As vacinas contra a COVID-19 e a Providência Divina

Jean Marques Regina
Thiago Rafael Vieira
Wladymir Soares de Brito Filho

No último dia 17/01/2021, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA,  aprovou, por unanimidade, a autorização temporária de uso emergencial da vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e da vacina Covishield, produzida pela farmacêutica Serum Institute of India, em parceria com a AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fiocruz.

Apesar desta excelente notícia, que expressa o cuidado de Deus – ou, como veem muitas tradições teológicas – a graça comum concedida a toda a humanidade, neste episódio exemplificada pela inteligência e competência de todos os seres humanos responsáveis por esta importante conquista, muitos cristãos têm adotado uma postura de que fazer uso das vacinas seria um sinal de “falta de fé”. Para estes, confiar na medicina humana seria desconfiar da soberania divina em proteger o seu povo das doenças e calamidades deste mundo.

Para abordar esta delicada, complexa e urgente situação à luz das Escrituras, e, por pelo menos duas lentes teológicas, a reformada e a luterana, é preciso trazer novamente aos corações e mentes da igreja brasileira dois elementos da cosmovisão cristã que são extremamente importantes para o dia a dia do povo de Deus nesta Terra: a graça comum, a doutrina da vocação e o respeito às autoridades governamentais.

Segundo o conceito da graça comum, Deus abençoa a humanidade em geral com virtudes e qualidades, independentemente das convicções religiosas e políticas das pessoas (Mateus 5.45). Nas palavras de Wayne Grudem, a graça comum de Deus na esfera intelectual resulta na capacidade dos seres humanos, crentes ou descrentes, de captar a verdade e distingui-la do erro, experimentando crescimento em conhecimento que pode ser usado na investigação do universo e na tarefa de dominar a Terra. Isso significa que toda ciência e tecnologia desenvolvida pela humanidade é resultado da graça comum de Deus, permitindo-lhes fazer descobertas e invenções dignas de nota.

Para facilitar a compreensão, vamos fazer uso de uma “parábola” certamente já conhecida de todos: certa feita uma pequena cidade foi devastada por uma tremenda enchente, daquelas de inundar tudo e, pela visão do Google Earth, somente se viam os telhados. E a água continuava a subir e a chuva continuava a cair. Nela havia apenas um homem (todos já tinham “escapulido”), que subiu até o telhado e de lá começou a orar pedindo a Deus para que a chuva parasse. Apareceu então uma canoa. O canoeiro gritou: “Venha, se salve!”, mas o homem respondeu: “Não posso! Estou orando e o Senhor vai fazer essa chuva parar!”. A água, contudo, continuou subindo. Apareceu então um barco a motor. Chamaram-no, mas ele deu a mesma resposta. Por fim, apareceu um helicóptero dos Bombeiros. Desceram uma cadeirinha até ele numa corda. Mas ele deu sinal que não ia, porque estava orando para a chuva parar. Aconteceu que a chuva aumentou, o homem foi levado pela correnteza, não sabia nadar e morreu afogado. Logo que chegou ao Céu, já foi brigando com o primeiro que encontrou, que foi São Pedro: “Deus não atendeu à minha oração!” disse ele. São Pedro então respondeu: “Como não atendeu, filho, se Deus lhe mandou a canoa, o barco a motor e até um helicóptero?”

Esta conhecida história serve para ilustrar como Deus “fala na língua dos homens”, valendo-se de pessoas de “carne e osso” para avançar seus propósitos na soberana condução da história. Fruto de uma interpretação profundamente alegórica das Escrituras Sagradas, sobretudo do Antigo Testamento, uma parcela considerável da igreja evangélica brasileira espera que as intervenções de Deus em favor do seu povo sejam sempre sobrenaturais, espetaculares e místicas (elas até podem acontecer). Contudo, o relato das Escrituras mostra Deus agindo em favor de seu povo por meio do imperador Ciro II, ao permitir que os judeus retornassem a sua terra natal (Esdras 1); do imperador Xerxes I, ao tornar sem efeito o édito de extermínio contra os judeus engendrado por Mordecai (Ester); ou mesmo usando a mula do profeta Balaão para abençoar o povo de Deus (Números 22.5-33).

Portanto, sem a pretensão de querer dar ordens ao povo de Deus quanto ao que é certo ou errado, mas com a firme intenção de influenciar uma tomada de decisão que seja mais racional, piedosa e ponderada, nosso propósito é faze-lo refletir, especialemente aqueles que adotam uma postura contrária à vacinação que, ao orarem e conversarem com Deus, considerem se a vacina não é exatamente um destes barquinhos, mandados por Deus, para salvar o homem ilhado pela chuva.

Neste aspecto, Lutero é enfático ao explicar o Primeiro Artigo do Credo Apostólico. Na expressão “Criador do Céu e da Terra” abarca pelo menos dois grandes princípios. O primeiro é que na Criação estão contidas todas as medidas para a preservação da vida, inclusive a racionalidade, a genialidade o espírito criativo e a inteligência humana para a busca do bem de todos, o bem comum. O segundo é que este meio de Seu cuidado e agir se dá justamente através das outras pessoas, que são chamadas (vocacionadas) e dotadas de talentos específicos – no caso, o saber científico, que irá operar em nosso favor. Esta visão da graça comum, seria o equivalente, na tradição teológica luterana, ao que chamam de “bênçãos do Primeiro Artigo”. Deus-em-Cristo ama a humanidade e a preserva.

