Um blog do Ministério Fiel
Maria é a mãe de Deus?
Como um escândalo esclareceu o debate
Quem é Deus? Como ele é e como podemos conhecê-lo? O que é salvação?
É possível que fiquemos tentados a atribuir tais perguntas às primeiras semanas de algum curso evangelístico ou aos primeiros anos do discipulado; porém, elas eram centrais para o ministério de Cirilo de Alexandria (c. 376–444). Sendo bispo e teólogo de grande influência, enxergava a seriedade de tais questões, bem como as sérias consequências de quando cristãos oferecem respostas prontas.
Cirilo acreditava profundamente que os crentes deveriam, com consciência e alegria, ter Jesus Cristo no centro do entendimento a respeito de Deus e de sua salvação. Sua virogosa centralidade em Cristo moldou alguns dos concílios e credos mais importantes da igreja, os quais herdamos até hoje.
Sementes de escândalo
No século V, talvez a igreja mais famosa do mundo fosse a Grande Igreja de Constantinopla. No trono da “Nova Roma”, seu arcebispo tinha importante voz política e teológica. Em 428, o cargo foi entregue ao tão-amado pregador sírio chamado Nestório.
Nestório deseja acabar com todas as referências a Maria como theotokos, “mãe de Deus” em grego. O título era popular havia muito e tentava expressar um pouco do milagre da encarnação: uma mulher deu à luz Deus Filho em carne humana. Entretanto, na mente de Nestório esse título era impreciso e perigoso. Sua preocupação não era que o título encorajasse a veneração indevida a Maria (algo que aconteceria mais tarde na história da igreja), mas que ele implicasse algo sobre Deus que ele não poderia aceitar.
Que Deus poderia nascer, nu e chorando, dependente do alimento e do cuidado de sua mãe, era inimaginável. Deus, imutável e intocável, simplesmente não poderia ser comparado ao bebê que chorava na manjedoura. Não, Maria deveria se chamar “mãe de Cristo”, e não “mãe de Deus”. Deveria haver uma distinção clara entre as duas coisas. Nestório dedicou uma série de sermões ao assunto, e seus colegas, perplexos, começaram a questionar: se Maria não é a “mãe de Deus”, afinal quem é o filho dela?
Milhares de quilômetros ao sul, no Egito, Cirilo, o arcebispo de Alexandria, recebeu o alerta de um escândalo emergente. Após dedicar vários anos à escrita de comentários bíblicos e obras teológicas sobre a Trindade, ele sabia que devia confrontar Nestório. Como o apóstolo Paulo séculos antes, Cirilo viu que, quando a identidade de Jesus Cristo é distorcida, nosso entendimento de Deus e do conhecimento a seu respeito também era, e as consequências eram devastadoras. “Outro Jesus” caminha de mãos dadas com “outro evangelho” (2 Coríntios 11.4).
Outro Jesus
Nestório cria em Jesus como eterno Filho e Verbo de Deus. Ele cria, como afirmava o Concílio de Niceia em 325, na humanidade e na divindade de Cristo. Ainda assim, a distorção de Jesus que ele apresentou ameaçava trazer à ruína a fé ortodoxa que ele dizia defender.
O maior problema de Nestório era ter preparada a sua definição de Deus muito antes de observar a pessoa de Jesus Cristo. O carpinteiro de Nazaré, tanto na manjedoura quanto na cruz, não se encaixava em seu entendimento de Deus. Seguindo seu mentor, Teodoro de Mopsuéstia (c. 350–428), Nestório ensinava que o filho de Maria era um homem distinto do Filho de Deus: um homem possuído e trazido à comunhão com Deus. Jesus e o Verbo tinha, assim, uma relação de cooperação única, e o Verbo graciosamente compartilhava com Jesus a honra de ser filho de Deus. Por causa de sua obediência, Jesus conquistou sua ressurreição para ter uma nova vida, livre da morte e da corrupção (Nestório, Mercado de Heracleides, 1.3).
Para Nestório, embora o povo de Israel do primeiro século tenha visto um indivíduo humano com poder divino, na verdade eles viam uma espécie de parceria entre dois filhos, que se apresentavam como única pessoa. Uma “parede de vidro” dividia Jesus Cristo ao meio, protegendo o Verbo eterno das experiências e dos problemas do homem até que ele fosse aperfeiçoado. Enquanto Nestório ficava feliz em adorar e louvar o Jesus homem, ele só o fazia por causa “daquele que estava dentro dele” (Sermão 9.262).
