O capitalista e o cristão hedonista

A Escritura apoia o interesse-próprio?

RESUMO: Para alguns, o capitalismo e o Cristianismo parecem ter pouco em comum: o Cristianismo ensina abnegação e generosidade; o capitalismo promove o interesse próprio e a ganância. O interesse próprio que Adam Smith propôs, entretanto, não é o mesmo que egoísmo; na verdade, em alguns aspectos, ele se sobrepõe significativamente à visão de amor-próprio de Jesus. Na melhor das hipóteses, o capitalismo se baseia no amor próprio altruísta, o tipo que serve ao bem de nossos vizinhos em vez de sufocá-lo. Dos sistemas econômicos, até hoje, o capitalismo pode ter o maior potencial para o florescimento humano – desde que opere em uma cultura abundante nas virtudes bíblicas de confiança, honestidade, obrigação e cooperação.


Adam, Adam, Adam Smith,
Ouça do que eu te acuso!
Você não disse
Em uma aula um dia
Que egoísmo tinha que pagar?
De todas as doutrinas, esse era o âmago.
Não foi, não foi, não foi, Smith?
—Stephen Leacock[i]

Adam Smith, o filósofo moral do século XVIII e suposto pai do capitalismo, compartilhava com Jesus, Moisés, Paulo, Tiago e Jonathan Edwards uma visão razoavelmente semelhante de um amor-próprio altruísta? E se sim, por que o capitalismo em nossos dias é o suposto perpetrador de tal vilania e o objeto do mais feroz desprezo de uma geração em ascensão?

Adam Smith nunca usou a palavra capitalismo, mas muitos consideram seu Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, publicado em 1776, como a articulação seminal de um sistema econômico no qual os proprietários privados – em vez do Estado – controlam o comércio de uma nação e a indústria com fins lucrativos. A adoção das ideias de Smith criou uma explosão sem precedentes na produtividade humana e no florescimento que reverbera até hoje.

O capitalismo supõe um mundo em que o maior bem se estende ao maior número de pessoas por meio de trocas livres entre homens e mulheres que, de outra forma, buscam seus próprios interesses. Smith escreveu a famosa frase: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua consideração por seus próprios interesses.”[ii]

Superficialmente, o que poderia parecer mais contraditório com os ensinamentos de Jesus sobre o altruísmo? Jesus disse:

“Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo.” (Lc 14.33).

“Porque é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Lc 18.25).

“porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.” (Lc 12.15).

“Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós outros bolsas que não desgastem,” (Lc 12.33).

“Jesus … viu também certa viúva pobre lançar ali duas pequenas moedas; e disse: Verdadeiramente, vos digo que esta viúva pobre deu mais do que todos.” (Lc 21.1-3).

“Deus lhe disse [ao homem que construiu celeiros ainda maiores]: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus.” (Lc 12.20-21).

À primeira vista, Jesus dificilmente parece simpático às necessidades egoístas do açougueiro, cervejeiro ou padeiro em promover seus respectivos produtos. A ética cristã evita o ego e o anseio desenfreado e venera a abnegação e o sacrifício.

Mas os ensinamentos de Jesus sobre o amor-próprio estão em total desacordo com a doutrina capitalista do interesse-próprio? Na verdade, eles não estão – não inteiramente. De certa forma, os termos podem ser considerados sinônimos. A moeda capitalista pode ser vista como tendo duas faces: interesse-próprio e interesse-alheio. Juntos, eles passam. P.J. O’Rourke escreveu: “Smith não estava nos incentivando a buscar riqueza no sistema de livre empresa. Ele estava nos incentivando a agradecer o que o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro fazem. É nossa sorte que eles sejam dotados por seu Criador com certos direitos inalienáveis, que entre eles estão bife, cerveja e pãozinho de massa.”[iii] E um sistema no qual as pessoas se amam da maneira como se amam não é tão estranho ao ensino de Cristo. William McGurn observou recentemente: “A relação voluntária entre comprador e vendedor, na essência do livre mercado, não é o amor ao próximo comandado pelo Evangelho. Mas fazer com que o sucesso do mercado dependa da antecipação das necessidades do outro, talvez não esteja tão distante quanto poderíamos pensar.”[iv]

