Lutero e o Sola Scriptura hoje

Ainda podemos aprender hoje com tudo isso?

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A confiança de Lutero na Palavra de Deus era grande. Cinco séculos mais tarde, a tradução da Bíblia em miríades de línguas continua sem esmorecer. Muitos cristãos, pelo menos nos Estados Unidos, possuem várias Bíblias em suas casas. As missões por todo o mundo e em casa têm espalhado a Palavra de Deus com um sucesso notável. Contudo, ainda lutamos contra a mesma resistência a essa Palavra em nossos dias, até mesmo na igreja.

Em primeiro lugar, realmente compartilhamos da mesma confiança no poder da Palavra de Deus, como Lutero — especialmente proclamada —, no sentido de criar o mundo do qual ela fala? Ou achamos que a Palavra precisa de nossa ajuda, por meio da invenção de técnicas conhecidas e truques que surtam maior efeito no crescimento das igrejas e em alcançar os perdidos?

Segundo, quase dois séculos depois da Reforma, o Iluminismo trouxe uma atitude crítica em relação a toda autoridade externa ao indivíduo. O protestantismo liberal criou um novo papado do acadêmico bíblico. Como o cristão comum poderia presumir vir à Bíblia diretamente, em face de seus supostos erros, contradições e ensinos diversos? Só os acadêmicos, dizia-se, podem dizer-nos o que a Bíblia realmente diz. Cada vez mais, o leigo comum e muitos pastores passaram a acreditar que a Bíblia era complicada demais e até mesmo seus textos seriam contestados demais para se imaginar possível compreender seu significado básico.

Terceiro, também existem os “entusiastas” que atraem milhares, algumas vezes até milhões, de seguidores para suas propostas revelações, longe da verdadeira essência da Palavra de Deus. William McLoughlin nos lembra que o efeito do pietismo na experiência religiosa norte-americana (especialmente o que culminou no Segundo Grande Despertamento) era deslocar a ênfase de “crença coletiva, adesão a padrões de credos e observação própria de formas tradicionais para a ênfase nas experiências religiosas individuais”.[1] Se o Iluminismo mudou “a autoridade última na religião” da igreja para “mente do indivíduo”, o pietismo e o romantismo situaram a autoridade última na experiência do indivíduo.[2] Tudo isso sugere que, atualmente, o evangelicalismo tem sido tanto o facilitador como a vítima do secularismo moderno.

Escrevendo como autodeclarado judeu gnóstico, Harold Bloom tem aprovadamente caracterizado a religião americana como gnóstica de uma forma geral: uma palavra, espírito e igreja interior, em contraposição a uma Palavra, espírito e igreja externa.[3] Assim como o chamado interno do Espírito é frequentemente contrastado com os meios exteriores, boa parte do evangelicalismo de hoje celebra o líder carismático que não necessita de treinamento formal ou ordenação eclesiástica externa para confirmar um chamado espontâneo, direto e interno para o ministério. Talvez os historiadores debatam se o entusiasmo protestante é mais uma consequência do que uma causa da típica confiança norte-americana no individualismo intuitivo contra autoridades externas e instrução compartilhada, mas essa conexão nos parece óbvia. Em seu livro Head and Heart, o historiador católico Garry Wills observa:

A reunião de campo estabeleceu o modelo para credenciar os ministros evangélicos. Eles eram validados pela reação da multidão. Aqui, aspectos como credenciamento organizacional, pureza doutrinária e cultura pessoal eram inúteis — na verdade, alguns ministros com cultura tiveram de fingir ignorância. O ministro era ordenado de baixo para cima, pelos convertidos que ele conseguia fazer. Esse era um procedimento ainda mais democrático do que na política eleitoral, em que o candidato se apresentava para a função e dedicava algum tempo à campanha. Essa era uma proclamação espontânea e instantânea que o Espírito realizava. Essa religião “faça por si mesmo” pedia um ministério “invente por si mesmo”.[4]

À luz dessa história, as descobertas de Wade Clark Roof não surpreendem quando ele diz: “A distinção entre ‘espírito’ e ‘instituição’ é de suma importância aos que buscam espiritualidade hoje em dia.[5] O espírito é o aspecto interno, vivencial, da religião; a instituição é a forma externa estabelecida da religião”.[6] Ele acrescenta: “A experiência direta é sempre mais confiável, se por nenhuma outra razão, por sua ‘interioridade’ e ‘intimidade’ — duas qualidades que passaram a ser muito apreciadas em nossa cultura altamente expressiva e narcisista”.[7] Na verdade, Roof chega perto de sugerir que o evangelicalismo se dá bem nessa espécie de cultura porque ajudou a criá-la.

