Um blog do Ministério Fiel
Estupro e impunidade
As notícias relacionadas à absolvição, em primeira instância, do empresário André de Camargo Aranha no caso Mariana Borges Ferreira (Mari Ferrer) vem provocando justa polêmica e consternação. Os desenvolvimentos são tais que, como cristão, me sinto no dever de expressar algumas preocupações:
Inicialmente, cabe ressaltar que a Bíblia é enfaticamente contrária a qualquer tipo de sexo não consensual. Na Lei de Israel, no Velho Testamento, Deus introduziu o mais alto padrão de respeito por mulheres em todo o mundo antigo. Entre suas leis, encontramos a pena mais severa possível para o crime de estupro (pena de morte):
Dt. 22:25 Mas, se o homem encontrar a moça prometida em casamento no campo e a violentar, somente o homem deverá ser morto. 26 Não façam nada à moça; não cometeu crime algum que mereça a pena de morte. É tão inocente quanto uma vítima de homicídio. 27 Uma vez que o homem a violentou no campo, deve-se presumir que ela gritou, mas não houve quem a socorresse.
Essa é a forma em que a Bíblia trata o crime de estupro. Observe como a Bíblia atribui a culpa de um estupro exclusivamente ao estuprador, chegando a afirmar que a moça é “tão inocente quanto uma vítima de homicídio”. Além disso, totalmente contrário aos costumes da época, a Bíblia instrui os juízes a presumirem a inocência da moça nos casos em que fosse concebível que ela tivesse manifestado resistência (como gritar por ajuda sem ser socorrida).
Infelizmente, em nossos dias, algumas pessoas têm caluniado a Bíblia, alegando que ela não impunha outra penalidade para estupradores, senão a obrigação de se casar com sua vítima ou pagar uma indenização em dinheiro. Essa é uma distorção dos versos que vem logo a seguir no capítulo 22 de Deuteronômio, onde o texto prossegue falando sobre o que deveria acontecer quando um homem tivesse relações sexuais consensuais com uma mulher que não estivesse comprometida com outro homem:
Dt. 22:28 Se um homem tiver relações com uma moça virgem, mas que não esteja prometida em casamento, e eles forem descobertos, 29 o homem pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata. Uma vez que ele humilhou a moça, se casará com ela e jamais poderá se divorciar. (NVT)
É evidente que os versos 28 e 29 não tratam de estupro, mas de sexo consensual de ambas as partes, como prova o detalhe da descrição que diz: “e eles forem descobertos”[1]. Nada é dito sobre onde eles se encontram e se a moça gritou por socorro, ou não, por estar tratando de um ato de consentimento mútuo.
O verbo empregado em hebraico para descrever o que o homem faz com a mulher neste segundo texto é תָּפַשׂ (tāfas), geralmente traduzido como “pegar e se deitar com” ou “tiver relações com”. É o mesmo verbo usado para descrever a tentativa da esposa de Potifar em seduzir José, em Gênesis 39:12. Trata-se de um verbo diferente daquele empregado onde um ato de estupro é descrito, como nos versos anteriores (Deuteronômio 22:25-27 – חָזַק (ḥāzaq) – traduzido “violentar”) e que, por sua vez, transmite a idéia de forçar, indicando estupro[2].
O teor dessa lei visa proteger as moças de uma forma séria de exploração, em que fossem seduzidas por homens que, em seguida, as deixassem, prejudicando suas chances de conseguirem um casamento futuro. Um homem que envolvesse uma mulher sexualmente não poderia isentar-se de sua responsabilidade para com ela. Objeção a um matrimônio poderia vir da parte dela ou de sua familia, mas não da parte do homem. O que temos, em Deuteronômio 22:28-29, portanto, é um reforço da lei encontrada em Êxodo 22:16-17, conforme comprova o fato de as mesmas obrigações serem impostas:
Ex. 22:16 Se um homem seduzir uma moça virgem que não esteja comprometida e tiver relações sexuais com ela, pagará à família dela o preço costumeiro do dote e se casará com ela. 17 Mas, se o pai da moça não permitir o casamento, o homem lhe pagará o equivalente ao dote de uma virgem. (NVT)
Voltando a questão do estupro, podemos observar ainda que as leis do Velho Testamento são abrangentes nesse quesito, a ponto de proibirem o estupro em caso de guerra (prática horrenda, mas notoriamente comum, tanto no mundo antigo como em nossos dias). A Bíblia introduz uma restrição sem paralelo em toda a literatura do mundo antigo. Qualquer homem que sentisse atração por uma mulher de uma nação com quem Israel estivesse em guerra não poderia tocá-la. O único caminho admissível para que viesse a ter contato íntimo com ela seria o de esperar um mínimo de um mês e, então, de fato, casar-se com ela (Dt. 21:10-14).