O que homens e mulheres fazem com e do mundo, ao contrário do que tiram dele, pode ser a ideia que mais distingue o capitalismo do mercantilismo que o precedeu como o modelo econômico proeminente do mundo. O capitalismo, mais do que qualquer sistema econômico até hoje, permite o tipo de criação de cultura, a formação e o preenchimento de Gênesis 1. Deus dá os grãos. O homem faz pão. O trabalho tem frutos.

Teísta com reflexos calvinistas

Adam Smith atingiu a maioridade no que pode ter sido a cultura mais completamente calvinista fora de Genebra: a Escócia do século XVIII. Os pais e avós de Smith viviam ao alcance da voz histórica do reformador John Knox, e na Escócia dos dias de Smith, “o calvinismo parecia tão fácil quanto respirar.”[v] Embora fosse um homem do Iluminismo, que buscava compreender e separar o funcionamento do mundo da soberania de Deus, Smith era, não obstante, a progênie de uma família, educação e sociedade calvinistas. Ele conhecia os princípios e doutrinas do Cristianismo Reformado, quer os professasse ou não, e eles temperaram suas visões de como a humanidade deveria cooperar na busca do bem-estar mútuo.

James Boswell, considerado o maior biógrafo da língua inglesa, referiu-se a Smith, seu contemporâneo, como um “infiel de peruca”[vi], mas Smith é mais corretamente considerado um teísta com reflexos intelectuais residentes na memória muscular de um calvinista. Adam Smith acreditava em um grande Deus superintendente interessado na felicidade de suas criaturas. Ele observou: “O cuidado com a felicidade universal de todos os seres racionais e sensíveis é assunto de Deus e não do homem.”[vii] Essa felicidade, como aconteceu com muitos filósofos morais do século XVIII, abrangia não apenas bem-estar e contentamento, mas virtude também. É a felicidade citada na declaração tripla dos fundadores americanos de direitos inalienáveis.

Smith também se preocupava com a depravação humana e via a atividade da humanidade como “extrair o bem das tendências pecaminosas”[viii]. Ele cria em um Deus Criador, que, pelo menos, esteve envolvido na criação das leis que governam o funcionamento do mundo. “A própria suspeita de um mundo sem pai deve ser a mais melancólica das reflexões.”[ix]

Embora ele não tenha anexado nenhuma autoridade religiosa ou textos de prova bíblica a seus escritos, ele construiu uma estrutura de troca econômica que dependia, até mesmo assumia, virtudes bíblicas de confiança, honestidade, obrigação e cooperação. Até mesmo seu conceito de uma “Mão Invisível” que promove fins imperceptíveis e não intencionais para aqueles que buscam seu próprio ganho (ao qual, aliás, ele se referiu apenas uma vez nas mais de novecentas páginas de A Riqueza das Nações)[x] parece indistinguível em alguns aspectos das ministrações ativas do Deus soberano da Bíblia, quer Smith estivesse ou não disposto a dizê-lo com a certeza de um coração regenerado.

O professor de Harvard David Landes, ele próprio um descrente, escreveu que os principais fatores no florescimento de 244 anos do capitalismo foram, em sua raiz, religiosos: “a alegria na descoberta que surge de cada indivíduo ser uma imago Dei, chamada a ser um criador; o valor religioso atribuído ao trabalho manual duro e bom; a separação teológica do Criador da criatura, de modo que a natureza seja subordinada ao homem, não cercada de tabus; o sentido judaico e cristão de tempo linear, não cíclico e, portanto, de progresso.”[xi]

