Eu, eu mesmo e a mentira: perigos espirituais do isolamento

Quem vive isolado busca seu próprio desejo e insurge-se contra a verdadeira sabedoria. (Provérbios 18.1, A21)

Em março de 1876, Alexander Graham Bell fez a primeira ligação telefônica da história, que, na época, transformaria drasticamente as relações das pessoas. Na superfície, a revolução da comunicação parecia tornar distante o isolamento, como algo próprio de uma espécie em extinção, afinal, estamos mais conectados que nunca, não é? Ainda assim, é possível pensar se, no fim das contas, o isolamento se transformou em algo mais sutil, embora perigoso do mesmo jeito (ou até mais, por ser sutil). Pelo menos um proeminente sociólogo teme que esse seja o caso:

Somos solitários, mas temos medo da intimidade. Conexões digitais e robôs sociais podem oferecer a ilusão de um companheirismo sem as demandas da amizade. A vida em rede permite que nos escondamos uns dos outros, como se estivéssemos amarrados. Preferimos mandar uma mensagem a conversar. (Sherry Turkle, Alone Together [Juntos e solitários], 1)

Ou, como diz o subtítulo do livro dela, “esperamos cada vez mais da tecnologia e menos uns dos outros”. Sempre que esperamos menos do outro, inevitavelmente nos afastaremos e ficaremos tão isolados quanto o solitário antes da invenção do telefone.

Que tipo de isolamento?

Alguns podem ler o último parágrafo e desejar um tempo em que ninguém ligava, mandava e-mails, mensagens ou (pior de tudo?) deixava recados na caixa postal. Uma vida com menos gente pode até parecer apelativa. É possível ter dificuldade de relacionar os perigos do isolamento. No entanto, a sabedoria conhece os riscos que a reclusão esconde: “Quem vive isolado busca seu próprio desejo e insurge-se contra a verdadeira sabedoria” (Provérbios 18.1, A21).

Que tipo de isolamento o sábio tinha em mente? O versículo seguinte nos oferece uma imagem mais clara:

O tolo não tem prazer no entendimento, mas tão somente em revelar sua opinião. (Provérbios 18.2)

Ele não deseja ouvir o que os outros pensam; tão somente quer que alguém o escute. O livro de Provérbios sempre bate nessa tecla. À medida que este sábio pai prepara seu filho para a realidade da vida em um mundo selvagem e tentador, ele deseja que seu filho perceba que algumas das maiores ameaças vêm de dentro. Ele o alerta especificamente sobre o poder de ruína do orgulho.

Não sejas sábio a teus próprios olhos; teme o Senhor e desvia-te do mal. (Provérbios 3.7, A21)

Vês um homem que é sábio a seus próprios olhos? Há mais esperança para o tolo do que para ele. (Provérbios 26.12, A21)

Há um caminho que ao homem parece correto, mas o fim dele conduz à morte. (Provérbios 14.12, A21)

Aprendemos que o homem orgulhoso não precisa ser julgado; ele traz a destruição para si mesmo. A arrogância torna seu isolamento perigoso: não passo mais tempo com outras pessoas porque não preciso delas; eu sou mais sábio que elas. Tal orgulho distingue o isolamento das virtudes da solitude, a qual Deus encoraja repetidas vezes (Salmos 46.10; Mateus 6.6; Marcos 1.35).

Os caminhos que conduzem à morte são aqueles que escolhemos enquanto rejeitamos a vida em comunidade, relacionamentos marcados pela consistência na honestidade, no conselho, na correção e no encorajamento.

Sozinhos com nossos desejos

O que nos atrai às sombras espirituais do isolamento? Nossos próprios desejos mesquinhos. “Quem vive isolado busca seu próprio desejo.” Sempre que alguém deixa ou evita a comunidade da qual precisa, é porque foi seduzido por desejos pecaminosos: desejo por privacidade ou autonomia, por conforto ou facilidade, por dinheiro ou sexo, ou até por vingança. No fundo, são nossos desejos que nos dividem e nos isolam:

De onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que guerreiam dentro de vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam, mas não conseguem obter o que desejam. (Tiago 4.1-2)

Os desejos que nos impedem de viver juntos variam muito, mas todos encontram raízes no descontentamento egoísta: queremos e não temos, então abandonamos o amor, seja atacando ou abandonando o outro. As Escrituras dizem que nossos desejos nos isolam e nos dividem (Judas 1.18-19). Por exemplo, considere o preguiçoso:

O desejo do preguiçoso o mata,
pois suas mãos recusam-se a trabalhar.
Todo dia o ímpio cobiça,
mas o justo dá sem reter. (Provérbios 21.25-26, A21)

O preguiçoso morre em pecado porque foi endurecido por sua falsidade: Cuidado, irmãos, para que nenhum de vocês tenha coração perverso e incrédulo, que se afaste do Deus vivo. Pelo contrário, encorajem-se uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama ‘hoje’, de modo que nenhum de vocês seja endurecido pelo engano do pecado” (Hebreus 3.12-13). Quando nos isolamos da perspectiva, do encorajamento e das exortações dos outros, ficamos vulneráveis ao engano do pecado. E por que isso é tão atraente? Porque Satanás estuda nossos desejos e os ataca. Ele é um jardinheiro profissional, que semeia egoísmo, descontentamento e amargura no lugar certo.

