“Eu nada fiz. A palavra fez tudo!”

O Sola Scriptura no caloroso debate entre Lutero e Johann Eck

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Em junho de 1519, Lutero viajou a Leipzig para debater suas ideias emergentes com um dos principais teólogos da igreja católica, Johann Eck. Tratava-se mais de um debate público do que de um julgamento. No entanto, Lutero foi acompanhado por duzentos estudantes armados com machados para a batalha. O que planejavam fazer, se é que pretendiam fazer algo, isso não está muito claro!

Eck acusou Lutero de advogar o ponto de vista de João Hus, que fora condenado, cem anos antes, no Concílio de Constança e queimado na fogueira. Lutero continuava protestando que ele não era como Hus, e Eck continuou a pressioná-lo. Então, fizeram uma pausa nos debates para almoçar.

Nesse intervalo, Lutero foi até a biblioteca da universidade para reunir maiores informações a respeito de Hus. Ele examinou o relato do Concílio e descobriu, surpreso, que Eck estava certo: Lutero defendia a mesma posição de Hus. Assim, no início da sessão da tarde, para o assombro de todos, Lutero declarou: “Entre os artigos de João Hus, encontro muitos que são claramente cristãos e evangélicos, os quais a Igreja universal não pode condenar”.[1] O duque George, que presidia o debate, então, deixou escapar a seguinte exclamação: “A praga!”. Alguns dos apoiadores de Hus haviam feito uma grande agitação nas terras de George em retaliação pela execução de Hus. George não desejava ver esse erro repetir-se.

Foi um momento dramático, e Lutero certamente não era alheio a um pouco de melodrama. Mas isso exemplificava o problema que Lutero enfrentava cada vez mais. Eck havia sido sagaz. Não entrara no debate com Lutero sobre o significado do Novo Testamento. Talvez ele já suspeitasse que iria perder o debate. Em vez disso, argumentou que Lutero estava se alinhando a alguém que a igreja havia condenado como herege. Tornou-a uma questão de autoridade da igreja. Isso, então, expôs o dilema de Lutero. Lutero começara desejando reformar a igreja católica. Mas Eck havia mostrado que Lutero defendia uma posição que a Igreja já condenara. Então, para Lutero, a autoridade da Igreja e a autoridade das Escrituras estavam em confronto direto. Ele teria de escolher entre ambas. E escolheu a Escritura.

O debate continuou com Eck afirmando que Hus era herege e Lutero dizendo que nem tudo que Hus dizia deveria ser condenado como heresia. Por fim, Lutero chegou ao ponto central: “Deixem-me falar em alemão. Estou sendo mal-entendido pelo povo. Assevero que um Concílio às vezes erra e, vez ou outra, pode errar, e tal concílio não tem autoridade para estabelecer novos artigos de fé”. Eck, então, respondeu: “Você é o único que sabe alguma coisa? Com exceção de você, toda a Igreja estaria errada?”, ao que Lutero replicou:

Respondo que, certa vez, Deus falou por meio da boca de um asno. Direi diretamente o que penso. Sou teólogo cristão, e sinto-me obrigado a não somente afirmar, como também a defender a verdade com meu sangue e minha morte. Creio livremente e não serei escravo da autoridade de ninguém, seja um concílio, uma universidade ou um papa.[2]

Após 18 dias, o duque George resolveu encerrar o debate. Não estava havendo nenhum progresso, e desejava liberar o salão para a diversão de um hóspede distinto que logo chegaria. O debate prosseguiu na forma de panfletos. Até fevereiro de 1520, Lutero havia feito mais pesquisas a respeito de Hus. E concluiu: “Somos todos Hussitas sem o saber”.[3] Com essa declaração, a autoridade da tradição eclesiástica foi despedaçada. A igreja instituconal havia condenado Hus por pontos de vista que Lutero agora via como os ensinados pela Palavra de Deus.

É este o significado de sola Scriptura: “Somente a Escritura” – um dos lemas-chave da Reforma. Não significa que outras coisas não possam informar a nossa teologia. Os reformadores citavam livremente os  teólogos do passado como guias de autoridade. Eles refletiam sobre a experiência e utilizavam a razão. O que sola Scriptura quer dizer é que, quando temos de escolher, há apenas uma escolha que podemos fazer: somente a Escritura é nossa autoridade máxima. Em especial, é a suprema autoridade, em contraste à autoridade da Igreja, com suas tradições. A igreja católica reivindicava o direito de interpretar as Escrituras. Eram sempre as Escrituras, juntamente com a interpretação da Igreja, que carregavam autoridade final.

Essa ainda é a afirmativa da igreja católica. O catecismo da igreja católica é a declaração contemporânea oficial da crença católica, publicada, em 1992, com a aprovação do papa João Paulo II.[4] Esse catecismo declara explicitamente que a revelação divina conta com “dois modos de transmissão”: a Escritura Sagrada e a Santa Tradição (§81).

O resultado foi que a Igreja à qual a transmissão e a interpretação da Revelação foram confiadas não extrai sua certeza quanto a todas as verdades reveladas somente das Santas Escrituras. Tanto a Escritura como a Tradição devem ser aceitas e honradas com iguais sentimentos de devoção e reverência (§82).

Passa, então, a dizer: “A tarefa de interpretar a Palavra de Deus de forma autêntica foi confiada unicamente ao magistério da igreja, ou seja, ao papa e aos bispos em comunhão com ele” (§100).

Para tais reivindicações foi que os reformadores lançaram o desafio da sola Scriptura. Com frequência, dizem que a justificação somente pela fé foi o princípio material da Reforma. Ou seja, somente a fé estava no cerne do conteúdo da Reforma. Mas a recuperação da Escritura foi seu princípio formal. Noutras palavras, somente a Escritura estava no cerne de seu método. Alister McGrath diz: “Se os reformadores destronizaram o papa, entronizaram a Escritura”.[5]

Muitas vezes, vamos adiante ao retrocedermos. Foi o que aconteceu na Reforma. Os reformadores não estavam tentando forjar algo novo. Os reformadores não saíram dispostos a transformar o mundo. Eles só queriam voltar para a Bíblia. Mas a volta à Bíblia mudou o mundo. E era desta forma que Lutero descrevia a Reforma:

Eu me opus às indulgências e a todos os papistas, mas jamais pela força. Simplesmente ensinei, preguei e escrevi sobre a Palavra de Deus; não fiz nada mais que isso. Enquanto eu dormia, ou tomava cerveja de Wittenberg com Philip e Amsdorf [amigos de Lutero], a palavra enfraqueceu o papado de um modo que nenhum príncipe ou imperador jamais infligira tantas perdas sobre ele. Eu nada fiz. A palavra fez tudo.[6]

 

Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro Por que a reforma ainda é importante?, de Michael Reeves e Tim Chester, Editora Fiel.

 


[1] D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimar: Böhlau, 1833-), 2:279. Citado em Roland Bainton, Here I stand: Martin Luther (Oxford: Lion, 1978), 115-16.

[2] D. Martin Luthers Werke, 2:404. Citado em Bainton, Here I Stand, 116-19.

[3] D. Martin Luthers Werke, Briefwehsel, 254. Citado em Bainton, Here I Stand, 120.

[4] Catecismo da Igreja Católica (Londres: Geoffrey Chapman, 1994). Acesso em: 6 out. 2015. Disponível em: http:// www.vatican.va/arhive/ccc/index.htm.

[5] Alister McGrath, Reformation Thought: An Introduction (Oxford: Blackwell, 1988), 95.

[6] Lutero’s Works, 51:76-77.

Por: Michael Reeves. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Edição por Vinicius Lima.