O interesse-próprio capitalista, em sua forma original, também enfrentou a maior injustiça humana de sua época: a escravidão humana. Smith foi “despertado” antes de Wilberforce. Para Smith, esse interesse-próprio dá direito ao fruto de seu próprio trabalho, livre de coerção em sua produção ou troca. O conceito capitalista de direito ao fruto de seu próprio trabalho temperou as observações públicas de Abraham Lincoln em oposição à escravidão mais do que qualquer outro conceito. A escravidão não poderia ser mais antitética ao interesse-próprio. “A coerção destrói a natureza mutuamente benéfica do comércio, que destrói o comércio, que destrói a divisão do trabalho, que destrói o nosso interesse-próprio.”[xii]

Quando, no final de sua vida, Smith entrou em uma sala na qual estavam reunidos os grandes abolidores do comércio de escravos da Grã-Bretanha – Wilberforce, Pitt, Grenville e Addington – os estadistas se levantaram de suas cadeiras. Smith pediu que se sentassem, mas Pitt supostamente disse: “Não, vamos ficar de pé até que você se sente pela primeira vez, pois somos seus estudiosos”.[xiii]

Amor-próprio altruísta

Smith se aproximou mais da ortodoxia reformada, até mesmo do hedonismo cristão[xiv], em sua apreciação do conceito bíblico de amor-próprio, mas depois tragicamente se afastou de Deus nas eventuais consequências antibíblicas de seu modelo econômico na vida de pessoas e nações.

“Entretanto, os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus, reuniram-se em conselho. E um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou:  Mestre, qual é o grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mt 22.34-40).

O segundo maior mandamento consiste em dois elementos, amor ao próximo e amor a si mesmo – e o amor a si mesmo caracteriza a qualidade de amar o próximo. A maioria das obras de referência acessíveis a leigos, como notas de rodapé da Bíblia de estudo e mecanismos de busca online, explicam este segundo mandamento em termos do amor estendido aos próximos, não se afastando muito da elegância conceitual da Regra de Ouro. É preciso escavar um pouco para encontrar a definição do amor-próprio adequado que dá a essa reciprocidade sua qualidade. Aqui, Adam Smith está de acordo com John Piper e Jonathan Edwards sobre a ideia de amor-próprio, embora uma eternidade à parte deles sobre a origem e o objetivo do amor-próprio.

Adam Smith acreditava em um Deus comprometido com o maior grau de felicidade em suas criaturas. Em sua opinião, nosso amor mútuo abrange “a imensidão do universo”. Ele escreveu em A Teoria dos Sentimentos Morais (publicado antes de A riqueza das Nações):

“Esta benevolência universal, por mais nobre e generosa que seja, pode ser a fonte de nenhuma felicidade sólida para qualquer homem que não esteja totalmente convencido de que todos os habitantes do universo, tanto os mais mesquinhos quanto os maiores, estão sob o cuidado e proteção imediatos daquele grande, benevolente e sábio Ser, que dirige todos os movimentos da natureza; e que está determinado, por suas próprias perfeições inalteráveis, a manter, em todos os momentos, a maior quantidade possível de felicidade.”[xv]

Como é intenção do próprio Deus que suas criaturas sejam felizes, e porque os homens e mulheres, como a ordem mais elevada da criação, são feitos à sua imagem, é lógico que os humanos venham ao mundo equipados com o impulso de felicidade. Este impulso para a felicidade é aquele a que se referem Moisés, Jesus, Paulo e Tiago (Lv 19.18; Mt 22.39; Rm 13.9; Tg 2.8) quando falam do amor-próprio que comunica o caráter de amor ao próximo. Esse amor, pode-se dizer, coloca o “hedonismo” no Hedonismo Cristão.

