Um blog do Ministério Fiel
Como subir ao terceiro céu
“Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi arrebatado até ao terceiro céu (se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe) e sei que o tal homem (se no corpo ou fora do corpo não sei, Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir.” (2Co 12.2-4)
Sempre achei significativo que o apóstolo tenha vivido essa experiência espiritual sem discernir se ela ocorreu “no corpo ou fora do corpo”. Ele não só conviveu com essa dúvida, mas achou relevante registrá-la enfaticamente, citando-a duas vezes na mesma sentença. Por que isso importa? Há cerca de trinta anos me faço essa pergunta, e não julgo ter a resposta completa. Mas creio que entendi algumas consequências de ignorar esse dado, e elas abarcam aspectos de uma compreensão cristã da ciência moderna.
Malcolm Jeeves, psicólogo cristão inglês e pesquisador notável em neurociência, comentou essa passagem bíblica no livro Mentes, cérebros, almas e deuses: uma conversa sobre fé, psicologia e neurociência (Viçosa: Ultimato, 2016), que aborda vários tópicos de interesse para cristãos nessa área. O autor incluiu ali considerações sobre experiências extracorpóreas e descreveu algumas pesquisas neurocientíficas interessantes que vêm sendo conduzidas sobre isso. Ele também mencionou causas conhecidas dessas experiências, como drogas e desordens cerebrais “como a epilepsia ou a esquizofrenia”, embora tenha enfatizado que “a maior parte dos relatos dessas experiências vem de pessoas comuns em circunstâncias de vida comuns” (p. 107). E conclui que “agora começamos a entender um pouco mais claramente a base neural dessas experiências incomuns” (p. 108).
O que tudo isso tem a ver com a experiência do apóstolo? O argumento de Jeeves é vago nesse ponto, mas ele cita com aprovação as palavras do teólogo Joel Green, que traz duas considerações (p. 106):
- “Primeiro, é improvável que Paulo relate […] uma experiência fora do corpo, pois, do contrário, ele poderia ter descrito com certeza que essa ‘visão e revelação’ foi de fato fora do corpo”. O argumento parece se basear no fato de que, nas pesquisas modernas, as pessoas vivem com clareza a pretensa saída do corpo. Portanto, se Paulo tivesse uma experiência desse tipo, não teria dúvidas a respeito.
Naturalmente, para que neurocientistas modernos possam investigar o fenômeno, a cobaia precisa relatar uma experiência que percebe como extracorpórea. Mas não se segue daí que toda experiência extracorpórea tenha de ser vivida assim. O argumento é circular. A limitação é da ciência, não do objeto de investigação.
- Os estudos mostram que “experiências fora do corpo são geradas em nossos corpos, por nossos cérebros”, o que refuta a tese de que “existe um ego etéreo que pode se separar de nossos corpos materiais”. A referência parece ser aos mesmos trabalhos científicos que o próprio Jeeves cita em seguida, ou outros semelhantes.
Note-se que Green julga poder falar confiantemente sobre o que aconteceu ou não no cérebro do apóstolo durante sua visão, como se sua atividade cerebral tivesse sido monitorada, o que, sem dúvida, não ocorreu. Seu argumento pressupõe que todas as experiências extracorpóreas funcionam do mesmo jeito: como nos experimentos dos neurocientistas. Porém, faz alguma diferença o fato de que a experiência de Paulo decorreu de iniciativa divina, e não de drogas, esquizofrenia ou estímulos humanamente induzidos no contexto de experimentos científicos. Outra diferença é que, nos casos estudados por neurocientistas, as pessoas relatam sobrevoar o quarto em que estão, enquanto Paulo subiu ao terceiro céu. Além disso, se o propósito é evitar conflito com a ciência moderna, não resolve o problema dizer que a alma de Paulo não saiu do corpo, pois a alternativa é dizer que Paulo subiu ao terceiro céu com corpo e tudo, e isso também não deixaria a comunidade científica muito feliz.
O endosso lamentável de Joel Green, porém, não é tudo. O autor piora a situação ao acrescentar suas próprias palavras: “Diria ainda que o modo como se interpretam experiências que ocorrem como resultado do funcionamento de certas partes do cérebro depende muito da tradição onde se está inserido”. Ele passa a citar um estudo que comparou cérebros de “experientes meditadores budistas” enquanto acessavam o nirvana com cérebros de cristãos que experimentaram “um sentido de união mística com Deus” e diz que a atividade cerebral em ambos os casos é a mesma.
Não fica clara a pertinência disso para a compreensão da experiência de Paulo, que não relatou ter tido uma união mística com Deus ou atingido o nirvana, e sim “apenas” ter subido ao paraíso e ouvido palavras inefáveis. Tampouco temos qualquer indício sobre o que Paulo fazia quando teve a visão, e nada sugere que estivesse meditando. Outro problema é que Jeeves parece acreditar que, em vista da identidade do fenômeno cerebral, a experiência espiritual de meditadores cristãos e budistas é a mesma, restando diferença apenas na interpretação subjetiva, culturalmente condicionada. Nesse caso, a idolatria da ciência atingiu aqui seu ápice, com a qualidade da experiência espiritual sendo aferida por tomografia. E o pior de tudo: será que a ida ao paraíso e as palavras inefáveis ouvidas são apenas a interpretação culturalmente condicionada que Paulo deu à sua experiência? Se não foi isso o que o autor quis dizer, qual é o propósito dessa observação? Há um mundo de problemas e absurdos nessas poucas palavras.
Na verdade, nada do que Jeeves diz tem qualquer utilidade para descobrirmos se Paulo estava no corpo quando subiu ao terceiro céu. Tudo o que sua competência científica pôde acrescentar foi a presunção de sugerir que a ignorância apostólica se dissiparia com aulas de neurociência. Mas o texto bíblico diz muito mais sobre os limites da razão humana e sobre a humildade que deve decorrer daí. Para além disso, o valor da discussão de Jeeves reside principalmente no mau exemplo: adverte que ser um cientista competente não basta para ser um pensador consequente sequer em seu campo de especialidade; e que um cristão pode pensar como um descrente, mesmo sobre temas inconfundivelmente celestiais.