Você tem dificuldade em ler o livro de Jó?

Orientações para orientar a leitura deste difícil e formidável livro bíblico

RESUMO: O livro de Jó é um livro de sabedoria — mas a sabedoria fica sob uma superfície que às vezes pode parecer impenetrável. Especialmente nos capítulos 3 a 37, os leitores podem se sentir perdidos em uma mistura de verdade, erro e teologia mal aplicada. Com a ajuda de algumas orientações interpretativas, porém, o significado de cada discurso pode lentamente tornar-se claro à luz do todo e apontar os leitores para outro homem, mais inocente que Jó, cujo sofrimento salvaria o mundo.

Em meus comentários sobre o livro de Jó, critiquei a pregação que se especializa nos dois primeiros capítulos e nos capítulos finais, mas que aborda superficialmente os longos discursos que estão no meio.[1] Mas permita-me dizer algo em defesa dos que critico dessa maneira. Posso entender por que pessoas fazem isso.  Quando você e eu lemos Jó 1 e 2 ou os discursos de Deus nos capítulos 38 a 41, temos algum entendimento do que está acontecendo. Há complexidades, é claro, porém não mais do que em outras passagens do Antigo Testamento. Acho que posso pregar um sermão edificante com base nesses capítulos.

No entanto, coloque-me na aparente confusão dos ciclos de discursos, e sinto que estou num labirinto impenetrável. O que devo fazer quando leio a seguinte afirmação de Jó?

Para mim tudo é o mesmo; por isso, digo: tanto destrói ele [Deus] o íntegro como o perverso. Se qualquer flagelo mata subitamente, então, se rirá do desespero do inocente (Jó 9.22-23).

Isso parece terrível e errado. Mas, ainda assim, é Jó quem o diz!

Ou o que devo pensar quando medito nestas palavras de Elifaz?

Reconcilia-te, pois, com ele e tem paz, e assim te sobrevirá o bem. Aceita, peço-te, a instrução que profere e põe as suas palavras no teu coração. Se te converteres ao Todo-Poderoso, serás restabelecido; se afastares a injustiça da tua tenda e deitares ao pó o teu ouro e o ouro de Ofir entre pedras dos ribeiros, então, o Todo-Poderoso será o teu ouro e a tua prata escolhida. Deleitar-te-ás, pois, no Todo-Poderoso e levantarás o rosto para Deus (Jó 22.21-16).

Essa passagem é linda. Eu lembro um líder jovem tratando essas palavras como verdadeiras e confiáveis. Mas o discurso é de um dos consoladores de Jó — e eu pensava que estavam completamente errados!

Nove orientações para interpretar Jó

Então, o que devo fazer? Posso entender por que pessoas tentam evitar os capítulos 3 a 37. Como eu deveria ler o livro de Jó? Essa é a nossa pergunta. Ofereço aqui nove orientações. A primeira e a última são, deliberadamente, a mesma.

1. Pergunte como o livro de Jó o torna sábio para a salvação pela fé em Jesus Cristo

Excelentemente, Paulo diz em 2 Timóteo 3.15 que “as sagradas letras” (que, em primeira instância, significa o Antigo Testamento) “podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus”. A salvação não significa apenas “ser salvo” no começo de nossa vida cristã. Significa, principalmente, ser salvo no fim de nossa vida cristã, quando nosso corpo será redimido (Rm 8.23; 13.11). Portanto, as Escrituras do Antigo Testamento são dadas para nos capacitar a aprender como chegar a Cristo, como prosseguir crendo nele e como crer nele até o fim.

A pergunta mais importante que devemos fazer ao livro de Jó não é “Isto me ensina sobre a lei de Deus, sobre certo e errado?”, e sim “Como isto me revela Cristo e me ensina como viver pela fé em Cristo?” À semelhança de todo o Antigo Testamento, Jó nos mostra o evangelho. Retornaremos a isso no final do artigo.

2. Não espere que seja fácil: você está aprendendo sabedoria

Jó é um livro de sabedoria que nos torna sábios “para a salvação”. E sabedoria não vem rapidamente, nem facilmente. A busca por sabedoria é uma busca vitalícia. As perguntas que o livro de Jó faz não podem ser respondidas num cartão postal ou num texto breve no Twitter. São as grandes perguntas que precisam de respostas demoradas. Depois de dar algumas ilustrações sobre a vida do pastor (2Tm 2.3-6), Paulo diz a Timóteo: “Pondera o que acabo de dizer, porque o Senhor te dará compreensão em todas as coisas” (2Tm 2.7). Se isso é verdadeiro em relação a três ilustrações (talvez não muito difíceis), quanto mais é verdadeiro em relação às complexidades do livro de Jó.

A sabedoria é como uma joia de valor inestimável pela qual o mineiro arrisca a vida (Jo 28). A busca por sabedoria exigirá todo o anelo, toda a oração, todo o buscar e todo o engajar que tivermos. Se você se aproxima do livro de Jó pensando que será fácil, está se dirigindo para uma frustração. Por uma ironia estranhamente apropriada, escrevi muito do meu comentário mais longo sobre Jó enquanto passava por um colapso nervoso. A sabedoria é digna de ser obtida, mas envolve alto custo, e achá-la é uma tarefa vitalícia. Algumas horas, dias ou semanas de perplexidade no livro de Jó é um preço pequeno que pagamos.

