Um blog do Ministério Fiel
Fé quântica?
E outros maus usos deste termo "quanticamente" confuso
Nota do Editor: Veja neste artigo do Dr Kelson Motta sobre os maus usos e relações indevidas que pessoas de diversas áreas, até mesma da fé e da teologia, tem feito em relação à física quântica.
Vocês já comeram purê de batata com sabor de frango assado? Imagino que sim, especialmente se este foi regado com o caldo de um frango assado. Até aí nada demais. Mas certa vez encontrei alguém que afirmava já haver no mercado purê de batata feito só com frango e que ficava com o aspecto de batata amassada e mantinha o gosto de frango assado. Recebi a inverossímil explicação de que o frango tinha sido criado só à base de batata, por isso sua carne podia se transformar em purê. Se havia visto e comido do purê, o indivíduo respondeu-me que não, mas que era verdade, porque lera em algum lugar. Guardei a informação, mesmo sabendo ser altamente improvável tal mistura, e evitei uma crítica dura por respeito à tenra idade do interlocutor. Quando muito jovem também já alardeei notícias ainda mais disparatadas.
De certa forma este episódio fez-me voltar para a área na qual trabalho e refletir sobre as misturas impossíveis que muitas pessoas afirmam sem qualquer conhecimento de causa. Ensino e pesquiso uma área da físico-química que, por força de seus postulados, me obriga a ver a realidade de forma mais fluída e elástica, com várias camadas e nuances. Refiro-me naturalmente à mecânica quântica, que devido às suas peculiaridades, postula um conceito de realidade que escapa ao senso comum. Neste estranho e admirável mundo novo, energia tem limite, corpos de dimensões atômicas parecem estar em dois lugares ao mesmo tempo, barreiras intransponíveis são vencidas, é possível trocar informações instantaneamente, ir de um ponto a outro sem passar por um meio termo, apresentar mais de uma natureza fundamental e até exibir todas as muitas possibilidades, simultaneamente, de um mesmo fenômeno. Estados que fogem à noção cotidiana do que temos por senso comum, mas que explicam um sem número de fenômenos atômicos. Uma área do conhecimento tão surpreendente quanto estranhamente bela.
Por ser um campo fértil em bizarrices físicas, a quântica foi alçada em nossos tempos pós-modernos ao patamar de ciência esotérica e utilizada indiscriminadamente por quem quer que queira uma explicação dita sofisticada para qualquer área do conhecimento. Os princípios são usados liberalmente por vários grupos, sem nenhum pejo pela falta de fidelidade aos conceitos fundamentais da área. Há livros sobre a empresa quântica, chefe quântico, inteligência quântica, filosofia quântica, o poder quântico da fé, quântica na cama, práticas quânticas espirituais, ressonâncias quânticas com suas vidas passadas e até lições sobre Jesus e a física quântica. Um outrora respeitado pastor, hoje um rematado guru de auto-ajuda, outro dia afirmou que as igrejas reformadas são newtonianas, enquanto que o cristianismo que ele defende é quântico, dando a entender a posição retrógrada daquelas em relação à sua visão modernosa e torta do Evangelho. São bobagens apresentadas em embalagem sofisticada, com o uso de termos fora do contexto, visando enganar ignorantes. Mas esse fenômeno não está restrito apenas a arena midiática e tem se espalhado para os nichos tidos como mais iluminados.
Certa vez, convidado a participar de um grupo sério de pesquisa interdisciplinar sobre teologia, filosofia e ciências, credenciado pela CAPES, ouvi estupefato a defesa da tese esdrúxula acerca das propriedades milagrosas dos florais de Bach devido às frequências quânticas das flores colhidas em determinada época do ano, e obrigado a ouvir sobre a necessidade de farmácias quânticas para a população. Tive de explicar, com relutância ao público e banca presentes, o que era mecânica quântica e o quanto os conceitos ali propalados estavam distantes daqueles oriundos da ciência, e que as conclusões beiravam às crendices medievais. Naturalmente que nunca mais voltei ao referido grupo, tanto por completa falta de vontade como da mais pura falta de convite. Ironicamente, quase uma complementaridade quântica.
