Um blog do Ministério Fiel
Tudo é realmente vaidade?
Uma introdução ao difícil livro de Eclesiastes
Resumo: A aparente desolação e pessimismo em Eclesiastes tem confundido intérpretes das Escrituras há muito tempo. Alguns até argumentam que o epílogo do livro corrige a teologia “não ortodoxa” do meio. Os cristãos, porém, não precisam descartar o corpo de Eclesiastes como se fossem as reflexões de um cínico. O chocante, intencional e provocante realismo do livro reenquadra nossa perspectiva desse mundo à luz da eternidade, nos convidando a prepararmo-nos agora para a surpreendente esperança do juízo.
Deus protetor de todos os que confiam em ti,
sem quem nada é forte, nada é sagrado;
aumenta e multiplica sobre nós a tua misericórdia;
para que, sendo tu nosso governante e guia,
possamos atravessar as coisas temporais de tal forma que finalmente não percamos as coisas eternas:
Concede isto, Pai celestial, em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor.
Amém.
—A Coleta, Quarto Domingo após a Trindade, do Livro de oração comum.
Em seu famoso sermão “Aprendizado em tempos de Guerra”, C.S. Lewis lutou profundamente contra a relação entre as coisas temporais e as coisas eternas. O ponto de pressão particular desse contexto era o advento da Segunda Guerra Mundial. Como seus alunos deveriam compreender a busca pelos prazeres acadêmicos — o que Lewis chamava de “tarefas plácidas” — enquanto a Europa se encontrava no precipício de um conflito tão grande? Lewis abordou a questão ampliando suas lentes, alargando dramaticamente o escopo do perigo imediato para a mais remota — porém maior de todas — realidade: o julgamento pelo Deus vivo. Se o aprendizado em tempos de guerra pode ser comparado a Nero tocando enquanto Roma queimava, então “para o cristão, a verdadeira tragédia de Nero não deveria ser que ele tocava harpa durante o incêndio da cidade, mas que ele tocava harpa à beira do Inferno.” [1] Em outras palavras, Lewis sugeriu que a verdadeira questão é: como devemos dar sentido a qualquer coisa em nossa presente vida, corporal e terrena, enquanto o abismo da eternidade nos espera além da sepultura?
Ampliar as lentes geralmente muda tudo. Não é que nossas questões e desafios desaparecem; pelo contrário, eles se tornam mais nítidos. Quando estamos perguntando a respeito do sentido da vida, se alguma coisa importa, por que devemos amar e ser amados já que um dia vamos morrer e sobre como podemos continuar dando um passo de cada vez quando luto e dor ameaçam sufocar nossas próprias vidas, então a necessidade de uma visão geral, que ao mesmo tempo é verdadeira e bonita, é muito urgente.
Eu quero sugerir que a técnica de Lewis segue o habilidoso Pregador em Eclesiastes, que nos ajuda a passar pelas coisas temporais com sabedoria e sagacidade, precisamente porque ele vislumbrou o peso das coisas eternas. Eclesiastes é o livro da Bíblia que pergunta algumas das maiores questões da vida, mas nos deixa perplexos com suas respostas aparentemente não ortodoxas e impenetráveis. “Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?” (Ec 1.2-3). A chave para responder a essa pergunta é ver como o Pregador nos ajuda a passar pelas coisas temporais (“debaixo do sol”) para que, enfim, não percamos as coisas eternas (“[Deus] pôs a eternidade no coração do homem”, Ec 3.11).
Erros Interpretativos
Seguir a mensagem do Pregador não é uma tarefa fácil em um livro estranho a nós como Eclesiastes. Muitos intérpretes cristãos se equivocam ao lidar com a voz incomum com a qual esse devoto Pregador da sabedoria fala. Deixe-me demonstrar três erros comuns que nos ensurdecem para o sermão sobre a realidade que Eclesiastes está pregando. Então, destacarei quatro ênfases principais do quadro geral do livro que ampliam a lente e aprimoram o foco da mensagem do livro.
Formato do Livro
O primeiro erro tem a ver com o formato de todo o livro. Tremper Longman III, por exemplo, observa que o prólogo (Ec 1.1-11) e o epílogo (Ec 12.8-14) são ambos escritos em terceira pessoa, marcando uma clara diferença estilística do corpo principal do livro que consiste em reflexões autobiográficas (Ec 1.12-12.7). Para Longman, essa seção principal contém observações marcantes sobre Deus, a vida e a morte que estão em conflito evidente com as tradições de sabedoria de Israel, tanto que o Deus do Pregador é “distante, ocasionalmente indiferente e às vezes cruel.” [2] Essa perspectiva não ortodoxa é contrariada e corrigida pelo epílogo que, junto ao prólogo, fornece uma moldura ao entorno do livro que molda como devemos ler o todo. O ensino normativo do livro é Eclesiastes 12.9-14, e essa narração emoldurada existe para corrigir e redimir o relato autobiográfico.
