Deus. Vemos isso mais claramente em Gênesis 15.6. Neste capítulo, Deus aparece a Abraão, vários anos depois que ele o chamou pela primeira vez e lhe deu uma série de promessas de aliança. Abraão estava envelhecendo, mas ainda não tinha um filho e não tinha certeza se algum dia teria um (vv. 1-3). Deus o reassegurou de seu compromisso de guardar sua aliança, e Abraão creu em Deus (vv. 4-6). Ele acreditava que as promessas da aliança de Deus eram verdadeiras; essas promessas da aliança foram, enfim, focalizadas no compromisso de Deus de salvar o mundo por meio do Prometido. Em um sentido muito real, a fé de Abraão estava no Prometido, Jesus. E por meio dessa fé, Abraão foi justificado – considerado justo. Podemos debater o quanto Abraão sabia sobre a vinda do Messias (talvez ele soubesse muito mais do que muitos de nós tendemos a pensar que sabia), mas o ponto é claro: Abraão foi justificado pela fé nas promessas da aliança de Deus.

Abraão, então, se torna o protótipo da fé em todo o restante do Antigo Testamento. O povo de Deus são os filhos de Abraão. Ser filho de Abraão às vezes se refere à descendência física, mas mais fundamentalmente, se refere a seguir o caminho da fé de Abraão. Os verdadeiros filhos de Abraão são seus herdeiros espirituais (Rm 9.7; Gl 3.29).

Tornar-se filho de Abraão requer fé nas promessas de Deus. Quando Deus está chamando Israel de volta à fidelidade a ele, nas profecias de Isaías, ele lhes diz para “Olhai para Abraão, vosso pai, . . . porque era ele único, quando eu o chamei, o abençoei e o multipliquei” (Is 51.2). Os israelitas deveriam ter o mesmo tipo de fé em Deus que Abraão tinha. Se o fizessem, poderiam esperar o mesmo resultado: justificação.

O povo de Deus sempre foi justificado pela fé, então isso não é novidade no Novo Testamento. Já observamos alguns dos lugares onde o Novo Testamento nos chama a boas obras pela fé, mas é importante reiterar isso. Assim como alguns cristãos presumem que o Antigo Testamento ensina um Evangelho da justificação pelas obras, alguns também presumem que o Novo Testamento ensina que qualquer pedido de boas obras de fé mina o Evangelho da justificação somente pela fé. Esse claramente não é o caso. A verdadeira fé salvadora persevera em boas obras de fé. Paulo afirma esse princípio sucintamente em 2 Timóteo 2.12: “se perseveramos, também com ele reinaremos; se o negamos, ele, por sua vez, nos negará”. A questão é: se não perseverarmos em boas obras de fé e, assim, negá-lo, ele nos negará e nos enviará a julgamento[vi].

Vimos que somos justificados pela fé, mas as obras são necessárias. Também vimos que a fé falsa e as obras falsas são possíveis e, no final das contas, elas nos condenarão. Agora vemos, no Antigo Testamento, que a justificação é pela fé, e mais uma vez, no Novo Testamento, que perseverar nas boas obras é necessário para a salvação. Finalmente, podemos nos voltar para Tiago e Paulo e encaixar seus ensinos sobre fé e obras no que vemos no restante da Bíblia.

Paulo e Tiago, Fé e Obras

Neste ponto, já observamos vários lugares onde Paulo e Tiago afirmam os princípios que vimos ao longo deste ensaio. Mas agora pode ser útil reuni-los para mostrar que esses dois apóstolos afirmam as verdades que observamos acima. Resumindo, tanto Tiago quanto Paulo afirmam a justificação somente pela fé e a necessidade de boas obras de fé.

Fé justificadora e obras necessárias

Tanto Tiago quanto Paulo ensinam que nossa justificação, sermos declarados justos por Deus, é somente pela fé. Já vimos isso em Paulo, mas você pode estar se perguntando sobre Tiago. Afinal, ele diz: “uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente” (Tg 2.24). Mas precisamos olhar de perto a maneira como Tiago está falando sobre “não por fé somente” neste capítulo. Lembra do que vimos acima? Tiago está argumentando contra uma fé falsa que é apenas consentimento intelectual. Este é o tipo de “fé somente” que ele está se referindo aqui. Isso não é fé de qualquer forma.

Além disso, seu entendimento de “justificado pelas obras” é diferente do que Paulo quer dizer com isso. Tiago quer dizer que as obras desempenharão um papel de confirmação na justificação. Afinal, ele cita Gênesis 15.6 em Tiago 2.23 para afirmar a justificação pela fé somente no sentido paulino. Assim, Tiago afirma que Abraão foi considerado justo – justificado – pela fé. No entanto, esse status de justificado teve que ser cumprido por meio de sua vida de boas obras pela fé.