Por outro lado, em outra ocasião, palestrando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para uma grande platéia científica acerca do entendimento filosófico entre Fé e Ciência, fui interrompido por um irritado pesquisador de física que afirmou que a Bíblia estava completamente errada e que a fé era uma bobagem – o estranho é que a palestra sequer tocava sobre o tópico Bíblia, Deus ou Cristianismo. Perguntei-lhe pacientemente quantas vezes tinha lido a Bíblia e se poderia me indicar um dos erros que certamente havia encontrado. Respondeu-me que nunca havia lido a Bíblia, mas sabia (como??) que estava errada. Eis o retrato do suicida intelectual de nossos tempos: sei porque acho que sei e não preciso dar as razões de minha opinião sem conhecimento de causa. Respondi-lhe, cansado, que sua posição não era científica, pois não se propunha a investigar honestamente as fontes para saber se de fato as coisas eram como afirmava e que seu discurso era na verdade um dogma de fé. Respondeu-me com grande desprezo que a ciência não precisava de fé. Em resposta perguntei ao público, se havia algum físico presente que pudesse explicar plenamente a natureza dual da luz, como onda e partícula, segundo a quântica. Apesar de vários na plateia, nenhum físico se dispôs a tão hercúleo desafio. Por que? Porque temos mais de cem anos de quântica e não sabemos ainda explicar a existência de naturezas tão diversas em um único fenômeno. Postulamos essa realidade dual na falta de uma explicação maior. Aceitamo-la por fé! E talvez essa dimensão de fé envolvida nos postulados de mecânica quântica seja a razão pela qual tantos grupos, inclusive alguns religiosos, estejam se apropriando dos termos “quantum” e “quântica” para explicar o inexplicável. Saiba que a quântica em sua estranheza está restrita às dimensões do átomo, e não emerge como fenômeno concreto na escala macro. Não existe frequências quânticas em remédios, como também não existe uma igreja quântica, projeção quântica de pensamentos, muito menos uma oração quântica. Quem alardeia coisas desse tipo demonstra ou rematada ignorância ou flagrante má fé. E por vezes, ambas estão superpostas.
Por que trago à baila esse assunto? Talvez porque esteja cansado de tanta confusão quando se trata de teologia, quântica e a relação entre ciência e fé. Certamente que a realidade vai muito além dos postulados da mecânica quântica e tantos outros modelos científicos, e a fé muito além do nosso (muitas vezes superficial) entendimento da Deidade, mas isso não nos habilita a propagar nossas opiniões como se fossem dogmas sem a devida reflexão abalizada e desrespeitando as fontes legítimas destas áreas de conhecimento. Nossa geração tem vivido sob os auspícios da cosmovisão pós-moderna, cuja essência é a entronização da subjetividade no lugar da realidade, onde as histórias interessam bem mais que a verdade, e a estética deita por terra a ética e a moral. Nessa cosmovisão tudo é válido, menos o real, o concreto e o objetivo. Mesmo a verdade científica aos poucos tem sucumbido aos ditames da individualidade. O tom é sempre de fusão de conceitos, subversão da realidade e abandono da verdade. E nada é mais pós-moderno nos últimos anos que enfiar o termo “quântica” em qualquer história, e com isso invocar um status superior a uma narrativa velha que se quer fazer nova. É sempre temerário achar que o cruzamento da galinha com a batata resultará em purê com gosto de frango assado. Pode até dar pano para uma boa conversa de fim de noite em bar para os que já estão com mente embotada, mas para os de mente lúcida será sempre uma sandice, fruto de uma mente infantil que ainda não aprendeu a pensar.
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