O capitalismo de Adam Smith não foi um chamado ao egoísmo. Se em sua prática contemporânea assim se tornou, corrompe o que Smith pretendia e deveria ser objeto de reforma. Smith acreditava “que sentir muito pelos outros e pouco por nós mesmos, restringir nosso egoísmo e condescender com nossas afeições benevolentes constitui a perfeição da natureza humana; e só pode produzir entre a humanidade aquela harmonia de sentimentos e paixões em que consiste toda a sua graça e propriedade. Quanto a amar o nosso próximo como amamos a nós mesmos, é a grande lei do Cristianismo.”[xvi]

Por tudo o que é atribuído a Smith como o defensor progenitor do “interesse- próprio”, novamente este é um termo que ele usou apenas uma vez em A Riqueza das Nações, e mesmo assim apenas para se referir à “indústria e zelo” do clero católico em sua mendicância.[xvii] Na verdade, as palavras iniciais de A teoria dos sentimentos morais refutam a ideia de egoísmo como a fonte da motivação humana.

“Por mais egoísta que o homem possa ser suposto, há, evidentemente, alguns princípios, em sua natureza, que o interessam na fortuna de outros e tornam a felicidade deles necessária para ele, embora ele não extraia nada disso, exceto o prazer de vê-la.”[xviii]

Na economia de Smith, Deus projetou a afeição pelo próximo para permitir um interesse próprio por meio do qual Deus estende sua graça comum. Nenhum homem é uma ilha. Smith escreveu, por exemplo, sobre a cooperação espontânea necessária entre um vasto número de pessoas na simples produção de um alfinete de costureira.[xix] Um acólito contemporâneo de Smith fez o mesmo ao descrever o vasto elenco de pessoas que estão envolvidas na criação de um lápis # 2 comum[xx]. No capitalismo de Smith, os humanos não prosperam se o amor-próprio não consegue encontrar livremente um parceiro no amor pelos outros.

“O homem às vezes usa as mesmas artes com seus irmãos, e quando não tem outro meio de fazê-los agir de acordo com suas inclinações, esforça-se por toda atenção servil e bajuladora para obter sua boa vontade. Ele não tem tempo, entretanto, para fazer isso em todas as ocasiões. Na sociedade civilizada, ele sempre precisa da cooperação e assistência de grandes multidões, enquanto toda a sua vida é escassa o suficiente para ganhar a amizade de algumas pessoas.”[xxi]

Todos os homens querem ser felizes

O capitalismo está ancorado na convicção de que se deve amar a própria felicidade. Jonathan Edwards, escrevendo bem antes de Smith, compartilhava esta convicção:

“Não é contrário ao cristianismo que um homem ame a si mesmo, ou, o que é a mesma coisa, ame sua própria felicidade. Se o cristianismo realmente tendesse a destruir o amor de um homem por si mesmo e por sua própria felicidade, isso tenderia a destruir o próprio espírito da humanidade. . .. O fato de um homem amar sua própria felicidade é tão necessário à sua natureza quanto a faculdade da vontade, e é impossível que tal amor seja destruído de qualquer outra forma que não seja destruindo seu ser. Os santos amam sua própria felicidade. Sim, aqueles que são perfeitos em felicidade, os santos e anjos no céu, amam sua própria felicidade; caso contrário, a felicidade que Deus lhes deu não seria felicidade para eles.”[xxii]

John Piper escreveu: “Jesus assume que todo ser humano ama a si mesmo por natureza. Ele não comanda isso; ele o torna a medida e o modelo do amor ao próximo”. Esse amor-próprio não é de forma alguma a autoestima que tantos fabricantes de espaços seguros contemporâneos encorajam. “Isso não significa ‘estima’”, diz Piper.

