Um “cercado”: como Charles Spurgeon promoveu uma membresia significativa

Em 1851, bem na época em que Charles Spurgeon começou a pregar, um censo religioso foi feito em todo o Reino Unido. Cerca de 61% da população frequentava a igreja. A título de comparação, em 2020 nos Estados Unidos, a frequência à igreja estava em torno de 20%; no Reino Unido estava mais próxima de 5%. Você consegue imaginar se todas as nossas igrejas triplicassem de tamanho? Dado o declínio religioso em nossos dias, é fácil nos impressionarmos com essas estatísticas de 175 anos atrás. Simplificando, na época de Spurgeon, ser inglês era ser cristão.

Contudo, Spurgeon não ficou impressionado. Apesar de toda a atividade religiosa em torno dele, Spurgeon viu que nem tudo daquilo era verdadeiramente espiritual. Pregando em 1856, ele disse:

Ao percorrer esta terra, sou obrigado a chegar a esta conclusão: que em todas as igrejas há multidões que tem “nome de que vivem e estão mortas”. A religião está na moda. Um lojista dificilmente conseguiria ter sucesso em seu negócio se não estivesse ligado a uma igreja. É considerado respeitável e honroso frequentar um lugar de adoração, por isso homens se tornam religiosos.[1]

Infelizmente, muitas igrejas não estavam colaborando com a situação. Seus pastores abrandavam a distinção entre a igreja e o mundo no intuito de alcançar os não salvos. Spurgeon reflete:

Eles dizem: “Não marquemos nenhuma linha definitiva. Muitas pessoas boas que podem não estar bem decididas frequentam nossos cultos, mas, ainda assim, suas opiniões devem ser consultadas e seus votos, aceitos para a escolha de um ministro, e deve haver entretenimento e diversão dos quais eles possam participar”.  A teoria parece sugerir que é bom ter um caminho largo da igreja para o mundo; se isto for posto em prática, o resultado será que a igreja nominal usará esse caminho para ir para o mundo, mas ele não será usado na outra direção.[2]

Com a ascensão do liberalismo teológico em sua época, havia cada vez menos aspectos da igreja que eram distintos do mundo, tanto no que eles acreditavam como na forma como viviam. Mesmo quando o nominalismo cristão estava desenfreado, a igreja se parecia cada vez mais como o mundo.

Então, como Spurgeon lutou contra tudo isso?

Se você já ouviu alguma vez a história de vida e ministério de Spurgeon, você provavelmente ouviu algo sobre os sermões que ele pregou, os livros que ele publicou, os orfanatos que ele criou, o Colégio de Pastores que ele dirigiu, e assim por diante.  Contudo, tendemos a ignorar que, mais do que qualquer outra coisa, Spurgeon era um pastor. Ele não era primariamente um palestrante cristão ou um diretor executivo qualquer. Não; ele pastoreou uma igreja local. E como um batista, uma de suas convicções fundamentais era de que as igrejas deveriam ser constituídas apenas por crentes nascidos de novo.

Isso é o que chamamos de membresia regenerada de igreja. Aqui está o que Spurgeon disse sobre a membresia da igreja:

No que diz respeito a todos os membros desta assembleia seleta, há um propósito eterno que é a razão original de terem sido chamados e para cada um deles há um chamado eficaz pelo qual eles se reúnem na igreja; então, também, há um cercado em torno desta igreja, pelo qual ela é mantida como um corpo separado, distinto de todo o resto da humanidade.[3]

Esta obra de “cercar” é o que mantém a igreja distinta do mundo. E como pastor do Tabernáculo Metropolitano, Spurgeon via isso como um de seus principais deveres.

As Práticas do Tabernáculo Metropolitano

Agora, uma coisa é falar da igreja ser distinta. Mas como Spurgeon cultivou uma membresia significativa em uma igreja com mais de 5 mil membros?

 

1. Eles protegiam a porta da frente

Uma das principais formas de Spurgeon promover uma membresia de igreja significativa foi por meio do rigoroso processo de membresia de sua igreja.

