Um blog do Ministério Fiel
A reforma acidental: como Lutero e Calvino reformaram a família
A capa da revista Washingtonian, em outubro de 2019 chamou minha atenção. O texto da capa alardeava “mulheres poderosas” e apresentava fotos de muitas mulheres talentosas. Mas, enquanto examinava a capa, percebi que faltava um “emprego” na lista de senadores, CEOs e proprietários de pequenas empresas: dona de casa.
Essa omissão me lembrou da distinção entre uma teologia cristã da feminilidade e uma visão secular da feminilidade. Nossa cultura estima o “poder”, mas não estima a servidão. No entanto, a teologia cristã da feminilidade – assim como a imagem bíblica da masculinidade, do casamento e da família – eleva nossas expectativas. No reino de Cristo, a servidão é exaltada, a educação abnegada dos filhos é uma honra para Deus e o auto sacrifício é nada menos do que divino.
Não é assim no mundo e em nosso mundo. A família é, para muitos, uma reflexão tardia na era atual, uma era acelerada, de construção de marcas e de carreiras. Mas nas Escrituras, a família é a primeira instituição. Criada em Gênesis 2, é o palco no qual o belo plano de Deus para homens e mulheres é vivido, um drama que flui suavemente enquanto homens e mulheres desempenham seus papéis.
Felizmente, nossa geração não é a primeira a conhecer essas verdades desprezadas. Martinho Lutero e João Calvino representam dois teólogos da Reforma, aquele movimento bíblico que há muito tempo, promoveu a visão de Deus para a família e levou muitos a fazerem o mesmo. Neste breve ensaio, examinaremos suas contribuições teológicas notáveis sobre esses assuntos, explorando-as como uma convocação para abraçar tudo o que as Escrituras ensinam.
“Obras douradas e nobres”: Martinho Lutero sobre a vocação
A compreensão moderna do trabalho funciona assim: primeiro descobrimos o que mais queremos e, em seguida, classificamos as vocações de acordo com isso. Em seus próprios modos distintos, o pensamento secular, neomarxista e feminista nos diz para estimar o poder, a influência política e o dinheiro. Portanto, empregos que oferecem poder, influência política e dinheiro são os melhores, e aqueles que não, têm pouco ou nenhum valor.
Isso é exatamente o oposto de como Lutero (1483-1546) via o trabalho. Como um teólogo protestante maduro – o primeiro! – ele reformulou o trabalho como um chamado ou vocação. Na teologia católica, o trabalho espiritual é valorizado, as realidades mundanas não. O sacerdote era o mais próximo de Deus e, por isso, o trabalho dele era o mais importante. Mas, nas Escrituras, Lutero encontrou a brilhante verdade doutrinária de que toda a vida deve ser vivida coram deo, para Deus (1Co 10.31). Consequentemente, Lutero disse de homens e mulheres cristãos que “mesmo suas obras aparentemente seculares são uma adoração a Deus e uma obediência que agrada a Deus.” Isso se aplica ao trabalho doméstico, que pode “não ter aparência de santidade. . . e, no entanto, essas mesmas obras em conexão com a família são mais desejáveis do que todas as obras de todos os monges e freiras, por mais laboriosos e impressionantes que sejam”.[i]
A teologia raramente apresentou uma recuperação maior da verdade do que esta. A visão de Lutero, bíblica, encanta toda a vida cristã. Você pode imaginar um pensamento mais libertador do que este? Pense em um camponês que trabalhou por muito tempo em um campo ingrato ou em uma mulher de origem humilde no século XVI que deu à luz nove filhos com poucos elogios ou recompensas. O corpo dele doía, assim como o dela; eles assumiam suas tarefas diariamente, mas com pouca sensação de alegria; eles labutavam no anonimato, na incerteza e às vezes na humilhação.
Mas aqui surge Lutero de Wittenberg. Aqui vem uma palavra de alívio, revigoramento e entusiasmo. Toda aquela sujeira nos campos lamacentos? Toda aquela administração doméstica dolorosa? Todos os desafios, provações e dificuldades de criar filhos? Na teologia de Lutero, tal esforço brilhava com beleza e com glória. Tudo importava – tudo era importante para Deus. Deus viu. Deus amou isso. Deus os recompensaria no último dia.