“Significa cuidar de. Ninguém nunca se odeia, no sentido de que todos os homens desejam ser felizes. As faíscas voam para cima. Os homens se amam. É uma dádiva natural. Eu me alimento, me dou descanso, tiro férias, abraço minha esposa e faço uma centena de outras coisas o dia todo para suprir minhas necessidades e tornar minha vida gratificante. Eu me amo. E isso é verdade mesmo que eu ache que sou um idiota e não tenho autoestima. A autoestima não é uma dádiva na humanidade; amor-próprio é. Pode-se aprender a autoestima. Ninguém precisa aprender a amar a si mesmo.”[xxiii]

Capitalismo Redimido

O capitalismo que temos hoje não é inteiramente o capitalismo que herdamos, nem o capitalismo que desejamos. Tal como acontece com todas as coisas arrastadas pela gravidade do mundo, o capitalismo contemporâneo está hoje algemado por muitos acordos do lado mercantilista entre governos e corporações; muitos cartéis; mais egoísmo do que interesse próprio; e uma grosseria cultural cada vez mais livre das amarras bíblicas, que resulta em ganância e comportamento opressor por parte dos ricos. Precisa ser reformado ou, como sugeriu melhor o autor Kenneth Barnes, “redimido”, mas não substituído.[xxiv]

As falhas do capitalismo não são todas contemporâneas. Smith e seus colegas do Iluminismo escocês forçaram, contra a corrente do calvinismo de sua época, procurando explicar o funcionamento do mundo e suas virtudes à parte da soberania de Deus. Smith errou ao considerar a verdadeira virtude como emanando da interação social – isto é, ao postular que a moralidade toma definição em meio às múltiplas simpatias trocadas entre os amantes de si mesmos e os amantes do próximo.

Sem dúvida, muitas coisas boas florescem em um ambiente de boa vontade recíproca, mas sugerir que tal beleza emana da reciprocidade social é o mesmo que considerar o caule a fonte de uma flor. É aqui que Edwards e Piper, e os cristãos bíblicos, necessariamente se separam de Adam Smith. Bondade, excelência, beleza, deleite, delícia, melodia, êxtase não surgem das interações amorosas de homens e mulheres; eles têm sua fonte no valor supremo de excelência: o Deus da Bíblia. É neste cruzamento que Smith deixou a estrada da glória e provavelmente ficou preso em um beco sem saída centrado no homem.

Devemos orar por um capitalismo cristão hedonista. Piper escreveu,

“O Hedonismo Cristão ensina que toda virtude verdadeira deve conter uma certa alegria de coração. Portanto, a busca da virtude deve ser, em certa medida, uma busca pela felicidade. E a felicidade que constitui uma parte essencial de toda virtude é o gozo da presença e a promoção da glória de Deus. Portanto, se tentarmos negar, mortificar ou abandonar o impulso de buscar essa felicidade, nos colocamos contra o bem do homem e a glória de Deus. Em vez disso, devemos procurar despertar nosso desejo por esse deleite até que se torne incandescente e insaciável na terra.”[xxv]

Não há razão para que um sistema de assuntos econômicos extrabíblico como o capitalismo não possa florescer ainda melhor em um ambiente no qual Deus é exaltado não apenas como o autor do amor, mas como o amor sublime, o próprio amor.

Na verdade, o capitalismo floresceu mais em sociedades nas quais a igreja mais floresceu como o fundamento cultural por trás dele. Diz-se que se fossem visitantes de outro planeta que tivessem explorado a Terra há cinco mil anos, esses alienígenas teriam relatado a seu líder extraterrestre que as criaturas terrestres viviam apenas um pouco acima do estilo dos brutos. Se esses alienígenas retornassem a cada mil anos pelos próximos quatro milênios, seu relatório seria praticamente o mesmo, exceto para algumas ferramentas e algumas tribos maiores. Na verdade, muito do que aconteceu no mundo em termos de invenção, descoberta, educação, erradicação de doenças, segurança pública, mobilidade, expectativa de vida melhorada e assim por diante aconteceu desde a publicação de A riqueza das Nações em 1776 e da adoção de sua estrutura por sociedades ocidentais, amplamente cristianizadas.

