Um blog do Ministério Fiel
Quão humana é a mente de Cristo?
Cristo é o cerne do cristianismo. Assim, não é de se admirar que, desde o começo da história da igreja, a pessoa de Cristo tenha sido alvo de inimigos de fora e de hereges dentro da igreja. Desde o começo, alguns atacavam a doutrina de sua divindade eterna; outros, a crença de que ele tenha um corpo físico real; e outros, que ele tivesse uma mente humana.
Este último ataque é particularmente fascinante, porque foi iniciado por um bispo, Apolinário (310–390), o qual anteriormente se distinguia como defensor da divindade de Cristo. É provável que ele hesitou em reconhecer a plena humanidade de Jesus porque temia que isso comprometeria a divindade do Senhor. Ele interpretou João 1.14, “o Verbo se fez carne”, como se a Palavra eterna tivesse apenas assumido um corpo humano: ele não assumiu uma alma humana racional. Dessa forma, a encarnação envolveu a união entre o Filho de Deus e apenas parte da natureza humana. Jesus não tinha uma mente humana.
A doutrina de Apolinário eventualmente foi condenada como heresia, porém somente após um debate acalourado. Uma figura central nesse debate foi Gregório, bispo de Nazianzo (hoje a atual Turquia). Gregório (329–390) resumiu seu argumento na seguinte declaração: “O que não foi assumido não pode ser redimido” (Epístola ao presbítero Cledônio contra Apolinário). A lógica dele era simples: uma alma racional é tão essencial para a natureza humana quanto um corpo humano; se Cristo não assimiu tal alma, ele não assumiu toda a natureza humana; e se ele não a assumiu, ele não a redimiu. Sem uma mente humana, Jesus teria salvado apenas uma parte do homem e não a parte mais importante.
Nesse debate, ao lado de Gregório estava seu amigo, Gregório de Níssa (cc. 335–395), quem também nos legou uma imagem memorável. Começando pela premissa de que não foi apenas o corpo que se perdeu, mas a plenitude do homem, ele proclamou que o Bom Pastor, que veio para buscar e salvar o perdido, “levou para casa, em seus ombros, toda a ovelha, não apenas a sua pele” (Contra Eunômio, 2.13). Assim, o Bom Pastor de fato redimiu todo o homem de Deus, tanto o corpo quanto a alma.
Tentado, porém triunfante
Nós não deveríamos negligenciar o fato de como é tentador para aqueles que são sensíveis à divindade de Cristo seguir o caminho de Apolinário e não dar o devido lugar à humanidade de nosso Senhor. Realmente, nós já vemos essa tentação ser confrontada na epístola aos Hebreus, onde alguns da igreja primitiva achavam difícil crer que o Filho de Deus pudesse simpatizar conosco em nossas fraquezas (Hebreus 4.15). Provavelmente é por isso que o autor teve que enfatizar que Cristo se tornou “em todas as coisas, semelhante aos irmãos” (Hebreus 2.17).
No entanto, antes de prosseguirmos, temos de lembrar que há uma excessão nisto: Cristo não pecou. Esse fato é ainda mais extraordinário quando lembramos que ele não somente compartilhou da nossa natureza: ele também compartilhou das nossas tentações (Hebreus 4.15). De fato, ele suportou tentações em um nível que nós jamais saberemos, porque, diferente de nós, ele nunca cedeu. Apesar de o diabo tê-lo perseguido incansavelmente – através da família, amigos e inimigos – Jesus não se rendeu, mesmo quando se deparou com a madita morte de cruz.
Essas tentações eram reais e demoradas, às vezes astutas, às vezes violentas, porém delas todas Cristo emergiu com sua integridade intacta. No entanto, o próprio fato dele ter sido tentado é vital para a ideia de que ele tenha uma mente humana. Um mero corpo não pode ser tentado. Nós somos tentados pelo o que sabemos, pelo o que nos aperta, pelo o que tememos e pelo o que amamos. Assim foi com Jesus, como vemos na sua experiência no Getsêmani. Ele sabia algo (mas não tudo) sobre o que se referia a taça; isso apertou seu coração e ele desejou, como homem, que pudesse haver outro jeito. Mas no fim ele orou: “não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lucas 22.42). Isso não era mera submissão. Era todo o teor de sua vida.
