Além do tempo

A eternidade de Deus

“Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer:
que, para o Senhor, um dia é como mil anos,
e mil anos, como um dia”
(2 Pedro 3.8)

Sou fã de literatura e filmes de ficção científica, especialmente quando a trama envolve viagem no tempo, paradoxo temporal, dilatação do tempo ou relatividade. Se a narrativa incluir todos esses elementos, tanto melhor. A concretude e a efemeridade do tempo sempre me atraíram. Meses depois do Senhor ter me alcançado do ateísmo universitário em que me encontrava, me deparei assombrado com o texto de 2 Pedro 3.8, que encima estas linhas. Lembrava muito o conceito proposto por Einstein de que o tempo é relativo ao observador, algo completamente diferente da noção clássica de “tempo absoluto”, de Isaac Newton. Para Einstein, o tempo pode sofrer dilatação, e, dependendo da velocidade do observador, ou do campo gravitacional em que está inserido, um único dia pode de fato durar mil anos em relação a um referencial externo. Embora nesta passagem, o apóstolo Pedro não esteja discutindo a teoria da relatividade, sua descrição aponta para a ideia de que nossa percepção do tempo é completamente diferente da do Senhor Deus, assim como a relatividade nos ensina que o tempo pode ser percebido de maneira diferente em diferentes contextos. Segundo Pedro, é sempre bom lembrar que o Senhor Deus não está restrito pelas limitações temporais e um único momento para o Senhor pode se desdobrar em uma eternidade, assim como milhares de anos para sua Pessoa pode ser tão efêmero quanto um único bater de asas de um beija-flor. Nas palavras de Moisés: “Pois mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem que se foi e como a vigília da noite.” (Sl 90.4).

Pensar sobre o tempo como fenômeno, ou tentar defini-lo, não é algo trivial, especialmente porque vivemos dentro de uma realidade temporal e toda nossa percepção está relacionada à noção do quando. Mesmo os porquês necessitam do quando. Tente explicar um fenômeno ou contar uma história coerente, ignorando qualquer noção temporal, e terás pela frente uma missão extremamente árdua. Como seres que vivem no fluxo de tempo, temos necessidade de ancorar explicações, histórias, teorias, descrições, em uma linha cronológica que abrigue uma sucessão de eventos que se desenrolam em momentos que se sucedem uns aos outros. C.S. Lewis argumentou que é impossível abandonar o quando ao buscar o sentido das coisas, pois “não é apenas o modo como a vida se apresenta para nós, mas o modo como funcionam todas as coisas que existem[1]. Como entender este aspecto da realidade sem nos valer de redundâncias temporais? O que de fato é a dimensão tempo?

Há várias abordagens que tentam compreender o tempo, mas todas envolvem o conceito clássico de tempo absoluto, o tempo relativo ou a percepção subjetiva cronológica, e nenhuma consegue fornecer uma explicação satisfatória desse aspecto da realidade. Por exemplo, a definição clássica de tempo, o período entre dois eventos, não define o tempo, apenas indica a duração do fenômeno. Kant argumentou que o tempo é uma estrutura inerente à mente humana, algo apenas intuído, não tanto físico, de cunho mais subjetivo (o que pouco acrescenta à questão). William James, em termos psicológicos, fazia distinção entre tempo cronológico e percepção temporal, uma observação interessante, embora de utilidade limitada. Os hindus e budistas concebem o tempo como um fenômeno cíclico, inserido em uma roda perpétua de destruição e criação, caos sucedendo a ordem, este por sua vez sucedendo o caos, em um ciclo ininterrupto. O que também não resolve a questão, apenas o considera como algo infinito. A teoria do universo bloco, por sua vez, considera o tempo passado, presente e futuro como uma entidade única e estática, um bloco sólido, onde todos os eventos já existem, e nossa experiência é apenas uma “fatia” do todo, e o que chamamos de futuro já está definido desde sempre. Entretanto, sendo uma teoria naturalista, não consegue explicar o quê, como ou quem, definiu todos os momentos futuros. Para a termodinâmica, de forma mais pragmática, o tempo está intrinsecamente relacionado à entropia. Enquanto a entropia se manifesta na quantidade de desordem em um sistema, o tempo desempenha um papel importante na forma como essa desordem se manifesta. A 2ª lei da termodinâmica é taxativa ao mostrar que a entropia de um sistema isolado tende a aumentar com o tempo. Nesse caso, o tempo não melhora as coisas, é apenas uma seta a apontar para um futuro entrópico não muito auspicioso.