Pode-se afirmar com justiça que os Estados Unidos da América têm sido exemplares nesse aspecto. Sem respeito pela vida humana e dignidade, ordem moral, boa vontade recíproca, liberdade individual e o desdém da tirania, o capitalismo tem dado lamentavelmente poucos frutos. Mas quando a ordem moral, o governo representativo e a livre iniciativa estão em relativo equilíbrio nas sociedades cristãs, como em grande parte do Ocidente durante os últimos dois séculos, mais pessoas em mais lugares foram retiradas da escravidão, fome, pobreza , miséria, ignorância e trabalho enfadonho do que em qualquer outro momento da história do mundo, graças a um Deus graciosamente benevolente e seu desdobramento soberano das contribuições comparativamente escassas de um filósofo moral escocês do século XVIII.

Rejeitando a coerção

Através dos tempos, cristãos devotados acreditaram que este mundo injusto pode ser corrigido radicalmente. Essa inclinação atraiu muitos crentes, especialmente entre os jovens sempre idealistas, para o socialismo. Piper nos alerta sobre as limitações de ambos os sistemas extrabíblicos de atividade econômica, socialismo e capitalismo:

“O socialismo toma emprestado os objetivos compassivos do cristianismo ao atender às necessidades das pessoas, ao mesmo tempo que rejeita a expectativa cristã de que essa compaixão não seja coagida ou forçada. . .. Minha própria percepção é que a história, a razão e outras reflexões bíblicas levam à conclusão de que a liberdade e os direitos de propriedade levam a um maior bem-estar a longo prazo – ou, como dizemos hoje, ao florescimento – para o maior número de pessoas. E não deve deixar de ser dito, por último, que todo sistema econômico e político acabará por entrar em colapso onde houver impulsos morais insuficientes para conter o egoísmo humano e encorajar a honestidade e as boas ações, mesmo quando ninguém está olhando.”[xxvi]

O falecido Warren T. Brookes, colunista econômico de longa data do Boston Herald American, escreveu sobre “Socialistas Cristãos”: “[Tal socialismo] parece se basear no ideal cristão da fraternidade espiritual essencial, igualdade, bondade e perfeição do homem, e que teoriza que são apenas as forças econômicas iníquas e discriminatórias do capitalismo que fazem os homens se comportarem mal. Remova essas forças, as promessas socialistas cristãs, e a bondade inerente da humanidade florescerá em um reino dos céus bem aqui na terra.”[xxvii] As experiências no socialismo têm seduzido os cristãos desde o primeiro século e “quase sem exceção naufragaram nos bancos de areia da natureza humana”.

Os cristãos reformados zombariam, por padrão, de tal confiança em uma perfectibilidade projetada pelo homem e compreenderiam bem os riscos do florescimento humano deixado aos projetos de um pequeno número de, bem, planejadores centrais humanos. O capitalismo tem seus excessos, vulgaridades, opressões e desigualdades, com certeza, mas os sistemas alternativos de controle, centrados no estado da ação humana, parecem terrivelmente distintos ao longo da história por suas trajetórias finais em direção a Gulags, campos de morte e longas marchas. Não, obrigado.

Em outro lugar, Piper, em sua melhor forma provocativa, comentou mais recentemente: “Estou cem vezes mais apaixonado por criar o tipo de cristão e o tipo de igreja que permanece com uma mentalidade espiritual inabalável, fiel, bíblica e contra cultural em uma América socialista do que eu estou impedindo uma América socialista.”[xxviii] A ênfase de Piper aqui tem menos a ver com economia e liberdade política, e mais a ver com uma aspiração pela beleza da noiva que Cristo reivindicará naquele dia quando os joelhos de cada “-ismo” e ideólogo se curvarão diante dele. Devemos todos ser muito apaixonados em tal ordem de magnitude.

Mas o que vimos do florescimento humano, possibilitado pelo funcionamento do capitalismo democrático em sociedades em que a igreja é ascendente, nos obriga, como seguidores compassivos de Jesus Cristo, a nos levantarmos em forte defesa do capitalismo. Melhor que possamos respirar livremente de um capitalismo castigado do que suspirar no ar de um socialismo coercitivo.