Esta mesma questão da vacinação e o povo de Deus deve ser abordada, ainda, sob o prisma do testemunho do evangelho na ordem social. Relatos como os de Romanos 13.1-7, 1ª Pedro 2.13-14 e Mateus 22.15-22 mostram como como o cristão, transformado pelo Evangelho de Cristo, deve se comportar em relação às autoridades governamentais legitimamente constituídas, promovendo a justiça de Deus na vida diária.

Paulo, Pedro e Mateus nos ensinam que há um papel secular a ser desempenhado pelas autoridades governamentais legítimas: todos os seres humanos, cristãos ou não, devem obedecer às leis de seu país (se comportar como bons cidadãos), porque não há autoridade legítima que não proceda de Deus e não tenha sido por ele instituída. A autoridade governamental é estabelecida como uma serva de Deus para o bem do povo, tendo como objetivo principal recompensar aqueles que fazem o bem e punir aqueles que praticam o mal, mantendo a ordem na sociedade, como já dizia Martinho Lutero. Por tais razões, somos chamados a honrar as autoridades que Deus estabelece sobre uma nação por dever de consciência, e não por medo de coação.

Como afirma Karl Barth, aquele de quem procede todo o poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Criador e o Redentor, aquele que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todas as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e seu fim, sua justificação e sua condenação, seu “sim” e seu “não”.

Numa aplicação direta destes conceitos, cabe trazer à memória a doutrina reformada da soberania das esferas sociais, cuja origem remonta ao reformador João Calvino (1509-1564) e cuja sistematização se deu pelas mãos do teólogo holandês Abraham Kuyper (1837-1920). Trata-se da noção de que a sociedade é composta por várias esferas independentes, igualitárias e soberanas entre si (como igreja, família, estado, trabalho, arte e ensino). Como afirmava Abraham Kuyper, “não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”.

Todas as esferas que compõem a ordem social possuem o mesmo nível de importância e hierarquia entre si, e estão todas debaixo da soberania de Deus, sendo regidas por Ele. Estas dimensões da sociedade humana possuem suas próprias missões, propósitos e responsabilidades diferenciadas, razão pela qual os limites de atuação dentro de cada esfera devem ser respeitados.

Já o pensamento luterano sobre a doutrina da vocação, conforme já dito anteriormente, faz com que atuemos em nossos chamados como verdadeiras “máscaras de Deus”, onde Ele atua através de suas criaturas. E, neste ponto, importante notar a conexão. O “reino da fé” é relativo ao Céu; o “reino do amor” à Terra. Não podem ser confundidos, mas não são desconexos, como diria Gustav Wingren. E arremata: “Toda a obra de Deus é posta em movimento mediante a vocação: ele modifica o mundo e espalha sua misericórdia sobre a humanidade oprimida”.

Diante destas diretrizes para a relação entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus traçadas pela tradição cristã, temos que o cristão tem o dever de, por “amor ao Senhor”, se submeter às autoridades legitimamente constituídas, enquanto estas estiverem “recompensando o bem e punindo o mal”. Dentre estas autoridades estão aquelas responsáveis pelas questões sanitárias, tal como a ANVISA no caso brasileiro.

A fundamentada decisão da autoridade sanitária brasileira atestou, de forma unânime, a segurança e a eficácia das vacinas, debelando desconfianças e incertezas que acompanharam todas as fases de seus processos de desenvolvimento. Há de se respeitar, portanto, a autoridade da ciência e da medicina sobre esta área específica da vida humana. O povo de Deus não pode permitir que ideologias políticas quaisquer, verdadeiras idolatrias modernas conforme o alerta de David Koyzis, contaminem a decisão sanitária quanto ao uso de vacinas.

Portanto, diante de todos os fatos que levaram à autorização temporária de uso emergencial das vacinas CoronaVac e Covishield pela ANVISA no último dia 17/01/2021, é legítimo ao cristão se recusar a ser vacinado? Entendemos que o cristão está autorizado pelas Escrituras a ser desobediente apenas quando o governo comanda o mal, ou seja, apenas quando obedecer à autoridade importa em agir de forma expressamente contrária à Palavra de Deus.

Nas palavras de Franklin Ferreira, quando duas ordens diretas colidem, o cristão tem a liberdade de fazer uma escolha, e esta deve ser feita sem hesitação: ficar do lado de Deus, em vez de obedecer às autoridades que não estejam cumprindo com os seus chamados (Atos 5.29). Assim, quando as autoridades se tornam tiranas ou opressoras, deixam de ser autoridades ordenadas por Deus. Quando os cristãos desobedecem e resistem a elas, não estão resistindo à ordem de Deus.

Feito este alerta, entendemos que não há motivos para enxergar a vacinação como uma decisão da autoridade sanitária que contraria expressamente a vontade de Deus para o seu povo, não havendo, portanto, razões legítimas para que a igreja cristã no Brasil deixe de cumprir a orientação bíblica de obediência.

Concluímos assim que fazer uso das vacinas não é um sinal de “falta de fé”, muito menos de falta de confiança na providência divina, mas um claro sinal da graça comum que Deus, ou do cumprimento firme da ordem natural que estabeleceu no cuidado de uns com os outros através das vocações, em sua maravilhosa bondade e generosidade, derrama sobre toda sua criação, permitindo aos homens a inteligência necessária para desenvolver meios seguros e eficazes para pôr um fim a esta pandemia de Covid-19. Façamos assim a vontade Deus, que é sempre boa, perfeita e agradável.