Já vimos as diferentes maneiras como esses dois apóstolos afirmam a necessidade de boas obras. Não precisamos aprofundar o ponto de Tiago 2; sua ênfase nas boas obras pela fé é clara. As cartas de Paulo têm uma ênfase semelhante. Se continuarmos lendo após a famosa declaração de Paulo sobre a salvação pela graça por meio da fé (Ef 2. 8-9), descobriremos que o corolário necessário, da graça de Deus na salvação, são nossas contínuas boas obras: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (v. 10). Somos justificados pela fé, não pelas obras, mas pela boa obra de Deus em nós é que produziremos boas obras.

Fé condenatória e obras duvidosas

Esses dois apóstolos não apenas afirmam a justificação pela fé somente e a necessidade de boas obras pela fé, mas também veem (e combatem) a fé e as obras falsas. Como vimos, Paulo consistentemente precisava combater uma visão errada das obras. Alguns estavam ensinando que as obras da lei eram, de alguma forma, a maneira como somos declarados justos diante de Deus. Mas Paulo mostra que somente a fé nos justifica (Rm 3.28) porque somente a fé nos une a Cristo (Ef 2. 4-9). Tiago, no entanto, está expondo uma compreensão falha da fé. Contra alguém que pode entender a fé apenas como consentimento intelectual que não tem efeito real sobre nós, Tiago mostra que a fé (e o status de justo que se segue) deve ser realizada por meio de uma vida transformada.

Fé do Antigo Testamento e Obras do Novo Testamento

Tanto Paulo quanto Tiago também demonstram que a justificação pela fé somente (e a vida transformada que se segue) está enraizada no Antigo Testamento – especificamente em Gênesis 15.6. Esses apóstolos aplicam esse texto de maneiras diferentes, mas complementares. Paulo cita Gênesis 15 da perspectiva do início da fé de Abraão. Quando Abraão creu em Deus, ele foi verdadeiramente considerado justo, independentemente de quaisquer obras. Tiago afirma a mesma verdade, mas considera Gênesis 15 de um ponto posterior da vida de Abraão. Ele se refere ao sacrifício de Isaque em Gênesis 22 como um exemplo de como a posição justa de Abraão foi “completada” ou “cumprida” (teleioō) em sua obediência ao Senhor (Tg 2.21-22).

União Fundamental com Cristo

Finalmente, junto com os princípios que já vimos, em ambos os apóstolos, tanto a justificação pela fé quanto nosso crescimento em boas obras são inseparáveis e enraizados em nossa união com Cristo. Para Paulo, esse conceito é bastante claro. Por exemplo, a união com Cristo satura Efésios 1-2. Efésios 2.5-6 enfatiza que somos vivificados com Cristo, ressuscitados com Cristo e assentados com Cristo nos lugares celestiais. Em outras palavras, estamos verdadeiramente unidos a Cristo de maneira que compartilhamos sua morte, ressurreição, ascensão e reinado. Temos seu status: somos declarados justos – justificados – nele.

As referências de Tiago à união com Cristo são mais sutis. Em Tiago 1.21, Tiago diz ao público para “acolher com mansidão a palavra neles implantada”. A “palavra implantada” é provavelmente uma referência à promessa da nova aliança de que Deus escreveria a lei no coração de seu povo (ver Jeremias 31.33)[vii] .Alguns versículos depois, em Tiago 2.1, ele nos lembra de nossa “fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória” compartilhada. Quando colocamos essas realidades juntas, temos fé em Cristo, o que resulta na transformação do coração, que então resulta em vidas transformadas. A realidade por trás disso é nossa verdadeira união com ele. Por estarmos verdadeiramente unidos a ele pela fé, recebemos a condição de justos e então nos transformamos mais e mais à sua imagem.

Trabalhando Fielmente

Se quisermos ser fiéis a todo o ensino da Bíblia sobre fé e obras, devemos estar constantemente cientes dos desafios em ambas as extremidades do espectro. Não podemos presumir que qualquer coisa que fizermos servirá como base para nossa aceitação diante de Deus. Isso inclui os atos de “obras de justiça” em que normalmente pensamos: frequência à igreja, dar dinheiro, servir e assim por diante.

Mas as obras de justiça podem ser mais insidiosas. O racismo pode ser uma forma de obra de justiça, pois exigimos que uma identidade racial ou cultural seja aceita diante de Deus e contada como seu povo[viii]. Pressionar por um certo tipo de experiência emocional na adoração cristã pode ser uma forma de obras de justiça, também. Podemos não ter essa intenção, mas se dermos a impressão de que nossa aceitação diante de Deus depende de uma intensidade particular de emoção, estaremos acrescentando ao Evangelho e exigindo obras adicionais para sermos aceitos por Deus. Somente a fé nos une a Cristo, e somente ele é a base para nossa justificação diante de Deus.

Por outro lado, também nunca devemos dar a impressão de que nossa aceitação por Deus não resultará em uma transformação real. Se estivermos verdadeiramente unidos a Cristo, seremos verdadeiramente transformados à imagem de Cristo. Novamente, isso exclui o que podemos considerar distorções mais óbvias, como “crença fácil” e o ensino que afirma alguma fórmula estranha onde Jesus pode ser nosso Salvador, mas não nosso Senhor.

