Galileu, Fé, Ciência e o Criacionismo Evolutivo

Este é o segundo texto da série que se propõe a trazer questionamentos pontuais ao criacionismo evolutivo.[i] Devemos considerar que esta não é a primeira vez que a igreja é desafiada em relação a um encontro conflituoso da teologia com a ciência. O famoso episódio envolvendo Galileu Galilei é constantemente citado tanto para desacreditar uma perspectiva religiosa sobre a ciência quanto para encorajar uma conciliação. De fato, a Igreja Católica Apostólica Romana à época tornou-se uma barreira contra o conhecimento empírico sobre a natureza com base em sua suposta autoridade para definir verdades acerca da revelação geral, a natureza.  O que pouca gente fala, no entanto, é que a perseguição da Igreja de Roma contra Galileu nunca foi um confronto entre fé e ciência, mas sim entre duas teorias sobre o movimento dos astros e dos planetas no universo.

A cosmologia aristotélica tinha um entendimento geocêntrico, ou seja, de que o universo gira em torno da terra. Ela tornou-se hegemônica durante a idade média por conta da forte influência da filosofia grega entre os teólogos através da Escolástica. A revolução Copernicana, por seu turno veio para substituir o geocentrismo ao propor que a terra não é o centro do universo, e junto com os demais planetas gira em torno do sol – ao que se denomina heliocentrismo. Galileu, defensor da teoria de Copérnico, foi então acusado de heresia pela Inquisição Romana. John Frame, em sua obra ‘A History of Western Philosophy and Theology’, explica os acontecimentos:

“No famoso encontro entre Galileu  e a igreja sobre  heliocentrismo, nenhuma das partes se referia muito às Escrituras. O conflito não era tanto sobre a ciência e a Bíblia quanto o era sobre ente a ciência e a cosmologia Aristotélica que a igreja tinha imposto sobre a Bíblia. Ainda que os pensadores da Renascença tivessem novas ferramentas linguísticas e textuais para entender as Escrituras, nenhum deles (até a Reforma) desafiou as pressuposições filosóficas e culturais com a cosmovisão da Bíblia.” [ii]

Gênesis dá a entender que a terra foi criada antes de qualquer outra matéria no universo, mas não nos dá margem para concluir que ela se tornou o centro físico do universo após os astros serem criados. O heliocentrismo nunca seria antagônico à Bíblia, exceto se ela fosse interpretada em síntese com uma filosofia natural equivocada, tal qual era a de Aristóteles acerca do cosmos.  Galileu, o que chamaríamos hoje de um cientista cristão, sabia disso e não deixou que sua fé fosse um entrave ao que ele aprendeu de suas observações e estudos sobre o sistema solar. Ele foi um Cristão devoto até o fim de sua vida, e nunca viu um divórcio da religião e ciência, mas apenas um casamento saudável entre ambas. Nas suas palavras, “Deus é conhecido pela natureza em suas obras, e pela doutrina em Palavra revelada[iii].

É importante se ter em mente que o evolucionismo é peça indispensável para a narrativa do naturalismo filosófico, cujo pressuposto é o de que tudo que existe no universo é matéria e energia. Essa é a mentalidade que permeia grande parte da  comunidade científica em geral e acaba por definir a ciência, hoje enclausurada pelo secularismo humanista. A teoria da evolução, por sua vez, é uma explicação plausível dessa visão de mundo dentro da história natural para o aparecimento do universo e do desenvolvimento da vida sem a necessidade de uma mente inteligente que transcenda o espaço-tempo.

Portanto, se os defensores do criacionismo evolutivo se utilizarem do episódio de Galileu para argumentar que não se pode fazer uma interpretação literal de Gênesis, acabarão, ironicamente, cometendo o mesmo erro dos teólogos daquele período da história quando condescenderam com uma síntese da Bíblia com o que à época era considerado ciência. Ao impor um pensamento filosófico diverso sobre as Escrituras, os criacionistas evolutivos desestimulam o ensino do design inteligente, uma teoria científica que compreende que as espécies surgiram prontas, tal qual o livro de Gênesis aponta.

Resta demonstrado, assim, o perigo da promiscuidade entre a fé cristã e pensamentos extra-bíblicos. Deve-se levar em consideração isso, que o erro da Igreja no referido episódio de Galileu foi abraçar uma síntese de Gênesis com a filosofia natural de Aristóteles. O questionamento para hoje é este: o criacionismo evolutivo vem, de fato, a cooperar com a reunião da fé com a ciência, ou é sintoma de um secularismo indevido que adentrou a igreja e impõe uma síntese da Bíblia com o naturalismo filosófico?


[i] Você pode ler o primeiro texto neste link: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2021/02/questionando-o-criacionismo-evolutivo-parte-1/

[ii] FRAME, John M. A History of Western Philosophy and Theology. Phillisburg/NJ, P&R Publishing, 2015, p. 170-171. (Tradução minha).

[iii] Disponível em: https://www.christianitytoday.com/history/people/scholarsandscientists/galileo-galilei.html. Acesso em: 27 de março de 2020.