Igrejas fechadas e reuniões online: discernindo as vozes na discussão

“O que você acha, Allen? Como interpreta essa insistência de muitos religiosos por defender aglomerações no pior momento de uma pandemia?”

Para responder a essa pergunta, eu decidi escrever este texto.

Percebo em líderes cristãos que defendem igrejas fechadas e reuniões exclusivamente online, e nos “webcrentes” que tendem a segui-los, uma caracterização semelhante de quem pensa diferente.

Os adjetivos podem mudar um pouco, mas basicamente estão dentro do mesmo círculo: são legalistas, religiosos, manipuladores, intere$$eiros e sem amor. Nos piores casos, são chamados de assassinos e sem evangelho.

Deveria ser óbvio, por causa da Escritura, que adjetivações assim são fortes o suficiente para não lançar sobre irmãos com toda prodigalidade. A rapidez com que proferimos nossos juízos aponta para o desalinhamento do nosso coração. Inquietos, extravasamos em ira e contendas.

Antes que alguém queira apontar algo nesse sentido, já reconheço que muitos reformados e conservadores pecam pelo mesmo problema, e não é de hoje: rapidamente julgam os outros, chamando-os de hereges com uma facilidade de dar inveja a qualquer Torquemada. (Achou que ia se livrar, hein Olavo?).

Mas a questão que permanece é: como podemos interpretar essa insistência de alguns líderes e membros de igrejas para que seus prédios fiquem abertos e suas reuniões sejam mantidas?

A realidade possui nuances, e seria bom atentar para isso. Por exemplo, quando definimos a questão como “religiosos defendo aglomerações no pior momento da pandemia”, é difícil não exercer um juízo moral condenatório. É que a pergunta já definiu os termos da interpretação. Mas a primeira coisa a questionar são exatamente esses termos.

O que se pretende dizer por “religiosos”? Já os definimos como legalistas fariseus, ou estamos falando de “religiosos” em um sentido mais aberto, como líderes religiosos?

É verdade que os líderes estão defendendo aglomerações? Talvez alguém defenda isso – tudo é possível -, mas é essa a reivindicação fundamental?

Quanto ao “pior momento da pandemia”, há de se consultar a variedade de situações em um país tão grande como o Brasil. Em São Paulo nós podemos atestar a péssima situação, mas é a pior fase em todos os estados e municípios?

Quando questionamos os termos, podemos dar um passo além na pergunta: como interpretar o que está acontecendo?

Eu quero sugerir que uma boa maneira de interpretar é discernindo as diferentes vozes, e respondendo a cada uma particularmente.

Explico: Talvez só consigamos ouvir o ruído “abram as igrejas!”, mas é que a nossa pressa nos impede de ouvir melhor. Se prestarmos mais atenção, perceberemos diferentes posturas e reivindicações.

Uma delas é a dos legalistas, de fato. Pessoas que se comprometeram tanto com a formalidade da religião, que não conseguem lidar com situações diferentes. Essas pessoas precisarão ser repreendidas em amor e chamadas ao arrependimento. A sua motivação pode ter mais a ver com o conforto do ritual do que com a vida que brota do evangelho.

Outra voz é a dos exploradores, especialmente no quesito financeiro. Possivelmente, com a mudança para sistemas de contribuição online, os fiéis mais idosos tenham deixado de contribuir, já que não são familiarizados com internet banking. Seria vital reunir a igreja para que as contribuições permaneçam e o dinheiro chegue. Tais pessoas também devem ser repreendidas. Oportunistas, não têm interesse no evangelho e no povo de Deus.

Mas alguns param por aí, e deixam de notar as outras vozes. É hora de considerá-las.

Existe a voz daqueles que consideram que a melhor maneira de honrar a Deus é atendendo à santa convocação para estar fisicamente presentes no culto público. Não se trata de legalismo — os seus olhos estão no evangelho. Não se trata de aglomeração — alguns pastores estão se desdobrando para pregar em 3 ou mais cultos, para que a igreja, com número reduzido de pessoas, ainda possa cultuar. Chamaremos tais irmãos de religiosos inescrupulosos? Sua convicção vem de algum tempo de labor sobre o texto bíblico e a tradição cristã. Descartaremos isso como mera “falta de amor”? E se, para tais irmãos, esse for exatamente o gesto mais amoroso — aquele que permite aos cristãos ser confortados no encontro com o Senhor no culto? É óbvio que alguém pode discordar que o culto tenha que ser presencial, mas o fato é que para esses irmãos é assim. Isso significa que são ignorantes ou perversos? Certamente que não; apenas são coerentes com aquilo que acreditam.

Existe a voz daqueles que, como eu, defendem que não é papel do Estado se envolver nisso. Cabe à igreja definir esse ponto. Em minha igreja local estamos exclusivamente online, tendo como critério o fato de que há 100% de ocupação nos leitos de UTI. Mas quem deve decidir isso somos nós, e não a prefeitura, o governo, a presidência ou o STF. Falta amor nessa consideração? Como, se estamos online? Há interesse financeiro? Como, se permanecemos fechados? Há legalismo? Seria o primeiro caso de legalistas que quebram o formalismo.

Deve haver mais vozes por aí, mas eu já escrevi demais. Classificar alguém como sem amor é cravar um juízo apressado e duro sobre irmãos piedosos que estão apenas buscando ser coerentes com o que acreditam.

Podemos discordar e ter perspectivas bem diferentes sobre o ponto. Podemos até mesmo usar linguagem dura, segundo a urgência que percebemos na questão, mas se estivermos mais prontos a julgar motivações e executar sem sabedoria e discernimento, então já teremos feito pior do que o vírus; teremos assassinado irmãos no espírito de Mateus 5.21-22:

21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.