Homem e mulher no exílio (Gênesis 3)

Os únicos homens e mulheres que viveram nas condições do Éden foram Adão e Eva, mas sua queda os levou à expulsão do jardim santuário. O exílio de Adão e Eva significou o exílio da masculinidade e da feminilidade. As reverberações de sua rebelião se espalharam por todo o mundo, não deixando nada imaculado. Após a queda, ainda somos criaturas encarnadas com a imagem de Deus (Gn 5.1-3; Tg 3.9), mas agora vivemos em um mundo amaldiçoado pelo pecado, onde seus efeitos corrosivos são evidentes, especialmente em nossos relacionamentos. Este artigo explorará três desafios que a masculinidade e a feminilidade enfrentam em um mundo decaído.

Evitando a responsabilidade

Antes de deixar o jardim, Adão e Eva experimentaram, em primeira mão, como soavam seus instintos pecaminosos. Deus perguntou a Adão: “Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?” (Gn 3.11). A resposta óbvia seria sim, mas Adão disfarçou: “A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.” (Gn 3.12). Quando Deus perguntou à mulher o que ela tinha feito, ela respondeu: “A serpente me enganou, e eu comi.” (Gn 3.13).

O homem e a mulher evitaram assumir a responsabilidade pessoal por suas escolhas. Em vez disso, eles mudaram o foco para outra pessoa. O pecado de Adão foi particularmente hediondo. Ele se esquivou de sua responsabilidade e direcionou a culpa para sua esposa, a mesma que ele foi incumbido de cuidar e proteger. No bom desígnio de Deus para a complementaridade, Deus comissionou os maridos a cuidar de suas esposas, buscando e protegendo seu bem físico, emocional e espiritual. Mas aqui encontramos Adão agindo não como um homem, mas como um covarde que estava disposto a ver sua esposa sofrer em vez de confessar suas falhas.

Adão não apenas apontou o dedo para Eva (“ela me deu o fruto”), ele também responsabilizou o Senhor (“A mulher que me deste por esposa”). Adão não percebe que Eva é uma dádiva preciosa e que Deus é um Pai benevolente? As palavras de Adão desprezam tanto a dádiva quanto o Doador. A complementaridade bíblica sustenta o valor da dádiva e a glória do Doador.

Em Gênesis 3, Adão maltratou Eva; é onde a raiz dos maus-tratos às mulheres pode ser encontrada. Olhando ao redor, na cultura ao nosso redor, vemos as manifestações maliciosas de atividades semelhantes às de Adão. A queda nos dá a explicação necessária sobre porque os relacionamentos se transformam em caos e escárnio. As palavras de dissimulação de Adão não enganaram a Deus, mas confirmaram uma fratura relacional que continua até os dias atuais. Na vida fora do jardim, homens e mulheres são desconfiados e pouco amorosos uns com os outros; eles trocam culpas e se acusam. Os homens em particular se parecem com seu pai Adão quando desonram as mulheres e rebaixam seu caráter.

Adão usou sua esposa para desviar a sua culpa e promover seus próprios propósitos egoístas. Se não há amor maior do que dar a vida por seus amigos (Jo 15.13), então, transferir a culpa é uma falha no amor porque a pessoa age com autopreservação sacrificando a outra pessoa.

Desejo de subjugar

Quando o Senhor confrontou Adão e Eva sobre sua rebelião, ele pronunciou as consequências. Ele disse à mulher: “O teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (Gn 3.16). Alguns intérpretes entendem que isso significa o desejo contínuo da mulher por amor, companheirismo e intimidade no casamento.[i] O “desejo”, então, seria positivo. Mas existe uma interpretação com maior poder explicativo? Em um contexto de consequências negativas para a serpente (Gn 3.14-15) e para o homem (Gn 3.17-19), o leitor está preparado para que a mulher ouça sobre o castigo.

Em Gênesis 4, Deus fala a Caim com as mesmas duas palavras sobre desejar e governar: “Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.” (Gn 4.7).[ii] Embora a palavra hebraica específica para “desejo” seja rara, o contexto em Gênesis 4.7 indica que o desejo do pecado por Caim é vencê-lo. Portanto, Caim deve “governar” ou vencer o pecado.

Quando vemos o par “desejar / governar” em Gênesis 3.16 e 4.7, podemos ver como o Senhor provavelmente está falando, no primeiro contexto sobre as consequências para o relacionamento da mulher com seu marido. O Senhor acabara de declarar a experiência de dor durante a gravidez e, portanto, as consequências em 3.16 estão relacionadas aos papéis de mãe e esposa. Um efeito da queda, no bom design de Deus, é a tentação da esposa em dominar o marido.[iii] Este desejo subverte a liderança do marido e seu papel designado por Deus como chefe da família.

Corrompendo o bom desígnio de Deus, o marido “governará” sua esposa (Gn 3.16), pode indicar uma postura dominadora.[iv] [4] Uma atitude autoritária é uma falta de amor. Alguns homens, infelizmente, igualam a masculinidade a ser machista e controlador. Ações dominadoras incluem abuso físico e abuso emocional. Esses efeitos da queda são visíveis em nosso contexto contemporâneo. As mulheres enfrentam ameaças de violência doméstica de maridos autoritários. O complementarismo não justifica o autoritarismo. Na verdade, os cônjuges autoritários zombam da masculinidade bíblica. O verdadeiro complementarismo convoca os homens a mortificar as paródias da masculinidade. A masculinidade não é tóxica. O pecado é tóxico. Os maridos não devem ser rudes com suas esposas (Cl 3.19), mas antes conviver com elas de maneira compreensiva e honrada (1Pe 3.7).