Para resumir, este processo teve pelo menos seis etapas:

  • Uma entrevista com um presbítero: Um visitante viria, em um dia de semana, para se encontrar com um presbítero da igreja e compartilhar seu testemunho e seu entendimento do evangelho. O presbítero faria perguntas complementares e registraria o testemunho em um de seus Livros de Testemunho da igreja. Se o presbítero sentisse que essa era uma profissão de fé sincera, seria recomendado que se encontrasse com o pastor.
  • Entrevista pastoral: Spurgeon revisaria os testemunhos que foram registrados, e, em outro dia, o candidato viria se encontrar com ele. Algumas entrevistas eram casos claros de conversão, e Spurgeon tinha a alegria de se regozijar na graça de Deus com o candidato. Outros casos resultariam em mais perguntas, enquanto Spurgeon examinava sua história e entendimento do evangelho. Poderia ser intimidador encontrar-se com um presbítero ou pastor, mas essa nunca era a intenção de Spurgeon. Em vez disso, ele via cada entrevista para membresia como uma chance de iniciar o pastoreio. Ele escreve:

Sempre que ouço falar de candidatos alarmados por estar perante nossos presbíteros, ou ver o pastor, ou fazer confissão de fé perante a igreja, gostaria de poder dizer a eles: “Deixem seus temores, amados; nós ficaremos alegres em vê-los, e vocês acharão seu trato conosco um prazer, em vez de uma provação.” Longe de querer repelir vocês, se realmente amam o Salvador, nós nos alegraremos em recebê-los. Se não pudermos ver em vocês a evidência de uma grande mudança, nós iremos gentilmente apontar-lhes nossos temores e ficaremos ainda mais felizes de conduzi-los ao Salvador; mas estejam certos disso, se vocês realmente crerem em Jesus, vocês não acharão a igreja terrível.[4]

  • Proposta para a congregação e a designação de um mensageiro: O próximo passo seria que o presbítero que realizou a entrevista apresentasse o nome do candidato e o propusesse para membro em uma reunião congregacional da igreja. A congregação então votaria para aprovar um mensageiro para fazer um inquérito.
  • Inquérito do mensageiro: O mensageiro nomeado (geralmente um diácono ou presbítero) visitaria o local de trabalho, casa ou o bairro do candidato e faria uma investigação a respeito de seu caráter e reputação. Como eles eram em casa? Eles tinham uma boa reputação no trabalho? Em uma ocasião, um policial suspenso se candidatou para membresia no Tabernáculo, e Spurgeon encorajou o mensageiro a fazer um inquérito cuidadoso na delegacia a respeito dos detalhes de sua suspensão. Esses inquéritos não apenas verificavam a profissão de fé do candidato, mas também abriram portas para o evangelho.
  • Entrevista congregacional e votação: Uma vez que o mensageiro terminasse seu inquérito, na próxima reunião congregacional, ele relataria suas conclusões. O candidato também estaria presente na reunião e seria apresentado à congregação para uma breve entrevista do presidente. Então ele seria dispensado e a congregação votaria sobre sua membresia.
  • Batismo (se necessário) e comunhão: Finalmente, se necessário, o batismo do candidato seria agendado, e após o batismo, no próximo culto de ceia, ele receberia o direito à comunhão perante a congregação e oficialmente se tornaria um membro da igreja.

As atas da reunião da Igreja do Tabernáculo Metropolitano de 1854–1892 revela que 13.797 pessoas se submeteram a esse rigoroso processo de membresia. Mesmo com centenas de pessoas entrando para a igreja a cada mês, esse processo era seguido consistentemente durante todo o ministério de Spurgeon.

Pessoalmente, fatos como esse me encorajam a crer que o que aconteceu sob o ministério de Spurgeon foi um avivamento genuíno. Tantas vezes, Spurgeon viu grandes multidões comparecerem às suas pregações ao ar livre. Mas ele frequentemente observou que após o culto, as pessoas simplesmente se dispersavam. Havia pouca oportunidade para um acompanhamento. Mas no Tabernáculo Metropolitano, conforme as pessoas se convertiam, elas eram batizadas, trazidas para dentro da igreja, discipuladas e engajadas no serviço da igreja. Esse processo de membresia era a forma que Spurgeon colhia o fruto da obra de avivamento do Espírito. O irmão de Spurgeon, seu pastor auxiliar, escreveu isso sobre o processo de membresia:

