Quão real é a realidade?

Uma revelação surpreendente em um conversa no corredor de uma universidade

Como professor de físico-química, na área de mecânica quântica molecular, volta e meia encontro-me às voltas em discussões filosóficas, decorrentes das implicações e bizarrices da área. Sempre há alunos com dúvidas e conflitos acerca dessas implicações. Sempre brinco com eles dizendo “Aceitem por fé. É mais fácil assim”. Vez ou outra, há um aluno mais comprometido com suas inquietações que dá algum trabalho, mas nada sério. Todos têm o inalienável direito de possuir suas próprias convicções. A dificuldade reside em travar um diálogo com uma criatura que insiste em promover seu ponto de vista como se toda a vida do universo dependesse de minha aceitação incondicional a seus argumentos. Nesses poucos casos, procuro andar uma ou duas milhas a mais, na esperança de trazer algum esclarecimento. As dúvidas são reais, os argumentos duvidosos. Acompanhe-me em uma dessas conversas que ocorreram nos corredores da UFAM.

***

Finzinho de uma aula de química quântica, versando sobre superposições de estados e o experimento mental do gato de Schrödinger. Um aluno, que ouvia quieto a explanação, à saída dos colegas, afirma de supetão:

– A realidade é concreta e não probabilística, professor.

– Como assim? – pergunto com vago interesse, já de olho no relógio e na porta.

– A realidade não é uma superposição de estados quânticos. 

– Não afirmei isso. Apenas expliquei que os estados quânticos de um sistema, em geral, apresentam-se como uma superposição de estados…

– A realidade é apenas como nos apresenta – ressalta o aluno. Observo com cuidado sua expressão, há um quê de asceta em seu olhar.

– Entendo… Significa que se te reprovar no fim do semestre isso é a realidade final acerca de tua pessoa e nada mais? – e faço menção de sair.

– Não estou falando nesse sentido de real. Mas, o real de fato. A realidade verdadeira. Entendeu, professor? – e se interpõe em meu caminho, à espera de uma resposta.

Percebo que não ficarei livre enquanto não satisfizer o curioso. Olho para o relógio e calculo que disponho de algum tempo até o próximo compromisso. Respondo devagar.

– Não, não entendi. Vamos tentar entender seu raciocínio. O que torna algo real para você?

– Ora, seu cheiro, cor, peso, composição, volume, textura, som que emite.

– Entendo… Mas esses são critérios que apontam apenas para a percepção do real e não para a realidade em si.

– Mas, só temos a percepção do real. Não podemos saber de mais nada, só sobra isso – novamente aquela expressão de ascetismo, com uma pontada de fanatismo.

– Você está me dizendo que a realidade, é apenas uma percepção material?

– Por aí…

– Certo… Já ouviu falar de materialismo, cosmovisão que pressupõe que a realidade é apenas interação material e mais nada? Ou de sua vertente mais abrangente, o naturalismo?

– Já li algo a respeito.

– Muito bem, então vou seguir essa linha de pensamento, que me parece ser a sua. Uma vez que usamos sentidos limitados para perceber e interagir com esta realidade, por definição nossa percepção é, no máximo, uma aproximação grosseira da realidade. Concordas?

– Concordo.

– Você confia plenamente em seus sentidos? 

– Não muito… Mas confio naquilo que vejo e pego.

– Uma confiança perigosa e uma resposta contraditória – enfatizo com um longo olhar –, mas continuemos: se sua confiança está relacionada ao grau de certeza e depende apenas de bases sensoriais, então sua visão das coisas está mais para um palpite. Certo?

– Mas, as coisas são reais. O chão é real, um pedaço de ferro é real, um doce é real. Deve ser possível conhecer algo realmente verdadeiro sobre elas, tais como sua forma, composição, interação com outras coisas…

– Saber o quê? Sua cor, cheiro, massa, etc.? Ora, isso são apenas descritores do estado real de um objeto, e não a realidade final sobre o mesmo. Se tomarmos um pedaço de pão e esmiuçarmos sua estrutura chegaremos a proteínas e carboidratos complexos e outros compostos menores. Se esmiuçarmos ainda mais, toparemos com moléculas e átomos. Se considerarmos estas estruturas as bases da realidade, estaremos apenas riscando a superfície da questão. Átomos são compostos de partículas, e estas de subpartículas, que por sua vez dependem de campos intrínsecos, flutuações quânticas, partículas virtuais, em um redemoinho furioso de nanoescalas inconcebíveis. Isso sem falar na informação imaterial que permeia todos os processos. E na base de tudo isso está o mais profundo “nada/tudo” que sustém toda a realidade.