Mente humana real
Quando vemos Jesus nos relatos dos Evangelhos, imediatamente tomamos ciência de que houve alguém que não apenas viveu em um corpo humano, mas que também teve uma mente humana real. Isso se torna claro no início, quando Lucas nos diz que Jesus creceu, não somente em estatura física, mas em sabedoria (Lucas 2.52). Deus não cresce em sabedoria. Ele é eternamente onisciente, porém Jesus criança não era.
O seu desenvolvimento físico foi acompanhado por um desenvolvimento humano intelectual normal. A sua mãe lhe ensinou o que toda mãe humana ensina para o seu filho, porém, ela também deve ter compartilhado com ele o que foi dito a ela pelo anjo que havia sido enviado para anunciar seu nascimento. Ele aprendeu a partir das Escrituras que claramente leu por si mesmo e que valorizou como uma fonte de sabedoria por toda a sua vida. Ele aprendeu ao frequentar a sinagoga e ao questionar os rabis no templo (Lucas 2.46). Ele aprendeu com seu pai, José, de quem era aprendiz. E ele aprendeu pela observação do mundo ao ser redor e com seu povo.
Porém, essa mente humana, perspicaz e questionadora, também estava ciente de que ela não sabia de tudo e não podia responder todas as perguntas que fossem feitas a ele. O maior exemplo disso é a sua confissão de ignorância a respeito do tempo de sua segunda vinda (Marcos 13.32). Sobre os detalhes da data do fim, tudo que Jesus pôde dizer foi que o Pai a havia determinado por sua própria autoridade (Atos 1.7).
O fato de Jesus ter uma mente humana e ele confessar ser ignorante sobre determinados assuntos não significa, entretanto, que o seu conhecimento nunca fosse maior do que o comum. Ele claramente possuía conhecimento sobrenatural, como aparece, por exemplo, na sua conversa com a mulher de Samaria. Ele nunca a tinha visto ou ouvido falar dela antes, ainda assim ele sabia tudo o que ela tinha feito (João 4.29). No entanto, conhecimento sobrenatural não é onisciência. Esse era um atributo normal do serviço profético, como vemos claramente no ministério de homens como Elias e Eliseu.
Afeições profundas
Se vemos em Jesus um homem que tinha uma mente humana real, também vemos nele um ser humano de profundas afeições. Obviamente, acima de tudo, as suas afeições estavam direcionadas ao Pai celestial, a quem ele ama de acordo com suas duas naturezas, humana e divina. Junto com suas afeições, os evangelhos também destacam o amor de Jesus pelos seus semelhantes.
Talvez, o exemplo mais fascinante disso seja o amor de Jesus para com o jovem rico que se aproximou dele para perguntar o que ele deveria fazer a fim de herdar a vida eterna (Marcos 10.17-23). O texto diz que o homem saiu triste, pois não estava disposto a deixar suas riquezas. Não temos razão para acreditar que ele tenha depois escolhido a vida eterna, mas temos uma boa razão para acreditar que Jesus o amava (Marcos 10.21). Jesus foi cativado por ele, ao que tudo indica.
Também está claro que Jesus amava estar acompanhado e, a respeito disso, ele era bem diferente de seu primo, João Batista. João era solitário, preferia a vida no deserto à vida na cidade e estava feliz em viver da sua dieta de gafanhotos e mel. Jesus nunca viu erro no estilo de vida de João, e nem João no dele, mas eles eram homens de temperamentos diferentes (Mateus 11.18-19). Jesus prontamente aceitava convites para aproveitar a hospitalidade dos outros, até quando eram coletores de impostos e pecadores.