Partindo dessa base, Lutero treinou cuidadosamente seus olhos na criação de crianças:
“A esposa também deve considerar seus deveres da mesma maneira, ao amamentar o filho, embalá-lo, banhá-lo e cuidar dele de outras formas; enquanto ela se ocupa com outros deveres e presta ajuda e obediência a seu marido. Estas são obras verdadeiramente de ouro e nobres. . .. Agora me diga, quando um pai lava fraldas ou realiza alguma outra tarefa menos nobre em favor de seu filho, e alguém o ridiculariza como um tolo afeminado, embora esse pai esteja agindo no espírito que acabamos de descrever e na fé cristã, meu caro amigo diga-me, qual dos dois está ridicularizando mais agudamente o outro? Deus, com todos os seus anjos e criaturas, está sorrindo, não porque aquele pai está lavando fraldas, mas porque o faz na fé cristã.”[ii]
As mães têm a capacidade de dar à luz e criar filhos, e isso sinaliza uma parte fundamental de sua vocação de vida. Todo o trabalho doméstico de uma mulher – incluindo “ajuda e obediência” ao marido de acordo com 1 Pedro 3. 1 – honra o Senhor de uma maneira profunda. Lutero usou uma palavra caracteristicamente colorida para resumir tal investimento: “ouro”, ele a chamou. Que palavra adorável para descrever uma vocação verdadeiramente sobrenatural, a vocação de uma esposa e mãe cristã. Cada minuto de sua criação era contado para o Senhor. Esses momentos aparentemente humildes brilham com honra eterna.
Há muito o que pensar nessa formulação da feminilidade. Primeiro, Lutero sabia, como nós sabemos, que a vida de uma mãe envolve mais do que este trabalho. Em segundo lugar, confessamos com alegria que existem muitas maneiras pelas quais uma mulher piedosa pode glorificar ao Senhor (seja casada ou solteira). No entanto, Lutero viu um grande valor na maternidade, um papel que é mais do que uma vocação temporária durante os pequenos anos, pois é realmente um modo de vida, assim como a paternidade. Terceiro, notamos que Lutero apresenta pai e mãe ajudando os filhos. Na verdade, Lutero ensinou que o pai deve sustentar sua família, mas ele claramente acreditava que um pai deveria abençoar sua esposa criando bem seus filhos (em cumprimento a 1 Timóteo 3.1-7).
“Ele está muito satisfeito”: Calvino sobre a família
João Calvino (1509–1564) concordou com Lutero. Ele o fez em meio a divergências. Muito antes de as várias ondas de feminismo estourarem no Ocidente, Calvino observou em seu púlpito, em Genebra, que alguns desprezavam a vocação feminina. Eles eram “tolos” por fazer isso. Ele escreveu:
Na verdade, há uma série de tolos que, quando falam dos deveres das mulheres, de cuidar de seus filhos, zombam e as desprezam. Mas e então? O que diz o Juiz celestial? Ele diz que está muito satisfeito com isso, o aceita e considera isso em suas contas. Portanto, que as mulheres aprendam a se alegrar quando cumprem seu dever e, embora o mundo o despreze, deixe esse conforto adoçar todo o respeito que possam ter dessa maneira, e diga: “Deus me vê aqui, e seus anjos são testemunhas suficientes de minhas ações, embora o mundo não as aprove.”[iii]
Que impressionante. Às vezes pensamos em contextos como o de Calvino (Europa do século 16) em termos monolíticos. É claro que todos naquela época apoiavam sem pensar os papéis de gênero, murmuramos. Hoje estamos iluminados. Nem tanto. Claramente, muitos falaram contra a feminilidade bíblica. Muitos não gostavam da visão contra cultural de uma mãe e dona de casa, uma mulher focada no bem de sua família, tanto naquela época quanto agora. Eles não esconderam seu “desprezo” por tais mulheres, e certamente não esconderam seu desprezo por Calvino, o pastor teólogo que pregou sem vacilar sobre tais “deveres”. Apesar da oposição, Calvino não vacilou. Como Lutero, ele lançou a defesa de tal trabalho vocacional em termos teocêntricos. Embora “o mundo não aprove” esses deveres, “Deus me vê”, ele imaginou uma mulher piedosa dizendo a si mesma.
Calvino não falou apenas sobre a feminilidade bíblica. Ele chamou os homens para um padrão muito alto no lar. Homens servidos pelo chamado de Deus como “cabeça” do lar (ver Ef 5.22-33). Para honrar a Deus neste papel, eles precisavam de instruções:
“Portanto, o que deve ser observado aqui é que os chefes de família devem se dar ao trabalho de serem instruídos na Palavra de Deus se quiserem cumprir seu dever. Se eles são estúpidos, se não conhecem os princípios básicos da religião ou da sua fé e não conhecem os mandamentos de Deus ou como a oração deve ser oferecida a ele ou qual é o caminho para a salvação, como eles irão instruir suas famílias? Ainda mais, então, aqueles que são maridos e têm uma família, uma casa para governar, devem pensar: “Devo estabelecer meu ensino em sua Palavra para que não tente apenas governar de acordo com sua vontade, mas que eu também traga para ele, ao mesmo tempo, aqueles que estão sob minha autoridade e orientação.”[iv]
O piedoso chefe do lar tinha que primeiro se conduzir espiritualmente antes de poder liderar uma esposa e filhos. Calvino não estabeleceu um padrão impossível para os homens cristãos. Em vez disso, ele os chamou a “conhecer os princípios básicos da religião” para que pudessem orar fielmente e ensinar a verdade. O marido e pai não estava isolado de seus entes queridos. Ele tinha “uma família para governar”, no pensamento de Calvino. Ele tinha uma esposa para pastorear. Ele tinha filhos para treinar. Ele tinha uma palavra para aprender, estudar, amar e obedecer.
