A tecnologia no debate entre ciência e fé cristã

O debate sobre o relacionamento entre a ciência e a fé cristã tem atraído o interesse de diferentes tradições cristãs – visto que colocam a cosmovisão cristã sob a prova da realidade. Contudo, às vezes acaba por se concentrar nos campos da biologia e da física. Neste texto, busco apresentar a necessidade de atuação e produção cristã em uma área que tem sido deixada de lado nas discussões: a tecnologia, especialmente o uso e desenvolvimento de softwares.

A tecnologia tem se tornado cada vez mais onipresente, a ponto de parecer, aos nossos olhos, pertencente à ordem natural, sem sabermos como viver sem ela. Transporte, indústria, agropecuária, comunicação, mercado financeiro, saúde e muitas outras áreas seriam impossíveis na escala atual sem a tecnologia. O comportamento humano tem sido cada vez mais padronizado, a privacidade relativizada, a ética e a antropologia repensadas e a abordagem pastoral à tecnologia tem se limitado a lidar com vício em redes sociais e ao consumo de material e jogos impróprios.

Diante disso, apresento cinco tópicos para os quais deveríamos buscar desenvolver respostas cristãs em contraposição às respostas seculares. A proposta é apresentar questões sobre problemas existentes para incentivar a produção de boas respostas.

1. Uso responsável da tecnologia

Antes de nos aprofundarmos em questões específicas, deveríamos começar pelo testemunho básico: o uso responsável dos softwares e ferramentas. Não é raro igrejas usufruírem de pirataria ou não respeitarem devidamente licenças de uso. Algumas vezes, o erro acontece por desconhecimento, como no uso de alguma ferramenta que, mesmo que seja gratuita, possui requisitos de uso em sua licença que não são cumpridas.

Outras vezes, é a quebra do oitavo mandamento tão aberta e frequente que a consciência já está cauterizada. Não é raro o pecado ser justificado pelo preço do produto ou serviço oferecido, como se o alto custo de algo autorizasse o roubo. Neste ponto, portanto, encorajo juristas cristãos a desenvolverem uma forma das igrejas entenderem o uso correto dos softwares e que os presbíteros não deixem um pecado como o furto se tornar prática comum e aceita de uma igreja cristã.

2. Privacidade

A privacidade online tem se tornado tema recorrente no debate público. O Brasil, inclusive, aprovou a Lei Geral de Proteção de Dados, com diversas regras sobre o uso de dados dos usuários em softwares, afetando diversas empresas. Qual é o limite para que os benefícios oferecidos por uma ferramenta deixem de compensar a perda de privacidade? Deveríamos aceitar o uso de ferramentas e redes sociais sem ler os termos de privacidade? Considerando o papel que o cristianismo entende para o Estado, mesmo dentre suas diversas escolas de pensamento, qual o limite da intervenção estatal na regulação dos usos dos dados dos usuários por parte das empresas? Qual o impacto que a cosmovisão cristã trará em um desenvolvedor de software ao decidir sobre a obtenção e uso dos dados do seu usuário?

Devemos estar preparados para apresentar um uso sábio e maduro da tecnologia, cientes do valor das informações sendo entregues aos serviços utilizados.

3. O homem e sua relação com o outro

O que é o homem? Somos livres naquilo que decidimos e desejamos? Qual o limite da agência humana e o quanto somos manipulados para fazer o que fazemos? Atualmente, sistemas de aprendizado de máquina estão colocando as respostas existentes para estas questões sob forte tensão. Como as respostas cristãs lidam com a possibilidade de prever as decisões de uma pessoa a partir de um conjunto de informações obtido no decorrer do tempo? O consumo de produtos, informações, conteúdo e até mesmo decisões morais não são isentos da influência das informações apresentadas a nós e essas informações estão cada vez mais direcionadas e intencionais.

A despersonalização do outro através da tecnologia não se dá apenas pela virtualização dos relacionamentos, mas pela redução do significado de pessoa, visto que ela pode ter seus desejos previstos, estimulados e induzidos de forma bastante eficaz. Qual o efeito da Queda na facilidade em antecipar e manipular os desejos humanos?

4. Justiça social

Uma das grandes discussões atuais dentro da área da tecnologia hoje é sobre o viés dos dados obtidos e seu uso no aprendizado de máquina e inteligência artificial. Um exemplo onde ficou claro o problema de viés em modelos de dados foram os casos em que o Google Photos identificou pessoas negras como gorilas. Caso uma amostra de dados tenha mais brancos que negros, é possível que o software entenda uma pessoa branca com maior chance de ser pessoa que uma negra. Da mesma forma isso pode ocorrer na busca por profissionais: caso existam mais profissionais homens com boas avaliações que mulheres, um modelo poderia trazer a informação de que profissionais homens são melhores que mulheres.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas fica claro que há uma necessidade de representatividade dentro da tecnologia. Isso não implica nas políticas identitárias atuais, mas dialoga com elas. Considerando o entendimento cristão do pecado original, as decisões tomadas por uma ferramenta são neutras? De quem é a responsabilidade caso um software tome uma decisão racista?

5. Graça comum

Por fim, trago uma chamada a um relacionamento saudável com a tecnologia. Cada vez mais, ela participa de nossa vida; as assistentes virtuais se tornam mais úteis e inteligentes, a busca de informação se torna mais transparente e o conhecimento menos centralizado. Essas são coisas pelas quais devemos dar glória a Deus, louvando-o pela grandiosidade da sua graça.

Não podemos repetir erros do passado ao demorarmos na apresentação de respostas e apenas reagir sem sabedoria, recuando a um estado de negação e separação da cultura. Em um mundo onde a verdade é relativizada e todos anseiam por respostas, devemos apresentar a cosmovisão cristã como a única que realmente está fixa na realidade e a qual nosso coração deve estar totalmente comprometido.