  1. [i] Stephen Leacock, Hellements of Hickonomics: In Hiccoughs of Verse Done in Our Social Planning Mill(New York: Dodd Mead & Company, 1936), 75.
  2. [ii] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations(1776; repr., Chicago: University of Chicago Press, 1976), 1:136.
  3. [iii]J. O’Rourke, On the Wealth of Nations, 5th ed. (New York: Atlantic Monthly Press, 2007), 41–42.
  4. [iv] William McGurn, “Making Capitalism Great Again?” Wall Street Journal, November 25, 2019.
  5. [v] Arthur Herman, How the Scots Invented the Modern World: The True Story of How Western Europe’s Poorest Nation Created Our World and Everything in It(New York: Broadway Books, 2001), 15.
  6. [vi] James Boswell, Boswell: The Ominous Years, 1774–1776, ed. Charles Ryskamp and Frederick A. Pottle (New York: McGraw-Hill, 1963), 337.
  7. [vii] Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments, 6th ed. (1790; repr., New York: Penguin Books, 2009), 279.
  8. [viii] Michael Novak, The Spirit of Democratic Capitalism(New York: Simon and Schuster, 1982), 353.
  9. [ix] Smith, Theory of Moral Sentiments, 277.
  10. [x] Smith, Wealth of Nations, 1:475.
  11. [xi] David S. Landes, The Wealth and Poverty of Nations: Why Some Are So Rich and Some So Poor(New York: W.W. Norton and Company, 1998), 58–59.
  12. [xii] O’Rourke, On the Wealth of Nations, 6.
  13. [xiii] Nicholas Phillipson, Adam Smith: An Enlightened Life(New Haven: Yale University Press, 2010), 268.
  14. [xiv] “What Is Christian Hedonism?” Desiring God, August 1, 2015, https://www.desiringgod.org/articles/what-is-christian-hedonism.
  15. [xv] Smith, Theory of Moral Sentiments, 277.
  16. [xvi] Smith, Theory of Moral Sentiments, 31.
  17. [xvii] Smith, Wealth of Nations, 2:309.
  18. [xviii] Smith, Theory of Moral Sentiments, 13.
  19. [xix] Smith, Wealth of Nations, 1:8.
  20. [xx] Leonard Read, “I, Pencil: My Family Tree as Told to Leonard E. Read,” The Freeman, December 1958, 32–37.
  21. [xxi] Smith, Wealth of Nations, 1:18.
  22. [xxii] Jonathan Edwards, Charity and Its Fruits or Christian Love as Manifested in the Heart and Life(1738; repr., New York: Robert Carter and Bros., 1854), 229.
  23. [xxiii] John Piper, “As Yourself,” Desiring God, August 24, 1982, https://www.desiringgod.org/articles/as-yourself.
  24. [xxiv] Kenneth J. Barnes, Redeeming Capitalism(Grand Rapids: Eerdmans, 2018).
  25. [xxv] John Piper, “Was Jonathan Edwards a Christian Hedonist?” Desiring God, September 29, 1987, https://www.desiringgod.org/articles/was-jonathan-edwards-a-christian-hedonist.
  26. [xxvi] John Piper, “How Should Christians Think About Socialism?” Desiring God, October 20, 2015, https://www.desiringgod.org/interviews/how-should-christians-think-about-socialism.
  27. [xxvii] Warren T. Brookes, The Economy in Mind(New York: Universe Books, 1982), 209.
  28. [xxviii] John Piper, “Why Does Piper Avoid Politics and What’s Trending?” Desiring God, October 15, 2018, https://www.desiringgod.org/interviews/why-does-piper-avoid-politics-and-whats-trending.

Por: Rick Segal. © Desiring God Foundation. Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: The Capitalist and the Christian Hedonist.

Original: O capitalista e o cristão hedonista. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.