Porém, uma comunidade consistente e dedicada o expõe e o frustra. Ela revela a superficialidade das mentiras dele, bem como o fato de que nossos desejos podem nos levar para longe muitas vezes.

A doçura de um amigo

Mas o oposto do isolamento que destrói a alma é uma vida profundamente enraizada no coração e nos conselhos de bons amigos. “Quando não há uma direção sábia, o povo cai”, adverte Provérbios 11.14, “mas na multidão de conselheiros há segurança”. Como costuma acontecer, a sabedoria, a frutificação e a segurança nascem da humildade, da disposição de submeter pensamentos e planos, sonhos e desejos, pecados e fraquezas a outra pessoa.

As pessoas mais eficazes e frutíferas são aquelas que desconfiam de si mesmas o suficiente para buscar orientação frequente; não algumas vezes ao longo da vida, mas várias vezes por mês, talvez até a cada semana. “Onde não há conselho, os projetos se frustram, mas com muitos conselheiros eles se estabelecem” (Provérbios 15.22; veja também 20.18). Observe: não apenas conselheiros, mas muitos conselheiros. E não apenas muitos conselheiros, mas os conselheiros certos: “O homem que tem muitos amigos pode ser arruinado por eles, mas há amigo mais chegado que um irmão” (Provérbios 18.24). Artigos online, sermões e podcasts podem ser valiosos, mas todos nós precisamos de uma perspectiva de carne e osso para nossas personalidades, lutas e circunstâncias particulares. Precisamos de amigos que nos possam olhar nos olhos e ver o que ninguém pode ver online.

Então, quem são seus conselheiros? Quem te conhece bem o suficiente para desafiar seus planos e decisões? Quando foi a última vez em que alguém o aconselhou? Se você não se lembra, talvez você esteja mais isolado do que pensa, no mínimo de três maneiras a serem observadas.

Feridas da convivência

Uma maneira pela qual Satanás nos isola é nos convencendo de que o conselho e a correção são pesados demais e não produzem vida. Porém, tanto as Escrituras quanto a experiência afirmam o contrário:

É melhor a repreensão declarada que o amor encoberto.
As feridas provocadas por um amigo são boas,
mas os beijos de um inimigo são traiçoeiros. […]
O óleo e o perfume alegram o coração,
e o conselho dado de coração ao amigo também é suave. (Provérbios 27.5-9)

A vida em comunidade não é uma vida sufocada, mas aprimorada. O conselho fiel pode nos ferir no momento, mas ele o faz para nos curar e nos preservar. Como diz Ray Ortlund,

Quando o ferro afia o ferro, cria atrito. Quando um amigo te fere, dói. Então, percebe? Há uma diferença entre ferir alguém e machucar alguém. Há uma diferença entre ser amado e sentir-se amado. Jesus amou a todos da melhor forma, e algumas pessoas ficaram magoadas. Então eles o crucificaram. Se não entendermos isso, toda vez que nos sentirmos magoados, procuraremos alguém para culpar e punir. Faremos com que nosso estado emocional seja culpa de outra pessoa. (Proverbs [Provérbios], 168)

Quando você receber palavras duras, não julgue sua igreja ou seus amigos por quanta dor está sentindo. Questione o que tais palavras produzirão em você com o tempo. Esse atrito está aproximando você de Cristo aos poucos e tornando você semelhante a ele? Essa dor que você sentiu em certas conversas o levou a maior arrependimento (2 Coríntios 7.10)? Se sim, então tais feridas podem ter sido causadas por amigos fiéis para a sua cura; raros amigos que vale a pena manter a qualquer custo.

O antídoto para o isolamento

Que conselho prático eu daria para alguém que percebeu estar mais isolado do que pensava? Primeiro, procure, faça parte e sirva em uma igreja local.

A amizade é uma excelente arma contra o isolamento espiritual, mas uma aliança com uma igreja vale mais do que uma multidão de amizades. Quando nossos desejos começam a nos endurecer com relação a Deus, sua palavra e sua vontade, os amigos até podem ficar e lutar conosco, mas a igreja fez um voto de ficar e lutar até que a morte nos conduza, juntos, à presença imaculada de Jesus.

Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima. (Hebreus 10.24-25).

O isolamento morre nas famílias da igreja que sabem que precisam (e desejam) estar em comunidade. Para tais pessoas, os cultos de domingo não são um vício doce para umam vida plena e feliz; são a fundação para uma vida plena e feliz. Deus deseja que o conheçamos, que o sirvamos, que o apreciemos e que nos tornemos como ele, como parte do corpo de Cristo. Quando mais isolados nos tornamos, mais deixamos de desfrutar da fonte de graça, misericórdia e direção.

Por: Marshall Segal. © Desiring God Foundation. Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: Me, Myself, and Lies: The Spiritual Dangers of Isolation.

Original: Eu, eu mesmo e a mentira: perigos espirituais do isolamento. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Renan A. Monteiro.