No outro extremo do espectro, o marido pode abdicar da liderança e se acomodar na passividade. Quando Eva comeu o fruto, Adão “estava com ela”, mas falhou em fazer o que era certo (Gn 3. 6). A abdicação espiritual acontece o tempo todo. Um marido e pai pode não levar sua família à igreja e pode não discipular sua família em casa. Adão se escondeu de Deus porque estava com medo (Gn 3.8-10), e ainda há homens se escondendo hoje. Por medo e insegurança, maridos e pais podem adotar um modo preguiçoso de habitar a casa. A liderança piedosa é sacrificada por conveniência.

Em um mundo decaído, o relacionamento entre marido e mulher enfrenta os efeitos corrosivos do pecado. Paulo defende o bom desígnio pré-queda de Deus quando diz: “As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. …Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, …Assim também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama.” (Ef 5.22-23, 25-26, 28).

Humilhando os outros

Homens e mulheres são feitos à imagem de Deus (Gn 1.26-28), mas os efeitos do pecado sobre a masculinidade e a feminilidade incluem palavras e comportamentos humilhantes uns para com os outros. Homens e mulheres falam com desonra e desrespeito uns aos outros. Eles justificam estratégias de manipulação e engano. Eles toleram e encobrem o abuso verbal, emocional, físico ou sexual. Eles piscam para palavras vis ou ações misóginas.

Nossa cultura está repleta da carnificina de relacionamentos e reputações que enfrentam, de frente, o que os pecadores podem fazer uns aos outros. O que melhor explica nosso momento contemporâneo? Que estrutura ajuda a esclarecer a confusão em torno da masculinidade e da feminilidade? Os eventos em Gênesis 3 mostram que a masculinidade e a feminilidade foram para o exílio, e recuperá-las é uma tarefa urgente e contínua dos cristãos. A cultura circundante precisa ver igrejas e famílias que acalentam o complementarismo bíblico.

O comportamento pecaminoso de homens e mulheres não está enraizado na complementaridade bíblica, mas é uma distorção dela. A complementaridade bíblica dignifica os portadores da imagem de Deus. Desonrar homens, mulheres ou crianças é desonrar a Deus. A complementaridade bíblica está associada ao amor sacrificial, serviço humilde. Chama os homens a nutrir e cuidar, proteger e honrar. A masculinidade e feminilidade bíblicas devem priorizar palavras e ações que dignifiquem – não humilhem – os outros.

O que os homens e mulheres pecadores precisam é afirmar e abraçar o bom desígnio de Deus na criação. A definição de masculinidade e feminilidade não foi deixada pelos nossos primeiros pais a nós. Quando ignoramos a sabedoria de Deus e seguimos nosso próprio caminho, caminhamos no exílio com o fruto proibido ainda em nossas mãos. O abandono do desígnio de Deus é opressor, não libertador. Ao contrário do mundo antigo dos autores bíblicos, a cosmovisão bíblica defende a dignidade e o valor das mulheres.[v] Na verdade, permitiremos o máximo florescimento de ambos os sexos quando confiarmos que os caminhos de Deus são bons e sábios.

Conclusão

Uma visão complementarista dos relacionamentos ajudará homens e mulheres a florescer no exílio. No entanto, a masculinidade e a feminilidade não podem ser buscadas e compreendidas, sem se enfrentar os desafios que existem.

Alguns desses desafios remontam ao próprio Gênesis 3. Mas o mesmo capítulo que nos mostra a raiz de nossos desafios também faz brilhar a luz da esperança. Uma semente da mulher viria para conquistar a vitória sobre a serpente (Gn 3.15). Através da dor da gravidez e na plenitude dos tempos, o Senhor Jesus nasceu. Em Cristo, prosseguimos em direção ao nosso futuro certo – homens e mulheres que são restaurados e ressuscitados para que possamos glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre.


[i]  Ver Andrew E. Steinmann, Genesis, Tyndale Old Testament Commentaries, vol. 1 (Downers Grove: InterVarsity Press, 2019), 71.

[ii] A palavra hebraica תְּשׁוּקָה aparece apenas três vezes no Antigo Testamento (Gn 3.16; 4.7; Ct 7.11). Quando a palavra ocorre no Cântico dos Cânticos 7.10, é o inverso de Gênesis 3.16: o desejo do marido é pela esposa, e o contexto no Cântico dos Cânticos 7.10 é amoroso e íntimo. No Cântico dos Cânticos 7.10, a maldição é revertida.

[iii] Bruce K. Waltke, Genesis: A Commentary (Grand Rapids: Zondervan 2001), 94.

[iv] Ibid. Para uma interpretação diferente de “governar”, veja C. John Collins, Genesis 1-4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Phillipsburg: P&R, 2006), 159-60.

[v] Ver Rebecca McLaughlin, Confronting Christianity: 12 Hard Questions for the World’s Largest Religion (Wheaton: Crossway, 2019), 131-52.

Por: Mitchell L. Chase. © 9Marks. Website: 9marks.org. Traduzido com permissão. Fonte: Man and Woman in Exile (Genesis 3).

Original: Homem e mulher no exílio (Gênesis 3). © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.