A perspectiva de Longman não deve ser descartada rapidamente. Por um lado, há precedentes para a presença de pontos de vista não ortodoxos em livros individuais da Bíblia, como os consoladores de Jó (um exemplo que o próprio Longman usa em apoio à sua posição). O ponto de vista de Longman surge da tentativa de levar muito a sério a desolação de várias partes de Eclesiastes.
Há, contudo, sérios problemas com sua leitura geral do livro. Devemos observar que o prólogo (Ec 1.1-11) está apenas estranhamente inserido em um esquema que contrasta o corpo principal com as seções moldura do narrador; embora os versos iniciais possam ser poeticamente belos, tomados isoladamente, eles são tão sombrios e negativos quanto muitas outras coisas no livro e dificilmente “corrigem” a seção autobiográfica. Além disso, como o próprio Longman aceita, seu ponto de vista requer uma forte reinterpretação do epílogo como condenando o Pregador apenas com débeis elogios e fortes críticas, um ponto de vista que é bastante difícil de sustentar em uma leitura direta do epílogo, em que as palavras do Pregador são descritas como agradáveis e incorporam a sabedoria de um pastor (Ec 12.10-11).
A principal falha na proposta de Longman, entretanto, é sua própria admissão de que muitas passagens positivas no corpo principal aparecem bem ao lado das passagens mais negativas (Ec 2.24–26; 3.12–14,22; 5.18–20; 8.15; 9.7–10). Para Longman, essas oferecem apenas um “tipo limitado de alegria”, conectadas como estão como comer, beber e trabalhar [3] — e é precisamente essa avaliação de alegria que, como sugiro, diz mais sobre nossa situação moderna do que a cosmovisão bíblica da literatura de sabedoria. Para o Pregador de Longman, os prazeres temporais apenas aliviam o fardo de uma existência sem sentido. Mas será que o Pregador tem algum tipo de lente grande angular que lhe permite manter unidas as coisas que pensamos ser irreconciliáveis? Acredito que sim.
“Debaixo do Sol”
Um segundo erro em Eclesiastes é não entender uma de suas expressões-chave: “debaixo do sol”. Nós lemos as palavras “debaixo do sol” (Ec 1.3,14) e pensamos espacialmente: nós dividimos o mundo entre abaixo e acima. Nós entendemos que debaixo do sol tudo é de certa maneira, mas acima do sol é diferente; abaixo é o mundo vivido sem Deus e sem o Senhor Jesus, acima é a vida vivida com ele. Essa forma de ler Eclesiastes por ser ligado a uma cristologia muito simples, aquele tipo de cosmovisão que diz que a vida sem Jesus é terrível (debaixo de sol), mas que a vida com Jesus é maravilhosa (acima do sol). Se vivermos conforme a intenção de Deus, e se olharmos para o mundo de sua perspectiva, então poderemos ser poupados do niilismo de uma perspectiva abaixo do sol.
Acho que isso é interpretar mal essa expressão-chave. Em vez de pensarmos espacialmente, devemos pensar cronologicamente. No mundo antigo e nas Escrituras, o sol marcava o tempo mais do que o espaço. “A expressão ‘debaixo do sol’ […] se refere a um agora ao invés de um aqui.” [4] “Debaixo do sol” aponta para estes dias, agora — enquanto a terra durar, neste período, é assim que as coisas serão. Um dia não haverá mais sol; viveremos em uma nova criação, uma nova ordem do mundo. Mas por agora o Pregador está simplesmente comentando sobre como é essa vida temporal. Pastoralmente, é muito importante perceber que isso é verdade. Ir a Cristo como Salvador e Senhor não muda a existência debaixo do sol. Muitos abraçam Cristo em dificuldades e trilham o caminho da cruz com mais sofrimento e mágoa deste lado da eternidade. Vivemos sob o sol hoje, mas viveremos na glória amanhã.
Vaidade de Vaidades?
O terceiro erro ocorre quando nós movemos do quadro geral e frases cruciais para palavras-chave, e nenhuma está mais sujeita a mal-entendidos em Eclesiastes do que a palavra “vaidade” ou “sem sentido”. Essa palavra é recorrente ao longo do texto e é o principal clamor do Pregador quando ele olha para a vida: “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”. Em minha própria leitura, tenho seguido intérpretes como Iain D. Provan, que desafia a ideia de que a palavra hebraica hebel carrega o significado principal em Eclesiastes de ausência de sentido existencial. Com essa conotação, o livro se torna um discurso sombrio sobre o vazio da vida.