Mas para muitos de nós, a tentação de negligenciar as boas obras pode ser mais sutil. Por exemplo, defender o “casamento” de pessoas do mesmo sexo pode ser uma forma de negligenciar o ensino de Tiago sobre as boas obras pela fé, porque põe de lado o ensino da Bíblia sobre a sexualidade, que a igreja tem afirmado por milênios.[ix] O mesmo pode ser verdade para qualquer quantidade de questões que podem ser impopulares em uma determinada cultura, como cuidar de órfãos, viúvas e imigrantes. Ou, a desobediência a Tiago 2, pode ser simplesmente uma falta de vontade de pedir fé e arrependimento por medo de ser chamado de legalista.

A má compreensão da relação entre fé e obras foi, e continua a ser, um perigo constante para a igreja. Para sermos fiéis ao Senhor Jesus, devemos manter e ensinar essas verdades juntas. A justificação é somente pela fé, mas boas obras resultarão inevitavelmente de nosso status justificado. Devemos estar cientes e combater os pontos de vista errados sobre a fé e as obras, que podem, em última análise, nos condenar. O Antigo e o Novo Testamento, juntos com Tiago e Paulo, são unificados nesta mensagem. Embora diferentes partes da Bíblia enfatizem diferentes partes deste quadro, o quadro todo permanece consistente. Estamos unidos a Cristo somente pela fé, e nossa união com ele leva à nossa transformação em sua imagem gloriosa.


[i] Packer, Concise Theology: A Guide to Historic Christian Beliefs (Carol Stream, IL: Tyndale House, 1993), 164.

[ii] A inclusão no povo da aliança de Deus não é constitutiva da justificação, como alguns argumentam. Por exemplo, N.T. Wright argumentou que a justificação é “a definição escatológica de Deus, tanto futura quanto presente, de quem é, de fato, um membro de seu povo” (What Saint Paul Really Said: Paul of Tarso the Real Founder of Christianity? [Grand Rapids: Eerdmans, 1997], 119). Wright está correto ao ver uma conexão entre a justificação e a adesão à aliança, pois a declaração de Deus, de que uma pessoa é justa, e a inclusão dessa pessoa em seu povo da aliança, são inseparáveis. No entanto, eles são distintas.

[iii] Em uma reunião de bispos alemães em Mainz, em 1980, o Papa João Paulo II, em certo sentido, afirmou a doutrina da justificação de Lutero. Stephan Pfürtner escreveu: “Pela primeira vez na história, um papa citou Martinho Lutero como uma testemunha cuja mensagem de fé e justificação deveria ser ouvida por todos nós” (“Os Paradigmas de Tomás de Aquino e Martinho Lutero: A Mensagem da Justificação de Lutero significava mudança de paradigma?”em Paradigm Change in Theology: A Symposium for the Future, ed. Hans Küng e David Tracy [Edinburgh: T&T Clark, 1989], 131). Ver também Peter Kreeft, “Justificação pela fé”, em Fundamentals of the Faith (San Francisco: Ignatius Press, 1988), 277–81.

[iv] Lynn H. Cohick, Ephesians: A New Covenant Commentary (Cambridge: Lutterworth Press, 2013), 67. Cohick sugere que a palavra justificação é “muito restritiva para o significado [de Paulo]” aqui. No entanto, pode simplesmente ser o caso de Paulo estar usando uma linguagem diferente para comunicar uma realidade semelhante. F.F. Bruce provavelmente está correto: “Em Gálatas, ele diz ‘uma pessoa é justificada’ porque a questão da justificação era parte integrante da crise da Gálatas; em Efésios, ele diz, usando um termo mais geral, ‘você foi salvo’, talvez porque a justificação no sentido mais específico não fosse um assunto controverso para os leitores desta carta”( The Epistles to the Colossians, to Philemon, and to the Ephesians, NICNT [Grand Rapids: Eerdmans, 1984], 233). Assim, Paulo também pode incluir a santificação posicional na “salvação pela fé” em Efésios 2.

[v] Conforme observado acima, a justificação é a declaração de Deus de que uma pessoa é considerada justa. A salvação, entretanto, é mais ampla do que esta declaração, pois inclui justificação, santificação e glorificação final. Embora a justificação garanta que todos os outros componentes da salvação serão cumpridos, esses termos não são equivalentes uns aos outros.

[vi] Isso significa que 2 Timóteo 2.13 se refere à fidelidade de Deus em julgar, não em nos salvar, apesar de nossa falta de fé. Caso contrário, isso contradiria o ponto claro do versículo 12.

[vii] Ver Douglas J. Moo, James, TNTC, rev. ed. (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2015), 111.

[viii] Veja minha discussão em Paul vs. James: What We’ve Been Missing in the Faith and Works Debate (Chicago: Moody, 2019), 136-39. Observe também que o ativismo social, especialmente quando impulsionado por sentimentos populares, pode facilmente se tornar uma forma de obras de justiça.

[ix] Bruno, Paul vs. James, 131-36.

Por: Chris Bruno. © Desiring God Foundation.Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: Justified for Good.

Original: Justificado para o bem. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.