Questionando o Criacionismo Evolutivo (Parte 1)

Deus Creator omnium. Assim se refere Agostinho ao “Deus criador de tudo que existe”. O Pai da Igreja, querido por protestantes e católicos, e que viveu entre os séculos IV e V, dedica um bom trecho de sua obra “Confissões” para tratar de assuntos relacionados à criação, mencionando a existência de variadas interpretações dos capítulos iniciais de Gênesis. E mesmo reconhecendo as divergências, o Bispo de Hipona, com o estilo poético que lhe é característico, não deixa dúvidas sobre sua convicção ortodoxa de que todas as coisas deste universo têm um Criador: “Pois o que existe sem que Tu o cries? Tu falaste e foram criados; em Tua palavra, Tu o criaste”.[i]

Vê-se que controvérsias sobre as origens no meio teológico não são novidade. Esse debate estende-se até os dias de hoje, tendo, porém, como novo elemento central o aparecimento da teoria de Darwin no século XIX e sua disseminação no meio cristão. Surge, então, a ideia de que o Deus da Bíblia teria criado o homem através da evolução. E é aqui que alcançamos uma encruzilhada que nos leva a alguns questionamentos. Se o Deus da Bíblia realmente criou o homem e as variadas espécies através de um processo evolutivo guiado, teria isso implicações para a fé cristã? E essas implicações seriam apenas relacionadas à compatibilidade ou incompatibilidade entre Bíblia e a teoria da evolução, ou seriam o sintoma de uma subordinação da igreja a filosofias seculares? Essas são questões centrais, dentre outras que devem ser abordadas acerca das origens.

Assim, este texto é o primeiro de uma série que tem como objetivo pensar as implicações teológicas do criacionismo evolutivo. A proposta é no sentido de contribuir no diálogo acerca desse assunto que se tornou um hot topic, e que nestes dias tem gerado discussões acaloradas com defesas apaixonadas das distintas posições.

Distinguindo-se do evolucionismo ateísta, que vê na aleatoriedade, no tempo e na seleção fatores-chave da evolução, o criacionismo evolutivo entende que o Cosmos e a vida na terra se desenvolveram por meio de um processo guiado por Deus.  Suas premissas básicas e a conclusão são as seguintes: 1. A evolução das espécies é fato, ou, no mínimo, a explicação mais provável para o desenvolvimento da vida na terra; 2. Deus existe; 3. Logo, Deus guiou a evolução.

A ideia de uma evolução guiada pelo Deus da Bíblia possui adeptos entre os protestantes, e na Igreja Católica é aceita como compatível com o texto bíblico, ainda que se insista na criação especial da alma.[ii] Contudo, como já foi apontado, não se pode ignorar suas implicações filosóficas e teológicas.

Portanto, no que diz respeito ao debate das origens há duas opções em cima da mesa: ou o homem e os seres vivos que habitam a terra foram criados prontos cada um segundo a sua espécie, ou todas as espécies são descendentes de um ancestral em comum. Cristãos que abraçam a segunda opção, terão de, inevitavelmente, apresentar soluções aos problemas teológicos que se desdobram. É possível falar em evolução biológica sem adotá-la como uma cosmovisão? É possível não haver consequências éticas ao assumirmos que o ser humano é produto biológico de vida em mutação, mesmo em um processo guiado por Deus? É possível conciliar o criacionismo evolutivo com o plano de redenção histórico que inicia em Gênesis? Seria o criacionismo evolutivo um sintoma de secularismo indevido dentro da igreja? Esses e outros questionamentos serão abordados nos textos seguintes desta série.

Para concluir este texto introdutório, caem bem as palavras de Agostinho em Confissões, livro XII, capítulo XIV, quando diz:

“Magníficas são as profundezas das Tuas palavras, cuja superfície está diante de nós, convidando os pequeninos, embora sejam magíficas profundezas. Ó meu Deus, quão magníficas profundezas! […] Há outros que não encontram falta, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis: “O Espírito de Deus”, dizem, “que por seu servo Moisés escreveu tais coisas, não quis dizer isso que tu dizes, mas o que nós dizemos”. E digo a Ti, ó Deus Soberano: sê nosso juiz.”[iii]


[i] Agostinho. Confissões. Ed. Principis. Jandira, São Paulo. 2019, p. 218.

[ii] Pio XII, Humani Generis 36. Trecho em inglês disponível em: https://www.catholic.com/tract/adam-eve-and-evolution. Acesso em: 26 de janeiro de 2021.

[iii] Agostinho. Confissões. Ed. Principis. Jandira, São Paulo, p. 244.