Contrastando com isso, porém, Provan (entre outros) aponta que, em outras partes do Antigo Testamento, hebel significa “sopro”, “brisa”, “névoa” ou “vapor” e, consequentemente, a aplicação metafórica seria de que as coisas são insubstanciais, passageiras e transitórias ao invés de se referir a ações que são vãs ou não têm propósito. [5] “Senhor, que é o homem para que dele tomes conhecimento? E o filho do homem, para que o estimes? O homem é como um sopro [hebel]; os seus dias, como a sombra que passa.” (Sl 144.3-4). Isso significa que, ao usar essa palavra, o Pregador de Eclesiastes está quase sempre pontuando como a vida vem e vai em um piscar de olhos e está explorando o que se sente quando se considera tanto toda beleza quanto toda a fragilidade do mundo. Ele está refletindo, profunda e perturbadoramente, sobre a repetitividade, brevidade e indefinibilidade da vida, sobre a rapidez com que as coisas deslizam por entre os nossos dedos, e tudo à luz de uma eternidade pertencente a um Deus que irá julgar os vivos e os mortos. “O livro de Eclesiastes é uma meditação sobre o que significa para nossas vidas ser como sussurros ditos ao vento: aqui em um minuto e levados para sempre no instante seguinte.” [6]
Se essa perspectiva estiver correta, então Eclesiastes se torna um abalo para nosso sistema espiritual, uma limpeza de nossos óculos danificados para olharmos para o mundo. Adquirimos uma perspectiva nova e talvez totalmente inesperada sobre nós mesmos, nossas alegrias e tristezas, e a maneira como Deus fez o mundo funcionar. Na bela frase de Anthony Thiselton, Deus nos deu a literatura de sabedoria para “ferir por trás”. [7] Ficamos piscando de surpresa e, à medida que nos orientamos, o mundo parece diferente. Por outro lado, se os erros de interpretação descritos acima forem seguidos com vigor — como geralmente são, no púlpito ou na sala de aula — o resultado é uma visão da ordem criada que vê tudo como vaidade, coisas temporais como meras distrações sem peso da realidade verdadeiramente espiritual da vida em Cristo.
Palavras dolorosas e agradáveis
Então, como seria ler Eclesiastes de forma diferente? De forma semelhante a Longman, acredito que o epílogo funciona de fato como uma chave hermenêutica para o livro devido à forma como os versículos finais comentam explicitamente o que aconteceu antes. Em contraste com Longman, no entanto, sugiro que esses versículos não corrigem a autobiografia, mas nos dão uma estrutura teológica por meio da qual podemos manter unidas as coisas temporais e eternas. Há uma maneira de ver o que é alegria e o que Deus faz na dor, e uma maneira de ver o hoje à luz do amanhã, que nos ajuda a ver que a sabedoria dos sábios é encontrada nos lugares mais inesperados. Observe como Eclesiastes é capaz de dizer que as palavras do Pregador são ao mesmo tempo agradáveis (Ec 12.10) e dolorosas (Ec 12.11) — nossa tarefa é habitar o mundo de tal forma que possamos compreender como um só livro é ao mesmo tempo essas duas coisas.
Aqui estão quatro ênfases no epílogo que nos dão essa perspectiva geral.
Prazer
“Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras de verdade” (Ec 12:10). Esse é um convite para adotar lentes hermenêuticas para todo o livro: ele contém palavras verdadeiras e belas. Eclesiastes deveria nos encantar. Deus não é um desmancha-prazeres na forma como criou o mundo, nem é puritano (no uso comum dessa palavra) nas palavras que nos deu para ler e que nos falam sobre ele próprio. Uma coisa é dizer que você precisa se lembrar de Deus antes do dia da angústia e da velhice, mas outra coisa é nos dizer isso nas palavras da bela poesia do capítulo 12: lembre-se dele “antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço” (Ec 12.6). A poesia reforça a pungência. A velhice é como uma casa outrora excelente, mas agora entregue à degradação. Em uma poderosa coleção de metáforas e alusões, somos brindados com um quadro de triste degeneração e declínio do que já foi, com o objetivo de nos mostrar que “na corajosa luta pela sobrevivência, há uma lembrança quase mais nítida da decadência do que em uma ruína total.” [8]
Essa descrição de velhice vem ao fim do livro e é introduzida juntamente a imagens de criação que ecoam Gênesis 1, mas agora ao contrário: os geradores de luz do universo estão escurecendo (Ec 12.2). Isso é “o desfazer da criação” para retratar como, tal qual Deus fez a todos, na morte então todas as pessoas serão desfeitas [9]. Esse é o clímax de um livro que abre tão poderosamente com imagens da criação, onde a terra, o sol, o vento e rios aparecem em uma bela virada lírica que, por sua própria forma, pretende evocar as estações e os ritmos do mundo, o palco no qual os seres humanos ocupam seu lugar por um curto espaço de tempo (Ec 1.2-7). Nesse mundo, a humanidade acaba aprendendo, muitas vezes de maneira difícil, que há estações para tudo, e ignoramos essa parte de nossa condição de criaturas por nossa conta e risco (Ec 3.1-8). Eu sugiro que o escritor esteja trabalhando em uma tese sobre os bens da matéria criada e do tempo criado, que podem ser recebidos como presentes até mesmo por seres humanos caídos, precisamente porque eles delimitam nossas tentativas idólatras de ser como Deus, vivendo para sempre. É uma bênção saber que iremos e voltaremos, mas a terra permanecerá, e aprendemos isso na poesia.