Considerando que o tempo é uma criação de Deus, como se relaciona com o seu Criador? Para citar apenas um teólogo, Agostinho distinguia entre “tempo interior” (tempus interius, a experiência interna da mente) e “tempo exterior” (tempus exteriurs, a medida cronológica), e defendia que o único momento verdadeiramente concreto era o presente. Foi ele quem primeiro teorizou o tempo como uma criação divina, e que o Senhor Deus existe fora do tempo, em uma eternidade atemporal, onde todos os momentos da história humana lhe são simultâneos e acessíveis, tanto os passados quanto os que hão de vir. Nas palavras de Moisés:

“Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo,
de eternidade a eternidade, tu és Deus.”
(Sl 90:2)

O que esse verso revela? Que Deus sempre esteve/está/estará fora do tempo. Talvez seja essa a dificuldade que surge ao refletir sobre a eternidade. E aqui é bom esclarecer: eternidade não é uma dimensão temporal infinita, é algo além do tempo, sem início, sem fim, de existência contínua, passado sem início, presente perpétuo, futuro sem fim. Moisés ao se referir à auto-existência de Deus não a ancora em termos cronológicos, mas sim de eternidade a eternidade, por mais estranho que possa soar. Deus É o que É, e nessa singular e maravilhosa afirmação de autoconhecimento atemporal, qualquer tempo verbal vai exalar a eternidade do ser de Deus. “Eu Sou o que Sou”, é tão eterno quanto “Eu sou o que Era”, “Eu Serei o que Sou”, “Eu Era o que Sou”. Ele é “Aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso.” (Ap 1.8). As variações dos tempos verbais nos remetem à verdade que o Deus Trino está além do tempo. “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre.” (Hb 13.8) expressa a mesma concepção de eternidade. As implicações dessa verdade têm caraterísticas daquilo que é inefável e, portanto, impossível de traduzir adequadamente em palavras. Quando Agostinho afirma que para o Senhor Deus todos os momentos da história humana lhe são simultâneos e acessíveis, por lógica ensina que o Senhor pode dispensar atenção infinita e eterna a cada momento de sua criação. Nenhuma oração, por menor que seja, terá menos tempo que a eternidade para ser apreciada na presença de Deus. Isso é um pensamento deveras encorajador, pois o Senhor nunca estará ocupado o suficiente para que não tenha tempo para ouvir atentamente a seus filhos.

Um outro aspecto a ser considerado, dado que o Senhor É o que É, logicamente Ele não possui passado ou futuro. Existir um passado para Deus implicaria afirmar que coisas que já aconteceram deixaram de existir para Ele, pois foram tomados pelo tempo – algo se perdeu. Existir um futuro para Deus, significa que ainda sofrerá mudanças com o porvir – algo ainda deverá ser acrescentado. Naturalmente nenhum dos casos pode ser, pois nEle não há variação ou sombra de mudança (Tg 1.17). Nesse sentido, é correta a visão de C.S. Lewis, que concorda com Agostinho, quando afirma que Deus não tem história, posto que “Ele é tão absolutamente real que não pode ter. Isso porque ter uma história significa perder uma parte da realidade (que se desvanece no passado) e ainda não gozar de outra parte (que se encontra no futuro): na verdade, ter uma história é não possuir nada a não ser o minúsculo tempo presente, que acaba antes que possamos abrir a boca para falar dele[2]. Assim, de forma muito concreta, só temos o efêmero momento presente. Porém, o Senhor existe em todos os momentos. Ele está agora, em 2023, conduzindo sua Igreja, da mesma forma que está com Noé fechando a arca, cerca de 5000 anos atrás, como está recebendo um soldado moribundo em 1918, em alguma trincheira da batalha do Marne. Ele não tem lembrança do passado como algo que já ocorreu e nem tenta adivinhar o futuro como algo que virá, Ele simplesmente É/está em todos os momentos.

Para nós, mortais, o ontem se foi para sempre e o amanhã ainda não existe, o presente se esvai em um átimo, mas tanto um quanto outro continuam existindo eternamente na presença do Senhor Deus. A natureza do tempo e suas implicações demonstram a clara limitação de nossa realidade humana, porém quando pensamos no Deus que É além do tempo, isso nos traz assombro e santa admiração.

Àquele que era, que é e que há de vir, seja a o louvor de eternidade a eternidade. Amém!

 

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[1] Cristianismo Puro e Simples. Editora Martins Fontes, Pág. 58.

[2] Cristianismo Puro e Simples. Editora Martins Fontes, Pág. 59.

 

Autor: KELSON MOTA. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisão e Edição por Vinicius Lima.