Mas ele também tinha o seu próprio círculo de amigos íntimos. O seu núcleo era o grupo original dos doze discípulos, a quem ele chamou de apóstolos “para estarem com ele” (Marcos 3.14), mas entre esse grupo ainda havia um círculo mais íntimo, consistindo em Pedro, Tiago e João; e mesmo dentre esses três parecia haver um mais especial: João, “o outro discípulo, a quem Jesus amava” (João 20.2). Isso também carrega a marca de humanidade.
Também havia outro grupo, de quem Jesus era especialmente próximo: a família de Betânia, Marta, Maria e Lázaro. Podemos ver que Jesus explicitamente amava Marta, sua irmã e Lázaro; e, na mensagem das irmãs a Jesus informando a doença de Lázaro, elas se referiram ao seu irmão como “aquele a quem amas” (João 11.3).
Claramente havia uma grande conexão ali: uma conexão que abarcava as irmãs da mesma forma que o irmão, e um amor tão profundo que, quando Jesus viu Maria acometida pelo luto, ele ficou profundamente comovido em seu espírito, e chorou (João 11.33-35), mesmo que ele soubesse que a doença de Lázaro, em última instância, não o levaria à morte, mas à glória de Deus. A visão de um coração humano partido convulsionou sua alma.
Emoções humanas
Assim vemos também que Jesus experimentou emoções humanas comuns. Ele foi movido à ira, por exemplo, pela dureza do coração humano, pela hipocrisia dos religiosos e pela profanação da casa de seu Pai.
Frequentemente, porém, a emoção que mais vemos em Jesus é a compaixão. Ele sente compaixão pelas multidões, que viviam como ovelhas sem pastor (Mateus 9.36), e é a compaixão que o move a ressuscitar o filho da viúva (Lucas 7.13) e a curar o leproso que se aproximou dele implorando: “Se quiseres, podes purificar-me” (Marcos 1.40).
Na verdade, como B.B. Warfield destaca em seu explêndido ensaio The emotional life of our Lord [A vida emocional do nosso Senhor], compaixão é a emoção mais atribuída a Jesus nos Evangelhos, e não era um sentimento raso. O verbo grego usado para expressar a compaixão do Senhor (splanchnizomai) está intimamente relacionado à palavra que descreve o âmago interno (ou “entranhas”, no português) e ressalta o fato de que a compaixão de Jesus era visceral. Ele estava profundamente triste, tocado em seu interior, pela miséria que viu ao seu redor, seja no estado geral da sociedade ou na condição de indivíduos, e a angústia dele constantemente vinha acompanhada por sintomas físicos claros como, por exemplo, seu choro na tumba de Lázaro e suas lágrimas sobre a cidade condenada de Jerusalém (Lucas 19.41). Jesus sentiu, e sentiu profundamente.
Compaixão não é algo que Jesus, agora ressurreto, tenha abandonado como algo que não serve para ser levado de volta para o céu. Afinal de contas, compaixão é uma emoção claramente atribuída ao próprio Deus (Salmo 103.13). Realmente, é um atributo central do nome revelado a Moisés quando ele se escondeu na fenda da rocha e a glória de Deus passou por ele (Êxodo 34.6). Compaixão é parte da glória e é perfeitamente coerente com a exaltação de Cristo, que ainda simpatiza com o seu povo em suas fraquezas (Hebreus 4.15). Ele sabe como eles se sentem, ele sente com eles, e ele sente por eles, porque ele esteve onde eles estão.
Porém, o fato de que ele pode passar por nossas experiências não significa que nós necessariamente possamos passar pelas dele, porque ele sonda profundidades emocionais que nenhum de seus irmãos ou irmãs jamais compreendeu. O maior exemplo disso é o Getsêmani. A cruz estava na mente de Jesus, mas no Getsêmani, “hoje é o dia”, e o horror da taça que ele tinha de beber se torna quase insuportável. Ele não consegue esconder a angústia. “Minha alma”, ele declara (falando de sua alma humana), “está profundamente triste até à morte” (Marcos 14.34); e ele ora, não uma vez, mas três. Ele queria que o cálice fosse removido. Ele pergunta: não poderia haver outro jeito?