– Mas devemos ser capazes de definir o que é a realidade. Afinal somos cientistas.

– Somos? – e refreio um sorriso pela ousada afirmação – Como definir o incompreensível? Como abarcar o inatingível? Como definir a realidade em sua total infinitude, a partir da finitude de pressuposições e sensações humanas? Me diga.

– Mas posso observar um fenômeno e compreender suas implicações e nada pode mudar este fato. Uma vez observado e descrito temos uma realidade existente, imutável.

– Um dos postulados mais caros da quântica em relação à observação de um fenômeno declara que o ato de observar modifica ou redefine a realidade observada. Logo, o que vês não é o que te propuseste univocamente a observar, pois já deixou de sê-lo pelo simples ato de observar. O que descreveste não foi a realidade, mas tua interação com um fenômeno real.

– Mas então, o que é real? Não vejo uma solução. 

– Talvez essa não seja a pergunta correta. Faz mais sentido perguntar quão real é a realidade.

– Não entendi…

– É tão real quanto possamos sentir ou supor e, ao mesmo tempo, muito além do que podemos pensar ou extrapolar. O tecido da realidade é feito de camadas sobre camadas e sua trama de partículas e campos. O que vemos e sentimos é apenas a cintilação, o brilho, decorrente do leve ondular de sua superfície.

– Não estou entendendo. Então nossas escolhas e percepções são apenas ilusão?

– Agora estamos saindo do assunto…

– Mas é uma implicação válida, professor!

– Ok, ok – dou uma suspirada e olho no relógio uma vez mais – somos reais, vivemos em um universo real e fazemos escolhas reais e significativas, contudo o véu final da realidade nos escapa, está além, adiante, como um ponto indefinido e desfocado em um horizonte que teima em não se aproximar.

– Então, nunca saberemos a verdade? É isso?

– Entenda, se há algo que possa abarcar o conceito total de realidade, necessariamente deverá transcendê-la, superá-la, ser-lhe dominador. 

– Mas a Ciência está em progresso, um dia entenderá tudo.

– O menor não pode conter o maior. É um princípio básico de coerência científica.

– O que sobra então?

– A sabedoria está em descobrir o que é esse Maior no qual a realidade repousa. Para essa questão final só pode haver uma resposta, gostemos ou não.

– Ah! Mas isso é sair pela tangente… o senhor está indo para o lado da religião.

– Foi você quem começou a discussão e citou religião…

– Religião não tem nada a ver com realidade…

– Por quê? A religião é algo que está fora do teu conceito de realidade?

– Está! – e me lança um olhar de desafio.

– Então você consegue abarcar completamente todo o conceito de realidade, pois podes até julgar o que faz parte da realidade e o que não é real. Você deve ser o Maior que contém o menor. Estás te candidatando ao posto de Deus?

– Não é bem isso, só acho que religião, sobrenatural e essas coisas, não são reais – novo olhar de desafio.

– Então que fique claro – e com voz pausada, continuo – você está expressando sua opinião. Julgar o conceito de realidade com base em opinião não é nada científico. 

– Quem garante que minha opinião não é a real? – há um tom de pregação em sua voz que lembra alguns pastores no púlpito.

– Será que teu conceito materialista de realidade não é apenas uma opinião limitada acerca do que é real?

– Só existe essa realidade, nada mais. O aqui e o agora. Nem Deus, nem vida além, nada.

– Deus é o fundamento, o significado e a sustentação da realidade na qual existimos e nos movemos – afirmo de forma pausada.

– Professor, quem garante que Deus é real? Pode ser apenas uma opinião.

– Você estaria verdadeiramente disposto a dar sua vida por sua opinião de uma realidade unicamente material? Seja sincero.

– Não…

– Essa é a diferença e a garantia entre nossas opiniões.

– …

– Até mais. Nos vemos na próxima aula – e com alguma pressa encaminho-me para meu próximo compromisso.

 

 

 


 

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Autor: KELSON MOTA. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisão e Edição por Vinicius Lima.