É um prazer descobrir que a Bíblia é assim: a verdade do conteúdo das palavras está ligada à beleza da forma das palavras. Uma coisa é ouvir o que é o casamento como a união de um homem e uma mulher, mas outra coisa é ouvir uma balada que expressa o que é estar apaixonado e fazer amor (Cântico dos Cânticos). Uma coisa é ouvir que logo morreremos, mas outra é aprender em Eclesiastes que “o destino que nos foi dado não pode florescer sem atenção às estações que passam.” [10]
Dor
Em Eclesiastes, todavia, o prazer é misturado à dor. “As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem-fixados as sentenças coligidas, dadas pelo único Pastor” (Ec 12.11). Aguilhões eram usados pelos condutores no mundo antigo para manter os animais em um caminho reto: se o animal fosse para a esquerda, haveria dor; se fosse para a direita, haveria dor. A única maneira de não sentir dor é andar na direção determinada pelo pastor.
Algumas das palavras em Eclesiastes vêm a nós com pontas afiadas. É como se o autor estivesse dizendo que, se realmente queremos lembrar de nosso Criador nos dias de nossa mocidade (Ec 12.1), então nossos corações e mentes precisarão latejar um pouco. Então ele nos dá palavras para nos fazer parar e prestar atenção — palavras para nos parar em nossos trilhos, nos fazer dar meia-volta, e nos fazer prosseguir na direção correta.
Considere Eclesiastes 7.1: “Melhor é a boa fama do que o unguento precioso, e o dia da morte, melhor do que o dia do nascimento”. O que? Isso pode estar mesmo certo? Nós estremecemos quando o aguilhão perfura. Deus estabeleceu a morte como o limite de nossos dias, a punição por nossa rebelião orgulhosa. Sabemos que morreremos, mas vivemos como se não fôssemos. O Pregador, então, se encarrega de trazer para bem perto e de modo pessoal a nossa própria morte, que preferimos manter à distância de um braço e fingir que um dia acontecerá a outra pessoa. Em Eclesiastes, aprendemos que todas as nossas decepções na vida são lembretes da morte, todas as nossas angústias são ecos do grande espectro que enche a terra de futilidade. A morte espreita e pega suas presas sem discrição. Nossas lágrimas são reais. Nosso pesar pode ser interminável.
Sabemos que isso é verdade, mas o que o Pregador vê é que a morte tem um poder positivo se aceitarmos essa presença certa muito antes de sua chegada. A morte pode ser exatamente a coisa que nos impede de esperar demais das coisas que acabam apenas nos decepcionando. A morte pode ser exatamente o que nos faz parar e saborear um momento que, de outra forma, teria passado despercebido — um momento em uma mesa cheia de comida, na presença de nosso cônjuge (Ec 9.7-10), na companhia de nossa família (Ec 4.8), na bênção do trabalho que satisfaz a mente e o corpo e cria riqueza para o bem dos outros (Ec 4.9). Tudo é vaidade apenas quando pensamos que tudo é tudo o que existe. Se tudo existe porque Deus o colocou lá para agora, para hoje, para eu usar para os outros e para ele, então, de fato, as coisas eternas estão moldando a forma como consideramos as coisas temporais. [11]
Perspectiva
Tudo isso é, claramente, uma mudança de perspectiva sobre esses dias debaixo do sol. Nós nos angustiamos, como todos se angustiam, mas não como aqueles que não têm esperança. Gememos, como o próprio Senhor Jesus (Mc 7.31-37; 8.12) e como o apóstolo Paulo (Rm 8.22-23), mas gememos com esperança. Pois nossa perspectiva é a seguinte: “Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem” (Ec 12.13).