Mais uma vez, vemos a Bíblia condenando o estupro e provendo uma proteção para as mulheres, mesmo aquelas que fossem de nações estrangeiras em guerra contra Israel. Por isso, como cristão, me alegro de que nossa sociedade reflita uma influência do cristianismo e dos valores bíblicos ao caracterizar o estupro como um crime “hediondo” ( lei 8.072/90, art. 1°, V).
No entanto, a Bíblia se preocupa com mais do que a mera existência de leis justas em uma sociedade. A aplicação consistente e imparcial da lei é igualmente necessária, ou a busca por justiça será ilusória. Por esse motivo, encontramos muitas passagens na Bíblia que se dirigem a essa questão:
Dt. 1:16 Naquela ocasião, ordenei aos juízes: ‘Deem atenção aos casos de seus irmãos israelitas e também dos estrangeiros que vivem entre vocês. Sejam completamente justos em todas as suas decisões 17 e imparciais em seus julgamentos. Cuidem tanto dos casos dos pobres como dos ricos. Não deixem que ninguém os intimide…’ (NVT)
Ex. 23:6 Não negue a justiça ao pobre em um processo legal. (NVT)
Sl. 82:2 Até quando vocês vão absolver os culpados e favorecer os ímpios? 3 Garantam justiça para os fracos e para os órfãos; mantenham os direitos dos necessitados e dos oprimidos. 4 Livrem os fracos e os pobres; libertem-nos das mãos dos ímpios. (NVI)
Toda sociedade no mundo tem lidado com corrupção e parcialidade no judiciário. O Brasil não é uma excessão. Para que o judiciário de uma sociedade funcione, é preciso que mantenha credibilidade diante do público. Mesmo se as leis forem justas, um judiciário desacreditado irá fracassar em sua missão de promover justiça, até porque não se recorre a um sistema que não nutre nossas esperanças de alcançar justiça.
Todos sabemos que um problema gravíssimo em relação a crimes de estupro em nosso país é que eles frequentemente nem chegam a ser denunciados. Isso pode ocorrer por vários motivos, mas, entre eles, existem dois que merecem destaque por recaírem sobre nossa responsabilidade como sociedade: 1) o constrangimento inerente à decisão de levar a público um episódio tão humilhante e 2) o temor de denunciar um crime tão bárbaro em vão, por não se obter justiça e, ao mesmo tempo, incorrer o risco de ainda mais violência por parte do agressor.
O ensino bíblico faz entender que cabe a todos nós estruturarmos nossa sociedade de modo que esses obstáculos sejam superados, do contrário, a injustiça se torna inevitável, uma vez que as denúncias de estupro por parte das vítimas são inibidas, à priori. O clima de impunidade que resulta disso engendra um atrevimento ainda maior por parte daqueles que cogitam praticar tais crimes e nossa omissão, como sociedade, faz com que uma medida de culpa seja coletiva.
Sem tratar dos pormenores do processo no caso supracitado, causa preocupação a forma em que Mariana Ferreira foi tratada pelo advogado Dr. Cláudio Gastão da Rosa Filho. Isso, somado ao fato de que o veredito foi a absolvição do réu por insuficiência de provas, a pedido do próprio Ministério Público, deixou muitos brasileiros com uma sensação de impunidade e impotência diante de um sistema imperfeito. Certo ou errado, não são poucos que estão questionando se esse desfecho não poderia estar relacionado ao fato de o réu ser uma figura influente.
Qual será o efeito de tudo isso? É de se temer que o recado deixado para vítimas de estupro em nosso país seja que é melhor acobertar tais crimes que denunciar, uma vez que o processo pode resultar em nada mais que um agravo à dor já infligida pelo crime. Ao mesmo tempo, receio que crimes de estupro sejam banalizados sob o pretexto de que não há como saber se as vítimas se encontram em condições de consentir à relação, isentando agressores da intenção de estuprar. Esses efeitos são inaceitáveis.
A informação que temos, a esta altura, é de que Mariana irá recorrer. Se isso se confirmar, minha oração a Deus, que sabe toda a verdade, é por um julgamento em segunda instância que seja justo e imparcial. Se as evidências realmente levam à conclusão de que não existem provas suficientes para uma condenação e que o judiciário está cumprindo seu papel devidamente, o correto é que esse mesmo veredito seja sustentado em segunda instância e que a população venha a entender os motivos para tal conclusão. Não me compete julgar o caso. Leio as notícias e tiro minhas conclusões, mas a decisão entre absolvição e condenação cabe àqueles que estão investidos de autoridade e que têm o dever de examinar, minuciosamente, as evidências. Entretanto, é dever meu, assim como de todo cidadão, zelar pela justiça em nosso país. Nós, membros da sociedade brasileira, também temos um papel a cumprir que envolve acompanhar os desenvolvimentos e “fiscalizar” os procedimentos. A opinião pública pesa e deve ser uma força contra a impunidade.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Ministério Reformai. Publicado com a autorização do autor.
[1] Weinfeld, Deuteronomy and the Deuteronomic School, Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1992, 286
[2] Moshe Weinfeld, Deuteronomy and the Deuteronomic School, 286