Stanley Grenz defende essa abordagem de dentro para fora. “Embora alguns evangélicos pertençam a tradições eclesiológicas que entendem o papel da igreja como de alguma dispenseira da graça”, observa ele, “em geral nós vemos nossas congregações primordialmente como uma comunidade de crentes”.[8] Compartilhamos nossas jornadas (nosso “testemunho”) de transformação pessoal.[9] Portanto, Grenz celebra a “mudança fundamental de uma identidade baseada em credo para uma identidade baseada na espiritualidade”, que é muito mais parecida com o misticismo medieval do que a ortodoxia protestante.[10] “Consequentemente, a espiritualidade é direcionada ao interior e contemplativa”,[11] preocupada em combater “o mundo e a natureza inferior”,[12] em um “compromisso pessoal que se torna o foco máximo dos afetos do crente”.[13]

Em nenhum lugar desse relato, Grenz situa a origem da fé em um evangelho externo; pelo contrário, a fé tem sua origem em uma experiência interior. “Como a espiritualidade é gerada dentro do indivíduo, a motivação interna é crucial — mais importante, na verdade, do que grandes declarações teológicas.”[14]

Tudo isso não se coaduna com a ênfase na doutrina e especialmente, Grenz acrescenta, uma “ênfase em um princípio material e formal” — aludindo aos lemas reformados de sola fide e sola Scriptura.[15] Embora as Escrituras declarem que a “fé vem pelo ouvir e o ouvir pela palavra de Cristo”, Grenz diz que “a fé, por sua própria natureza, é imediata”.[16]

 Consistente com sua ênfase na prioridade da experiência interior, Grenz insiste em uma “compreensão revisionista da natureza da autoridade da Bíblia”.[17] Atualmente, nossa própria experiência religiosa necessita ser incluída no processo de inspiração.[18] Esse tipo de piedade oferece um paralelo surpreendente e trágico ao entusiasmo que os reformadores enfrentaram no século XVI.

Seguindo Lutero e Calvino, os pastores de Westminster confessaram que o Espírito abençoa “a leitura, especialmente a pregação da Palavra”, como um “meio de graça” precisamente porque através dela o Espírito está “nos chamando para fora de nós mesmos”, a fim de que nos agarremos a Cristo.[19] Estavam asseverando que a leitura fiel, meditativa e acompanhada de oração da Escritura individualmente e no culto familiar era essencial, porém subordinada ao ministério público da Palavra na vida comum da igreja. Assim como a Palavra cria a comunidade, só pode ser verdadeiramente ouvida, recebida e seguida nos intercâmbios concretos e comprometidos dentro dessa comunidade.

Quarto, a expressão sola Scriptura em nossos dias frequentemente é mal-entendida, de modo a nos lembrar a controvérsia do século XVI. Esse lema não quer dizer que a Bíblia seja um manual autossuficiente para todas as coisas — economia, governo, bem-estar psicológico e material e assim em diante. Os anabatistas radicais desprezavam todo aprendizado secular, mas Lutero e Calvino rejeitavam fortemente a ideia de que só a Bíblia provia tudo que era necessário para nossa vida no mundo. Com certeza, o que a Escritura revela transforma e informa o modo como pensamos em relação a todas as coisas, mas ela não trata de toda questão que temos na vida. Existe uma distinção importante entre a graça comum de Deus na revelação geral e sua graça salvadora na revelação especial. O propósito e o escopo da Escritura consistem em anunciar as boas-novas que não podemos ouvir de nenhuma outra fonte. A Escritura entrega a sabedoria celestial sobre a lei de Deus e o modo como devemos viver e nos relacionar com o próximo. Mas, acima de tudo, diz-nos como Deus tornou Cristo nossa “sabedoria de Deus, justiça, santificação e redenção” (1 Co 1.30).

