O poder da fraqueza

A suficiência da graça de Deus na vida cristã

Qual é o poder da vida cristã? O que a torna possível? A expressão “vida cristã” diz respeito à peculiar maneira de viver que o crente espera e deseja, uma vida diferente daquela das demais pessoas, mas, ao mesmo tempo, tão parecida. Assim como todas as pessoas no mundo, o crente precisa trabalhar, comer, beber, relacionar-se, simplesmente viver. Todavia, a nossa nova realidade em Cristo, o fato de termos sido salvos por Jesus, faz de nós pessoas que devem viver a vida comum de maneira diferente — diante de Deus, para o louvor de sua glória.

Tudo na vida cristã deve ser motivado por Deus. O esforço do crente é dedicar toda sua vida, todos os seus afazeres, dos menores aos maiores, a Deus. Todos os seus relacionamentos devem ser dedicados a Deus. Todos os seus recursos devem ser dedicados a Deus. Não deve haver nenhuma esfera na vida do cristão onde Deus não esteja e da qual ele mesmo não seja o motivo. Até aquilo que ninguém mais vê, a mente e coração, devem ser para Deus. Porém, qual é o porquê disso? Isso não parece tão pesado? Ao mesmo tempo que soa muito bonito, também não nos soa um tanto impossível?

Esta é a maneira de viver a vida cristã, a qual é encorajada nas Escrituras:

 

“a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus” (Cl 1.10).

 

“Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais firmes em um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica” (Fp 1.27).

 

“A isto ele respondeu:

Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento;

e:

Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Lc 10.27).

 

Uma caminhada de fraqueza

Para alcançar esse objetivo, como deve ser o cristão? Talvez você pense que a vida cristã é para pessoas fortes. Pessoas com uma mente e coração inabaláveis, que sempre conseguirão dizer “não” ao pecado e dedicar toda sua vida a Deus. Aí é que nos enganamos! O poder da vida cristã mora na fraqueza. Isso mesmo! A caminhada com Cristo é uma caminhada de fraqueza, ao longo da qual conseguiremos vencer o pecado na medida em que nos reconhecermos como fracos e dependermos de Cristo e do seu poder para tudo.

Mas, de onde tiramos esse princípio? Os muitos mandamentos e imperativos à retidão não nos fariam pensar o contrário? Se Deus nos manda sermos santos, não devemos pressupor que temos o poder de sê-lo? Sim, temos o poder, mas ele não vem de nós – é o poder de Cristo, que habita naquele que morre para si mesmo, para que ele venha, então, habitar nesse crente.

Ao olharmos a Bíblia como um todo vemos que a História da Redenção diz respeito a um povo que é salvo, não um povo que se salva. Isso já deveria mudar toda noção quanto à dinâmica da luta contra o pecado e do amadurecimento cristão. Ao olharmos para a teologia paulina, mais especificamente para o significado da expressão “estar em Cristo”, isso se torna ainda mais claro:

 

“Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Rm 6.11).

 

“Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Rm 8.1)

 

“E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.” (2Co 5.17).

 

“Não te envergonhes, portanto, do testemunho de nosso Senhor, nem do seu encarcerado, que sou eu; pelo contrário, participa comigo dos sofrimentos, a favor do evangelho, segundo o poder de Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos.” (2Tm 1.8-9).

 

Estarmos em Cristo é termos a garantia de que somos salvos por ele em virtude da imputação de seus méritos e sua justiça a nós, de maneira que estaremos escondidos em Cristo e seremos capacitados por ele na luta contra o pecado e na busca pela santidade de vida.

No entanto, por que, apesar de tudo isso, não conseguimos viver a vida cristã de modo digno do Senhor? Porque escolhemos viver ainda em nós mesmos, e não em Cristo. Isso se manifesta de maneira mais clara quando dependemos de nós mesmos e das nossas próprias forças, em vez de confiarmos em Cristo e nos entregarmos a ele em toda nossa fraqueza. Insistimos em vencer por nós mesmos, tentamos a todo custo manter uma “pompa” de força espiritual — somos orgulhosos, não humildes. 