Cirilo via que o Jesus de Nestório era apenas uma pessoa como o resto de nós, porém elevado a um relacionamento especial com Deus. Quem sofreu e morreu nan cruz não era tecnicamente o próprio Deus Filho em carne. Em vez disso, Deus calçou “um par de luvas” para lidar com a humanidade pecaminosa. Assim, promoveu um homem à dignidade divina, estabelecendo diante de nós um grande exemplo de santidade a ser imitado. O Jesus de Nestório é o perfeito salvador para aqueles que desejam conquistar a salvação por si mesmos.
O verdadeiro Jesus
Em 431, no Concílio de Éfeso, Cirilo (junto com a maioria dos outros bispos) se opôs ao ensino de Nestório. Eles defendiam que ele contradizia não apenas o Jesus bíblico, mas também o evangelho. Com base em grande parte dos escritos de Cirilo, os pais da igreja afirmaram que, embora existam duas naturezas em Cristo, há apenas uma pessoa.
Em outras palavras, o Deus Filho agia em toda a fase de encarnação, quer andando sobre as águas, quer cansado após uma longa viagem. Ele possuía sua natureza divina e eterna inalterada, mas acrescentou a si mesmo uma natureza verdadeiramente humana, bem como toda a sua capacidade de dormir em um barco, combater tentações ou sofrer a morte de cruz.
Deus Filho pessoalmente assumiu tudo o que somos, escolhendo essa forma de ser “por nós e para a nossa salvação”, como afirma o antigo Credo Niceno. Em resposta à pergunta dos pastores de Constantinopla, os líderes reunidos em Éfeso foram claros: o filho de Maria não era outro senão o próprio Deus Filho, que foi conhecido e viveu com naturezas humana e divina.
A influência de Cirilo
Na época, essa imagem de Cristo ficou conhecida como união hipostática, uma verdadeira união do divino e do humano em uma pessoa (do grego hypostasis) do Verbo divino. Não era um acordo entre dois parceiros com propósitos diferentes, nem era uma cooperação entre iguais.
De fato, havia uma assimetria crítica nessa união, pois a humanidade de Jesus não implica uma pessoa separada como Nestório ensinava, mas era “personificada” pelo Filho. A humanidade foi acrescentada a uma pessoa divina que já existia. Não havia outro Jesus a ser conhecido senão a segunda pessoa da Trindade, agora em carne. Isso significava que todas as ações e palavras de Jesus eram ações e palavras verdadeiras do Deus Filho.
Assim como era correto chamar Maria de theotokos, também era correto dizer que Deus Filho brincou pelas ruas de Nazaré quando criança, teve compaixão de pecadores desesperados e perdidos (Marcos 6.34) e derramou seu sangue na cruz para nossa redenção (Atos 20.28). Este não é outro senão o eterno Verbo em sua humanidade, afinal, ele é Emanuel, o Deus conosco.
Tais convicções bíblicas foram honradas e esclarecidas por outro concílio realizado em Calcedônia, no ano 451. Em resposta a novos falsos ensinos, a igreja mais uma vez recorreu às obras cristológicas de Cirilo (uma vez que ele falecera sete anos antes). Os bispos ali reunidos afirmaram que a única pessoa de Jesus Cristo deve ser reconhecida em duas naturezas “inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis e inseparáveis”. Eles confessaram que o divino e o humano de modo algum comprometiam ou anulavam um ao outro, embora ele fosse, de fato, uma única pessoa, “o Filho único e igual” àquele que estava com o Pai antes de todas as coisas e àquele que nasceu de Maria por nós e para nossa salvação. O Concílio de Calcedônia fez ressoar a teologia de Cirilo.
Aprouve a Deus
A doutrina fast-food de Nestório a respeito de Deus implica que ele tinha dificuldades para unir a divindade e a humanidade em uma única pessoa. Havia um vale intransponível entre o humano e o divino, e a teologia dele dava aos crentes a árdua tarefa de atravessá-lo por si próprios, seguindo de longe os passos do super-homem de Nazaré.
Entretanto, o ponto de partida de Cirilo foi Jesus, e ele permitiu que o Deus Filho revelasse a natureza de Deus (João 1.18). Ele viu que aprouve ao Deus revelado em Jesus aproximar-se pessoalmente da humanidade caída (Colossenses 1.19–20). Ele veio sem comprometer sua divindade, mas com uma condescendência sem igual. O Filho desceu até nós, vestido de nossa humanidade, entregou sua vida e se apropriou de nós quando não podíamos nos salvar. Em Jesus, Deus verdadeiramente demonstra seu amor, de maneira pessoal e próxima, para com pecadores imerecedores.