A igreja de Cristo precisa de um CNPJ? E as congregações e pontos de trabalho também?

Este texto contém excertos do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, autoria de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina [3ª Ed. Rev. e ampl. São Paulo, Vida Nova.]

Uma das perguntas que mais recebemos de nossos alunos é exatamente o título deste ensaio: Igreja precisa mesmo de CNPJ? Diante de tantas arbitrariedades que vemos por parte de Estados e municípios, que aumentaram em tempos de Covid-19, entendemos que o medo é legítimo. Para isso, temos que analisar duas situações, e dar resposta para cada uma delas.

No Brasil, é necessário que as pessoas jurídicas de direito privado se inscrevam no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, nome da abreviação comumente utilizada em território nacional como CNPJ. O Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica visa identificar a pessoa jurídica e sua atividade, sendo a forma de organização das pessoas jurídicas no Brasil. Entretanto é importante ressaltar que o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas não é o documento que constitui as pessoas jurídicas no Brasil e tão pouco é o ato mais importante. A “Certidão de Nascimento” da pessoa jurídica brasileira é seu ato constitutivo, e, em se tratando de organizações religiosas, seu Estatuto Social. Senão vejamos o que prevê o Código Civil:

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de Direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

A lei civil é clara e precisa: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de Direito privado com a inscrição do ato constitutivo” no Registro de Pessoas Jurídicas. Evidentemente que estamos tratando aqui da organização religiosa como instituição, como pessoa jurídica de direito privado. Um agrupamento de amigos que se reúnem para cultuar a Deus possui todas as garantias e proteções oriundas da liberdade religiosa, mas não são uma organização religiosa e, provavelmente, nem possuem o ânimo de ser uma ou de se tornar uma organização religiosa.

O Código Civil trata da criação da instituição formal da pessoa jurídica de direito privado sob a forma de organização religiosa, e é sobre esta que vamos tratar. O Estatuto Social de uma organização religiosa é o principal documento jurídico dela e de todos os seus membros, é o seu ato constitutivo, a partir de seu registro começa a existência legal da Igreja, no dizer do próprio artigo 45 do Código Civil. Por assim dizer, é a Constituição, ou seja, lei máxima daquela organização, o principal documento de seu corpo canônico, nascendo da comunhão de objetivos, sentimentos e crenças transcendentais de um determinado grupo de pessoas que, reunido em seu templo religioso, provisório ou permanente, em Assembleia Geral Extraordinária se organiza para fundar a organização religiosa, ou seja, a igreja, para deliberar e aprovar seu Estatuto Social e eleger a primeira Diretoria e Conselho Fiscal, se for o caso de existir.

Ainda, necessário consignar, que o nome jurídico do principal documento legal da igreja, Estatuto Social, não foi a escolha mais acertada do legislador brasileiro. Empresas na forma de sociedade anônima, escolas, associações e fundações possuem Estatuto Social. Igrejas e demais organizações religiosas possuem Constituições próprias, que regem sua vida social, mas também suas liturgias e, especialmente seus atos de crença e fé; daí o erro do legislador em denominar de estatuto um documento que possui muito mais força e vínculos do que um mero estatuto social civil.

Também, importante lembrar, que no meio evangélico é muito comum a existência de congregações ou pontos de trabalho ligados às igrejas-sede e/ou templos centrais (que são locais maiores de culto, onde também a igreja realiza suas atividades administrativas, financeiras e afins). Essas congregações e pontos de trabalho sempre concentram um número menor de fiéis e, geralmente, dedicam-se exclusivamente a realização de cultos e outras liturgias. As congregações dedicam-se exclusivamente ao culto religioso, o que é fruto do proselitismo (evangelismo) religioso. Um bom exemplo é um missionário que é enviado pela igreja-sede até determinada comunidade, alcança a conversão dos ouvintes e, ali, estabelece pequenas reuniões de culto.

O problema? A instrução normativa nº 1634/2016 da Receita Federal, determinava que esses pequenos locais de culto deveriam ter o CNPJ. Diferente da igreja-sede que possui autonomia jurídica e financeira, as congregações são identificadas pela simplicidade no quesito de estrutura, dedicando-se exclusivamente ao exercício da fé através da reunião de pessoas, ou seja, não possuem autonomia administrativa e financeira, fato esse que transforma a obrigatoriedade do CNPJ um ônus muitas vezes pesado para ser suportado.

Visando resolver esse problema, a Receita Federal estabeleceu novas diretrizes com a instrução normativa nº 1897/2019, em seu artigo 9º, em que dispensa a obrigatoriedade do CNPJ para “os estabelecimentos de organizações religiosas que não tenham autonomia administrativa ou que não sejam gestores de orçamento” — ou seja, a igreja-sede, assim como qualquer outro local de culto central, que terá como instrumento de identificação um “CNPJ raiz”, provindo das atividades que são realizadas naquela organização religiosa, continuam na obrigatoriedade de ter um CNPJ, e os locais menores, como frutos daquele local maior, estão dispensados, obedecendo aos requisitos da nova instrução normativa que passou a vigorar. Uma conquista importante para o exercício da liberdade religiosa e a retirada de um embaraço às congregações, assim como qualquer outro local de culto como pontos de trabalho.