Há um texto de Paulo que deixa isso ainda mais claro do que em qualquer outro lugar das Escrituras: é 2Co 12.1-10. Nesse texto, enquanto Paulo faz uma defesa do seu apostolado à igreja de Corinto, ele nos mostra uma face de seu relacionamento com Cristo — podemos dizer que ele deixa transparecer exatamente a chave do seu relacionamento com Jesus.  Ao argumentar com os coríntios que ele teria diversos motivos para se gloriar, a exemplo de suas experiências sobrenaturais e da revelação que recebera, ele afirma consistentemente que o poder de sua vida estava em Cristo, e esse poder se manifestava exatamente em suas fraquezas.

Paulo diz que, apesar de sua experiência sobrenatural, há outra experiência sobrenatural um tanto negativa: o seu espinho na carne. Mantendo certo mistério, Paulo não nos deixa claro o que de fato seria esse “mensageiro de Satanás” que o atormenta e esbofeteia, para que ele não venha a se vangloriar. Deus usa essa aflição na vida de Paulo para o manter humilde. Para Deus operar seu poder em Paulo, este precisa estar morto. Para que Cristo viva em Paulo, este precisa ter morrido, como ele mesmo disse: 

 

“Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim.” (Gl 2.19-20).

 

Esta é a chave de uma vida cristã poderosa — reconhecer-se como fraco e agir como fraco, ou seja, agir na dependência de Deus. Esse agir em dependência é uma questão de coração e consciência. Você precisa cultivar esse pensamento de insuficiência pessoal e suficiência em Cristo: “não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus” (2Co 3.5).

Três disciplinas espirituais

Viver na fraqueza para que o poder de Cristo habite e opere em nós é viver em humildade, é viver o cultivo de virtudes e pensamentos elevados a respeito de Cristo e reais a respeito de nós mesmos. Sei que isso pode parecer clichê, e talvez você esperasse questões práticas mais inovadoras sobre como viver essa fraqueza. Mas não. Temos que voltar às boas e velhas disciplinas espirituais. Entretanto, talvez eu possa ressaltar algo relativamente esquecido quanto à realidade de que as disciplinas espirituais não são um fim em si mesmas: fazê-las por fazer não é o que nos tornará mais humildes e poderosos em Cristo. É o seu coração, enquanto as pratica, que fará diferença em sua busca.

Ao lidarmos com as disciplinas espirituais, vamos tratar especificamente da oração, leitura bíblica e comunhão. Por que eu devo orar? Orar por orar? Orar para marcar a tarefa em algum checklist e dizer pra minha própria consciência: “tá pago”? Ler a Bíblia para dizer aos outros que a li? Para dizer que já li a Bíblia toda? Para ter assunto com aqueles que entendem mais da Palavra de Deus? Além disso, por que eu devo comungar? Por qual motivo devo ir à igreja? Simplesmente porque  alguém vai perguntar para mim o motivo pelo qual não fui? Devido ao fato de que preciso fazer algo com que me comprometi diante do pastor ou da liderança? Já que não orei e li a Bíblia a semana inteira, devo ir ao culto como uma forma de compensar  minha falta de devoção?

A oração e o seu coração

Devemos orar devido à nossa insuficiência. A oração é atitude de dependência. Se você não ora, isso acontece porque você não é humilde. Não conheço alguém arrogante e que tenha uma vida de oração intensa. Perceba que, quanto mais você ora, mais sensível a Deus você fica. Perceba que, antes de você cair em algum pecado, você foi deixando essa disciplina de lado. Muitos dos nossos pecados são gerados em meio a ansiedades. Ficamos ansiosos, afoitos, irritados e, então, falamos o que não devíamos, fazemos coisas inapropriadas. A ansiedade tira a estabilidade no nosso ser. Qual é o antídoto para a ansiedade? A oração.

 

Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus.  (Fp 4.6-7)

 

Perceba que a resposta não é simplista. Não é um apenas “vá orar”. Porém, entenda o porquê de você não orar, confesse isso a Deus, busque ajuda com alguém e comprometa-se a orar mais e a vigiar seu coração quanto ao motivo — ou motivos — de você achar que é possível viver a vida cristã longe de Deus em oração. Isso tem muito mais a ver com orgulho do que com indisciplina; muito mais a ver com autossuficiência do que com rotina intensa.