Isso não nos vem naturalmente. Temos esperanças, sonhos, objetivos e ambições e, em meio a isso, pensamos em nossas responsabilidades para com os outros: cônjuges, filhos, pais, colegas de trabalho, amigos. Mas o Pregador nos diz que todo dever ou responsabilidade que tenho para com qualquer outra pessoa é, antes de tudo, para com Deus. Longe de ser niilista em todo o livro, o Pregador está endossando a mesma visão de mundo defendida por Moisés e pelo próprio Senhor Jesus, de que o que Deus exige é amor e obediência a ele e amor ao próximo como a nós mesmos — isso é simplesmente o que significa ser um ser criado. Achamos que isso significa ter todas as respostas e saber por que nos ferimos e por que perdemos, mas, na verdade, fui criado para temer a Deus, não para ser Deus.
E o que nos dá nossa verdadeira perspectiva sobre o tempo não é o tempo em si, mas a eternidade.
Preparo
Em Eclesiastes, a eternidade invade o presente com a esperança do juízo. “Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ec 12.14). O julgamento pode ser uma promessa ou um impasse, uma esperança ou um medo, tudo depende de como o abordamos. Parece-me que Eclesiastes se harmoniza com o tema bíblico do julgamento como motivo de júbilo, a esperança de um mundo restaurado, fazendo com que o próprio mundo irrompa além de suas restrições físicas em louvor exultante (Salmo 98).
Isso se dá porque — como Eclesiastes nos mostra tão claramente — algumas coisas simplesmente não têm resposta nesta vida. Uma das coisas mais difíceis sobre Eclesiastes é aprender a aceitar sua tese de que o silêncio é a única resposta disponível para certos traumas. Alguns terrores excedem nossa capacidade de suportar. “Vi ainda todas as opressões que se fazem debaixo do sol: vi as lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos. Pelo que tenho por mais felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem; porém mais que uns e outros tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.” (Ec 4.1-3). Nós, modernos, somos tão incapazes de olhar longa e intensamente para o que está quebrado que, quando um crente o faz e nos diz como se sente, outros cristãos dizem que ele não deve ser um crente! Na realidade, porém, ele simplesmente pode estar expressando a terrível e devastadora vida a leste do Éden.
No entanto, ao nos dizer essas coisas — e nunca devemos nos esquecer disso ao longo de todo o livro — o Pregador está nos ensinando a nos prepararmos para o julgamento e a ansiarmos por ele com todas as fibras de nosso ser. Não podemos acabar com o mal, nem explicar por que os desastres naturais chegam sem aviso prévio, nem racionalizar o terrorismo que assola nosso mundo com uma crueldade que parece pertencer a uma era passada, apesar de nossos melhores esforços de paz e reconciliação. Mas nem tudo é vaidade. Isso porque o julgamento está chegando.
O julgamento está chegando.
Alegrem-se os céus, e a terra exulte;
ruja o mar e a sua plenitude.
Folgue o campo e tudo o que nele há;
regozijem-se todas as árvores do bosque,
na presença do Senhor,
porque vem, vem julgar a terra;
julgará o mundo com justiça
e os povos, consoante a sua fidelidade. (Sl 96.11-13)
[1] C.S. Lewis, “Learning in War-Time,” in The Weight of Glory and Other Addresses (New York: MacMillan, 1949), 48.
[2] Tremper Longman III, The Book of Ecclesiastes, NICOT (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), 35.
[3] Longman, The Book of Ecclesiastes, 34.
Peter J. Leithart, Solomon among the Postmoderns (Grand Rapids, MI: Brazos, 2008), 69.
[4] Iain D. Provan, Ecclesiastes/Song of Songs, NIVAC (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2001), 52.
[5] David Gibson, Living Life Backward: How Ecclesiastes Teaches Us to Live in Light of the End (Wheaton, IL: Crossway, 2017), 20.
[6] Anthony C. Thiselton, “Wisdom in the Jewish and Christian Scriptures: The Hebrew Bible and Judaism,” Theology 114.3 (May/June 2011): 163–72 (165).
[7] Derek Kidner, The Message of Ecclesiastes (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1976), 102.
[8] Provan, Ecclesiastes/Song of Songs, 213–14.
[9] Zack Eswine, Recovering Eden: The Gospel According to Ecclesiastes (Phillipsburg, NJ: P&R, 2014), 118.
[10] Veja Matthew McCullough, Remember Death: The Surprising Path to Living Hope (Wheaton, IL: Crossway 2018).