Um ledo engano acerca do Sola Scriptura

Lutero nunca entendeu sola Scriptura como se o crente pudesse entender a Bíblia sozinho sem fazer parte do corpo mais amplo de Cristo, instruído por ministros fiéis. Apenas os entusiastas descartavam toda autoridade e liam a Bíblia por si mesmos, sem responsabilidade para com o corpo de Cristo, especialmente para com seus oficiais. Lutero e outros reformadores magistrais criam que a igreja é “a mãe dos fiéis”, mas que concebe seus filhos somente pela Palavra. A Escritura exerce uma autoridade magistral, mas a igreja recebe por Cristo a legítima autoridade ministerial.

A igreja nos alimenta, nos corrige e nos instrui na fé. Não é seguro deixar seus cuidados para vagar por conta própria. Por essa razão, as igrejas da Reforma aceitavam os credos ecumênicos que sumarizavam os ensinamentos centrais da Bíblia. Os credos são autoridade porque resumem a Escritura, não em razão da autoridade da igreja.[20] Foi por isso que Lutero escreveu um catecismo e Melanchthon elaborou a Confissão de Augsburgo. Juntos, confessamos a Palavra de Deus, considerando uns aos outros responsáveis por nossas interpretações. A clareza da Escritura nos dá consenso e unidade, enquanto a dureza de nosso coração, a insensatez e o amor por novidades trazem cismas.

Cinco, Lutero enfrentou opositores como Erasmo, que não apresentaram dificuldade em se submeter aos juízos da igreja porque realmente não levavam a sério as questões que estavam em jogo. Por que causar divisão por doutrina? Erasmo disse que a Bíblia versa principalmente sobre treinamento em discipulado, e não sobre questões doutrinárias. É claro que existe muito mais na Escritura do que simples proposições, mas o evangelho é, em seu cerne, um conjunto de afirmativas sobre a graça salvadora de Deus em Jesus Cristo — sua encarnação, vida, morte, ressurreição, ascensão e volta na carne. O mesmo desafio de indiferença doutrinária é evidente de todos os lados. A doutrina divide, o serviço une, ouvimos constantemente. Atos, não credos. Lutero nos responde como fez com Erasmo: “Se abolires as afirmativas, abolirás o cristianismo”.[21] O cristianismo faz o seu melhor não quando tenta marcar pontos na academia ou ganhar concursos de popularidade na cultura, mas quando proclama a lei e o evangelho.

Sola Scriptura e as divisões

Sola Scriptura não é a razão para as divisões na cristandade. Antes do surgimento do papado conforme o conhecemos, Gregório, o Grande, bispo de Roma, advertiu que qualquer bispo que reivindicasse o título de bispo universal estava, “em sua jactância altiva, sendo precursor do Anticristo”.[22] Depois de suportar a ostentação cismática dos papas, a igreja ortodoxa oriental excomungou Roma no décimo primeiro século. Lutero nunca abandonou a comunidade católica romana; foi excomungado por pregar o que foi prometido pelos profetas, cumprido em Cristo e transmitido pelos apóstolos.

Tragicamente, porém, até mesmo as igrejas da Reforma se dividiram logo depois que a nova luz raiou. Hoje, quando olhamos as divisões do Protestantismo, o coração se parte. Tais divisões começaram ainda nos primeiros anos da Reforma. No entanto, a verdadeira prova da unidade é quando abraçamos o evangelho que Lutero e outros reformadores recuperaram naquela época singular.

Ainda hoje, a Palavra de Deus é obscurecida e até mesmo contrariada pelos ensinos da Igreja Católica Romana, que continua a ensinar que a Escritura não é suficiente sem o tesouro dos papas e concílios, e — mais importante ainda — rejeita como anátema a afirmação central do evangelho, de que somos salvos somente pela graça, por meio da fé somente em Cristo, para a glória somente de Deus. No entanto, somente um espírito partidário poderia ver essa corrupção do evangelho como um problema meramente católico romano. Em muitas igrejas protestantes atuais, até mesmo aquelas que vieram historicamente de Lutero e Calvino, existem distorções tão grandes — às vezes até maiores — do que aquelas que os reformadores tiveram de enfrentar em seus dias. Precisamos de uma nova Reforma — uma que abranja até mesmo as igrejas católicas romanas, pentecostais e tradicionais protestantes, como também igrejas confessionais menores que procuram exaltar a “Palavra acima de todos os poderes terrenos”.