Como Lutero, Calvino estimava as crianças. Ele chamou os homens em particular para investir nelas:
“A menos que os homens considerem seus filhos um dom de Deus, eles serão descuidados e relutantes em prover seu sustento, assim como, por outro lado, esse conhecimento contribui em um grau muito eminente para encorajá-los a criar seus filhos. Além disso, aquele que assim reflete sobre a bondade de Deus em dar-lhe filhos, irá, prontamente e com uma mente estável, procurar pela continuidade da graça de Deus; e embora ele possa ter apenas uma pequena herança para deixar para eles, ele não será indevidamente cuidadoso por causa disso.”[v]
Calvino sabia tudo sobre as tentações que os homens enfrentam. Ele entendeu que os pais têm que batalhar na carne para priorizar seus descendentes. Ele sabia que às vezes lutariam para encontrar a vontade de sustentar sua família. Ele sabia que os homens se preocupariam com as finanças e, portanto, às vezes tenderiam à mesquinhez. Embora nunca elogiasse gastos tolos, Calvino exortou os homens sob seus cuidados pastorais a exercerem generosidade. Essa disposição originou-se de uma visão da paternidade centrada em Deus. Deus o pai mostrou muita “bondade” e “graça” ao seu povo; portanto, os pais terrenos devem mostrar o mesmo aos seus filhos.
Uma reforma da família
Lutero e Calvino escreveram há cerca de 500 anos atrás. Eles podem nos parecer relíquias de um passado distante. Mas, na verdade, vemos em suas teologias da família que eles enfrentaram os mesmos desafios que nós. As pessoas ao redor deles resistiram à concepção bíblica de masculinidade, feminilidade, casamento e família. As pessoas desprezavam o encantador plano de Deus para o lar cristão. Embora devessem ter adorado a Deus pela ordem doxológica dos sexos e da família, eles optaram por sair. Eles fizeram o oposto, exatamente como fazem hoje.
Nunca haverá um tempo antes da vinda de Cristo quando o homem natural amará as coisas de Deus (1Co 2.14). Em nosso estado natural, todos rejeitamos Deus e sua sabedoria. Não estimamos inatamente o conselho de Deus, nem em nossa carne abraçamos avidamente sua ordem. Além disso, nenhum pecador não regenerado adota de bom grado a mente de um servo, a própria mente de Cristo Jesus, que veio não para ser servido, mas para servir (Mt 10.8; Fp 2.5-11). Nenhum de nós se conforma naturalmente à imagem de Cristo. Em vez disso, ansiamos pelo que o mundo anseia: queremos poder. Queremos o louvor do homem. Queremos dinheiro. Não queremos parecer estranhos ou esquisitos. Queremos ser cristãos, sim, mas enfrentamos a tentação interna de sermos culturais. Afinal, ser cultural remove o escândalo do Evangelho e remove o ferrão de nosso testemunho.
Mas esta não é nossa teologia. Nossa teologia, como Lutero disse eloquentemente, é moldada por Cristo. Crux sola est nostra theologia, escreveu ele; “Só a cruz é a nossa teologia.” Não nos lembramos dessa verdade bíblica apenas quando refletimos sobre a expiação, ou meditamos sobre soteriologia de alto nível, ou discutimos doutrina em um seminário de doutorado. Nós nos lembramos da cruz quando pela milésima vez – pela décima milésima vez – trocamos outra fralda, ou lavamos outro prato, ou secamos outra lágrima, ou lideramos outra devocional familiar, ou acordamos a qualquer hora no meio da noite para sustentar a vida, ou falar gentilmente sobre outro conflito conjugal, ou dirigir pela manhã escura para prover, ou acordar cedo para alimentar nossa alma para que possamos alimentar os outros.
Em todo esse trabalho, em todo esse esforço custoso, em todo esse anonimato auto sacrificial, Deus se agrada. O Senhor sorri. O Senhor é honrado; o diabo é ridicularizado. A cruz sozinha é nossa teologia, e a vida compartilhada de nossa família brilha com glória, transborda de honra e oferece louvor vivo a nosso Senhor.
[i] Martin Luther, Luther’s Works, vol. 2, Lectures on Genesis, Chapters 6–14 , ed. Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia, 1960), 349.
[ii] Martin Luther, “The Estate of Marriage, 1522,” in Luther’s Works, ed. Helmut T. Lehmann, vol. 45, Christian in Society II, ed. Walther I. Brandt (Minneapolis: Fortress, 1962), 39–40.
[iii] John Calvin, Sermon on 1 Timothy 2, accessible at http://www.truecovenanter.com/calvin/calvin_19_on_Timothy.html .
[iv] John Calvin, Sermon on Genesis 18, accessible at https://www.monergism.com/father%E2%80%99s-main-responsibility-genesis-1819 . (See the Sermons on Genesis volume from Banner of Truth.)
[v] John Calvin, Commentary on the Book of Psalms (Edinburgh: Calvin Translation Society, 1845-49), 111.