Nunca achamos que isso mantem os membros fora de nosso meio, embora saibamos que isto serve para detectar um erro ou satisfazer uma dúvida previamente levantada. Negamos que isso afaste qualquer coisa que valha a pena ter. Certamente, se o Cristianismo deles não puder comparecer perante um corpo de crentes e falar no meio de amáveis corações solidários é bom perguntar se é a fé pública que confessa a fé da Bíblia. [5]

 

2. Eles prestavam cuidadosa atenção à lista de membros

Como pastor de uma grande e crescente igreja, Spurgeon enfrentou o desafio de manter um registro preciso dos membros. Falando a seus estudantes, Spurgeon uma vez lamentou como algumas igrejas simplesmente ignoravam esta responsabilidade.

Eu insistiria na resolução de não ter igreja a menos que fosse uma de verdade. O fato é que muito frequentemente estatísticas religiosas são alarmantemente falsas. […] Não vamos manter nomes em nossos livros quando estes são apenas nomes. Algumas das boas pessoas gostam de mantê-los lá e não suportariam removê-los; mas quando você não sabe onde os indivíduos estão, nem quem são eles, como você pode contá-los? Eles se foram para a América, ou Austrália, ou para o céu, mas no que diz respeito a sua lista eles ainda estão com você. Isso é algo correto? Pode não ser possível ser absolutamente preciso, mas vamos apontar para isso.[6]

Quando Spurgeon se tornou pastor da igreja, uma das primeiras coisas que ele fez foi olhar os antigos diretórios de membros e descobrir o que aconteceu com essas pessoas. Estando em uma igreja histórica, a lista de membros era de centenas, mas havia apenas algumas dúzias frequentando. À medida em que eles acompanhavam as pessoas, algumas expressaram interesse em retornar por conta do novo pastor e elas foram recebidas de volta. Mas outros disseram que não estavam mais interessados. Alguns se mudaram para outra região. Alguns estavam mortos. Muitos não puderam ser encontrados. Todos estes foram removidos da membresia e Spurgeon continuaria com este trabalho. Era trabalho duro não somente incluir pessoas à membresia, mas também acompanhar as pessoas uma vez que estas entraram para a igreja.

Em uma igreja tão grande, como Spurgeon mantinha uma membresia precisa? Um dos primeiros métodos era utilizar bilhetes de ceia.  Ao entrar para igreja, cada membro recebia um cartão perfurado de ceia contendo bilhetes numerados. Em um culto de ceia a cada mês, os bilhetes eram coletados, indicando o comparecimento de cada membro. Aqueles que se ausentaram por mais de três meses eram visitados por um presbítero ou era enviada a eles uma carta da igreja.

O trabalho necessário para acompanhar os membros pode ser visto nos Livros de Atas dos Presbíteros nos arquivos do Tabernáculo Metropolitano. Os presbíteros encontravam-se frequentemente, ao menos uma vez ao mês, habitualmente às segundas-feiras antes do encontro de oração. O objetivo principal dessas reuniões era rastrear membros que não frequentavam, embora ocasionalmente discutissem outros assuntos relativos à vida da igreja.

Às vezes, uma investigação resultava na descoberta triste de que um membro havia falecido, ou “ido para o céu”. Se os presbíteros descobrissem que esses membros tinham entrado para outras igrejas, cartas eram enviadas e eles eram removidos da membresia. Spurgeon acreditava que cristãos não deveriam ser membros de múltiplas igrejas, mas que deveriam ser comprometidos a uma igreja.

Em muitos casos, o inquérito resultaria em uma explicação do motivo pelo qual não se frequentava. As razões variavam: distância, complicação com a escala de trabalho, ter perdido um culto de ceia, ter simplesmente esquecido de levar o bilhete de ceia, doença e outras situações. Em casos de não comparecimento devido a dificuldades com pecado, Spurgeon não recomendou sua remoção, mas encorajou seus presbíteros a cuidar pacientemente desses membros.