Esses, como afirma João Calvino, são os sentimentos de um homem arruinado e condenado (Institutas, 2.16.11) e, quando o que ele temia no Getsêmani se tornou realidade no Calvário, esses sentimentos encontraram sua manifestação na forma daquele terrível apelo: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27.46). O que isso significava? Isso é entre ele e o Pai. Somente eles sabem o que a nossa salvação custou para cada um deles. Porém, não nos esqueçamos de que, enquanto todos nós, em um momento ou outro, clamamos do profundo desespero (Salmo 130.1), nós nunca clamaremos de desesperos tão profundos quando este: o desespero da maldição da lei (Gálatas 3.13).
A ovelha inteira importa?
Voltemos aos dois Gregórios. Por que era importante que o pastor carregasse a ovelha inteira? Ou, mais formal, que o Redentor da raça humana tomasse sobre si a completude da natureza humana e não apenas o corpo humano?
Primeiro, porque os pecados da alma humana precisam ser redimidos tanto quanto os pecados do corpo. Isso se torna claro a partir do momento que olhamos para a passagem de Gálatas 5.19-21, onde Paulo lista os pecados da “carne”. É questionável se todos esses sejam exclusivamente pecados da carne, mas alguns, tais como inimizades, inveja, ciúmes e ataques de raiva, são claramente pecados da mente; e aquele que carregou os pecados do mundo tinha que carregar esses pecados da mente tanto quanto carregou os pecados do corpo.
Segundo, a mente humana tinha de consentir com o sacrifício oferecido no Calvário. Não foi um mero ato físico, mas um ato voluntário; caso contrário, não teria valor moral algum. O poder da cruz não está no grau ou quantidade de dor involvida, mas no fato de que Cristo ofereceu a si mesmo em amor. No próprio ato de entregar-se a si mesmo, Cristo amou o Senhor seu Deus com todo seu coração, alma, força e mente. Tal qual o sacrifício de Isaque por parte de Abraão, a cruz foi um ato de adoração (Gênesis 22.5).
Terceiro, a alma, não menos que o corpo, teve que carregar o custo da redenção. Essa é a grande verdade destacada pelos teólogos Puritanos: “O sofrimento de sua alma foi a alma dos sofrimentos” (Christ’s Famous Titles [Os famosos títulos de Cristo], 124). E já vimos quão reais esses sofrimentos da alma eram. O apelo “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” veio da profundidade da alma do Emanuel.
Quarto, a alma, não menos que o corpo, precisa de plena salvação. Ela precisa de renovação e purificação tanto quanto precisa de perdão. Mas, assim como a ressurreição do corpo pressupõe nossa união com Cristo, a transformação da alma também o faz. Nós somos santificados nele, nossas almas unidas à sua alma e atraídos no único e mesmo Espírito.
Plena propiciação
Seria um erro, entretanto, assumir que os dois Gregórios ofereceram um entendimento completo da expiação. Havia uma tendência entre os grandes teólogos gregos de ver a união das duas naturezas na pessoa de Cristo como sendo o próprio ato expiatório.
Mas a encarnação, por mais magnífica que fosse, não era um fim em si mesma, como o autor de Hebreus deixa claro quando nos diz que Cristo assumiu carne e sangue “para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hebreus 2.14). Ou, como ele ressalta posteriormente, a razão pela qual Cristo se tornou como seus irmãos e irmãs em todos os aspectos foi para que ele realizasse propiciação pelos pecados do seu povo. O ato propiciatório não foi a sua encarnação, mas sua morte. Ele é a propiciação pelo seu sangue (Romanos 3.35).