A leitura bíblica e o seu coração

Quanto à leitura bíblica, temos diversos desafios. A maioria das pessoas não sabe ler direito, e a Bíblia é um livro difícil. Mas fique tranquilo. Deus não cobrará de você um conhecimento profundamente exegético de sua Palavra. Busque sempre crescer em sua capacidade de leitura bíblica, mas a questão mais importante é o contato constante, consistente — se possível, diário — com a Lei de Deus. Nosso coração pode muito se enganar em relação a essa disciplina. Você pode estar sendo preguiçoso ou colocando a culpa na dificuldade da leitura bíblica. Talvez você esteja indo para o outro extremo, aprofundando-se tanto nos detalhes dos textos, nas regras hermenêuticas e nuances exegéticas, enchendo-se de orgulho por isso e objetificando Deus e sua Palavra. Tenha um coração humilde ao ler a Bíblia, para que, além de lê-la, ela também venha a ler sua vida. O contato constante com a Lei do Senhor é uma demonstração de que você depende de Deus e reconhece ser ele a fonte de toda verdade e conhecimento. Irmos à Bíblia é um ato de fé, por ser ela a revelação escrita da Verdade de Deus. Lemos a Bíblia porque não sabemos viver sem a Palavra de Deus. “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz para os meus caminhos.” (Sl 119.105).

A comunhão com a igreja e o seu coração

Quanto à comunhão dos santos, a vida em comunidade é importante exatamente por conta da nossa insuficiência pessoal e individual. Estar em comunidade é prestar culto a Deus e ter contato direto com nossos irmãos. Quando venho à igreja e vivo como se dela fizesse parte, não me vejo como alguém sozinho e independente espiritualmente. Tenho um Deus a quem presto culto e por cujo nome zelo. Faço isso junto com aqueles que crêem da mesma forma. Juntos, declaramos uns aos outros e a quem possa ouvir quem Deus é. Buscamos juntos a Deus, pois dele precisamos. Eu me entendo como membro de um corpo, ao qual devo servir com meus dons e talentos dados por Deus e do qual também recebo o mesmo serviço, de forma que o resultado é uma edificação mútua. Vir à igreja e ser igreja é um ato de humildade, de reconhecimento de fraqueza e dependência em Deus, pois entendo que não estou só, que devo servir e que posso ser servido por meus irmãos, para que nos encorajemos mutuamente na Palavra de Deus.

Assim como as outras disciplinas, também posso usar mal a comunhão, quando entendo que somente comparecer ao culto e prestar algum serviço é tudo aquilo de que preciso. Não, não mesmo. A comunhão dos santos é a oportunidade de aprofundarmos relacionamentos, sermos amigos e irmãos de fato uns dos outros, praticarmos a mutualidade, generosidade, confissão de pecados e prestação de contas.

“Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.”  (Tg 5.16).

 

Tenha pessoas com quem você possa abrir seu coração na igreja e seja também alguém em quem as pessoas possam confiar para confessar pecados e buscar aconselhamento.

 

CONCLUSÃO

Vimos que a caminhada com Cristo é uma caminhada de fraqueza, ao longo da qual conseguiremos vencer o pecado na medida em que nos reconhecermos como fracos e dependermos de Cristo e do seu poder para tudo. Essa vida de dependência em Deus, para conseguirmos viver para  seu inteiro agrado, possui pelo menos três linhas de ação que nos ajudam a confessar essa dependência em Deus, a saber, as disciplinas espirituais da oração, leitura bíblica e comunhão.

Devemos nos lembrar de que mais importante que esses três atos de devoção é a maneira como está o nosso coração ao praticarmos essas ações. Não é a oração pela oração, não é a leitura pela leitura, nem a comunhão pela comunhão. Temos de compreender essas ações como meios de nos achegarmos à graça de Deus. Como a teologia reformada gosta de chamar, são meios de graça. São caminhos, caminhos pelos quais nos achegamos a Cristo, que é, de fato, a fonte de tudo o que precisamos. Nele está a nossa suficiência.

Por: Vinicius Lima. © Voltemos Ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisor e Editor: André Soares.