O Sola Scriptura forjado em meio à dor

À medida que envelhecia, Lutero foi-se tornando mais consciente de suas próprias limitações. Por vezes indagava: “Como eu pude imaginar estar certo e todos os demais errados?”. Mas ele voltava sempre à seguinte questão: É isso que a Palavra de Deus ensina claramente? Não decidia isso sozinho, mas na companhia de colegas pastores e de paroquianos — incluindo a sua esposa — que também conheciam a Palavra de Deus.

A visão de Lutero acerca da Escritura foi forjada pela vida. Em um sermão de Natal de 1519, ele disse que não somente a oração e a meditação, mas também o sofrimento, fazem o teólogo. As décadas passadas não apenas lendo, pregando e traduzindo, mas também lutando e sofrendo na companhia da Escritura, aprofundaram o afeto de Lutero e sua dependência em relação à Palavra de Deus. Um dia antes de morrer, ele rabiscou esse bilhete:

Ninguém pode entender Virgílio em suas Bucólicas e Geórgicas a não ser que tenha sido pastor ou fazendeiro por cinco anos. Ninguém entende as cartas de Cícero a não ser que tenha vivido na lida pública relevante por vinte anos. Ninguém deve supor haver provado a Sagrada Escritura suficientemente a não ser que tenha presidido nas igrejas com os profetas por cem anos. Portanto, existe algo maravilhoso, primeiro sobre João Batista; segundo, sobre Cristo; terceiro, sobre os apóstolos. “Não deites tua mão sobre esta divina Eneida, mas curva-te diante dela, adorando cada um de seus traços.” Somos mendigos. Essa é a verdade.[23]

 

Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro O legado de Lutero, da Editora Fiel.


[1] William McLoughlin, Revivals, Awakenings, and Reform (Chicago: Universidade of Chicago Press, 1980), 25.

[2] Ned C. Landsman, From Colonials to Provincials: American Thought and Culture, 1680-1760 (New York: Twayne, 1997; Ithaca, N.Y.: Cornell Universidade Press, 2000), 66.

[3] Harold Bloom, The American Religion: The Emergence of the Post-Christian Nation (New York: Simon and Schuster, 1993).

[4] Garry Wills, Head and Heart: American Christianities (New York: Penguin, 2007), 294.

[5] Wade Clark Roof, A Generation of Seekers: The Spiritual Journeys of the Baby Boom Generation (San Francisco: HarperCollins, 1993), 30.

[6] Ibid.

[7] Ibid., 67

[8] Stanley J. Grenz, Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1993), 32.

[9] Ibid., 33.

[10] Ibid., 38, 41.

[11] Ibid., 41-42.

[12] Ibid., 44.

[13] Ibid., 45.

[14] Ibid., 46. Ênfase acrescentada.

[15] Ibid., 62.

[16] Ibid, 80.

[17] Ibid., 88.

[18] Ibid, 122.

[19] Catecismo menor de Westminster, 89.

[20] Luther, Large Catechism, in The Book of Concord (1959), 411.

[21] LW, 33:21.

[22] Gregório, o Grande, Epístolas 7:33. Gregório acrescenta em outro lugar: “Se ele desprezasse a sujeição dos membros de Cristo parcialmente para certos líderes, como se, além de Cristo, ainda que isso fosse para os apóstolos, o que dirias a Cristo, que é a cabeça da igreja universal, no escrutínio do juízo final, tendo tentado colocar todos os membros sob teu comando por um apelo universal? Quem, pergunto, propõe-se a ser imitado nessa designação de culpa senão aquele que despreza as legiões de anjos socialmente constituídos com ele, com vistas a subir para uma eminência de singularidade, para não ser visto debaixo de ninguém e colocar-se acima de todos?” (Epístolas, 5:18.)

[23] LW, 54:476.

Por: Michael Horton. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Edição por Vinicius Lima.