Se uma ovelha se desgarrou, vamos buscá-la; renegá-la com pressa não é o método do Mestre. Nosso é o trabalho e o cuidado, pois nós somos os supervisores do rebanho de Cristo a fim de que todos possam ser apresentados irrepreensíveis diante de Deus. Um mês de ausência da casa de Deus é, em alguns casos, um sinal mortal de uma profissão renunciada, enquanto em outros uma longa ausência é uma aflição com a qual devemos nos solidarizar e não um crime a receber punição capital.[7]

Se a visita dos presbíteros descobrisse áreas de necessidade, eles trabalhariam pacientemente com eles para encorajar sua participação e para prover cuidado para eles em suas ausências. Uma vez que cada presbítero era designado a um distrito particular, ele provavelmente trabalharia com outros membros naqueles distritos para prover cuidado.

Infelizmente, como em qualquer igreja hoje, houve alguns casos onde os presbíteros descobriram pecados sérios e sem arrependimento (“um sinal mortal de uma profissão de fé renunciada”). Os presbíteros sempre eram envolvidos na investigação desses casos. As atas dos presbíteros revelam suas discussões regulares acerca de casos de disciplina. Múltiplos presbíteros eram geralmente envolvidos em um caso particular de modo que múltiplas testemunhas pudessem ser estabelecidas. Se o caso fosse bastante sério, isso levaria a uma recomendação à congregação para disciplina. Dependendo da seriedade do caso, os presbíteros poderiam notificar a congregação do caso em pontos diferentes da investigação.

Casos de disciplina durante os primeiros sete anos do ministério de Spurgeon envolveram instâncias de desfalque, abandono matrimonial, má conduta financeira e sexual, adultério, lascívia, mentira, negligência de deveres religiosos, roubos recorrentes, imoralidade e abuso conjugal. Em algumas ocasiões particularmente dolorosas, os presbíteros levaram a congregação a disciplinar um oficial da igreja que tinha caído em pecado escandaloso. Apesar de necessário, a disciplina eclesiástica era algo doloroso para a igreja inteira, levando muitos às lágrimas.

Por mais doloroso que fosse o processo, Spurgeon acreditava que verdadeiros cristãos não poderiam cair definitivamente. E, por isso, sempre havia esperança de restauração. Em alegria, a igreja via Deus usar o processo de disciplina para levar muitos ao arrependimento. Os relatórios de encontros anuais de membros no Livros de Atas registram vinte e um membros que foram restaurados à membresia durante os anos de Spurgeon. Aqui está ainda outro propósito para a disciplina eclesiástica: despertar membros desviados trazendo-os de volta para o evangelho.

Membresia significativa não é manter uma lista imaculada da igreja. É ajudar peregrinos a concluir sua jornada para a cidade celestial.

Conclusão

Há muito sobre a vida e ministério de Spurgeon que parece incompreensível. Se você alguma vez tentar imitar o cronograma e ministérios e atividades de Spurgeon, você provavelmente não conseguirá. E isto é provavelmente verdade. O próprio Spurgeon disse uma vez que ele fez 40 entrevistas para membresia em um dia, e disse que isso quase o matou, porque ele estava exausto.

A questão aqui não é tentarmos meramente replicar o ministério de Spurgeon. Afinal, este foi um trabalho de Deus único aos dons daquele homem e daquela época na história. Contudo, Spurgeon ainda é um modelo de fidelidade no ministério para nós. Como seria se buscássemos membresia significativa em nossas igrejas hoje, assim como Spurgeon e os santos no Tabernáculo Metropolitano?


Notas:

[1] New Park Street Pulpit, 2:113-114.

[2] Metropolitan Tabernacle Pulpit, 33:212.

[3] MTP 24:542.

[4] MTP 17:198-199.

[5] The Sword and the Trowel, 1869:53-54.

[6] C. H. Spurgeon, The Greatest Fight in the World (Fearn, UK: Christian Focus, 2014), 92.

[7] S&T 1872:198.

Por: Geoff Chang. © 9Marks. Website: 9marks.org. Traduzido com permissão. Fonte: “A Hedging and Fencing”: How Charles Spurgeon Promoted Meaningful Membership.

Original: Um “cercado”: como Charles Spurgeon promoveu a membresia significativa. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Alex Motta. Revisão: Thatiana Silva.