3. Leia no meio à luz das extremidades: Ancore-se nos marcadores dados no início.

Nos capítulos 1 e 2, o escritor do livro de Jó, inspirado pelo Espírito, define alguns marcadores. Talvez o mais importante dos marcadores que devemos notar aqui seja aquilo que o escritor diz três vezes sobre o próprio Jó. Bem no início, o narrador nos diz que Jó era “homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1.1). O Senhor diz o mesmo a Satanás:[2] Jo é “homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal” (Jó 1.8). E o diz novamente: “Homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal” (Jó 2.3). Isso é, sem dúvida, muito importante.

Chamarei isso Marcador 1. Jó é “íntegro”, e isso nos diz que ele tem integridade. Não é impecável, mas é genuíno; não é um hipócrita. Jó é “reto”, e isso significa que ele trata as outras pessoas com justiça. Jó é “temente” a Deus com o temor reverente e amoroso do crente, o temor sábio que é a característica peculiar da piedade verdadeira em Provérbios. Jó “se desvia do mal”; o arrependimento é a forma de sua vida.

Se não ouvirmos esse refrão, acabaremos concordando com os consoladores de Jó — como Elifaz, que diz: “Porventura, não é grande a tua malícia, e sem termo, as tuas iniquidades?” (Jó 22.5) Seguindo os passos de muitos dos pregadores do evangelho de prosperidade, repreenderemos Jó por sua incredulidade e pensaremos que sua bênção final resultou de ele se arrepender de pecados secretos que estivera negando em todo a história. Mas Jó não é um pecador secreto; é um crente verdadeiro. O que acontece com ele não é uma punição de pecados, e sim uma estranha antecipação do sofrimento inocente de um crente que viria mais tarde.

4. Leia no meio à luz das extremidades: ancore-se nos marcadores dados no final.

O escritor nos dá mais dois marcadores no final.

O Marcador 2 está em Jó 42.7, a afirmação de Deus para Elifaz: “A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó”. Aprendemos duas lições a partir dessa afirmação de Deus. Primeira: Elifaz, Bildade e Zofar não falaram corretamente a respeito de Deus. Veremos que às vezes eles disseram coisas verdadeiras; Paulo até cita uma afirmação verdadeira de Elifaz![3] Mas, ao examinarmos todo o quadro do que disseram, ele não é verdadeiro.

A segunda lição que aprendemos do Marcador 2 é que Jó falou corretamente sobre Deus. Embora seja possível que esse falar correto se refira apenas ao que Jó disse no próprio fim, em resposta aos discursos do Senhor, parece mais provável que isso seja uma avalição abrangente de todas as palavras de Jó. Mas, assim como os consoladores disseram algumas coisas verdadeiras, enquanto foram falsos no conteúdo geral, assim também Jó falou algumas coisas não verdadeiras ao mesmo tempo que foi verdadeiro no todo. E aí está a nossa perplexidade.

O Marcador 3 é que, em sua resposta aos discursos do Senhor, Jó se arrepende realmente. Em Jó 40.3-5 e, depois, mais claramente em 42.1-6, Jó se arrepende de parte do que dissera. Reconhece que falou “do que não entendia”. Ao colocarmos o Marcador 3 ao lado do Marcador 1, aprendemos que, embora os amigos de Jó digam que ele está sofrendo porque está pecando (em seus delitos secretos), na realidade Jó peca (no que diz) porque está sofrendo.[4]

5. Leia a história, sem fragmentá-la

Então, se os consoladores dizem coisas verdadeiras, enquanto no todo não falam a verdade, e Jó diz coisas não verdadeiras, enquanto no todo é verdadeiro, como devemos ler os discursos deles? Resposta: acautele-se de lê-los em trechos muito pequenos. Isso é a desgraça em estudos bíblicos de pequenos grupos a respeito da maior parte do Antigo Testamento: dividimos o texto em seções bem curtas e, depois, aplicamos erroneamente essas pequenas porções. O significado dos discursos poéticos se acha por tomá-los em trechos extensos e mantê-los juntos com os discursos adjacentes; e todos eles no contexto da grande história do livro.

Vejamos como exemplo o discurso de Bildade em Jó 18. Nos versículos 5-21, Bildade nos dá a mais assustadoramente acurada e poderosa evocação dos terrores do inferno. Tudo é verdadeiro; é amedrontador; o resto da Escritura o confirma. Mas — e isto é a chave — Bildade o fala para o homem errado! Nos versículos 2-4, ele repreende Jó por suas palavras (nas quais Jó mantém que não está sendo punido por seus pecados). Bildade acusa Jó de esperar que a ordem moral do universo (simbolizada por “terra” e “rochas” no versículo 4) seja rearranjada para satisfazer à sua conveniência. Isso significa: Bildade aplica seu ensino sobre o julgamento do perverso diretamente a Jó. E sugere — muito claramente — que o homem perverso nos versículos 5 a 21 é o próprio Jó. A razão por que Jó está experimentando esses “terrores” é que ele é um dos “perversos”. Ele tem de ser; por que mais Jó estaria sofrendo dessa maneira?

O erro de Bildade é que ele pressupõe que a punição será mais ou menos imediata, e, por isso, a experiência de punição indica culpa. Em seu sistema, Bildade não tem lugar para sofrimento inocente. Embora em Jó 18 possamos aprender lições a respeito de quão horríveis são as agonias do inferno, a principal lição que aprendemos é que um crente íntegro pode sofrer alguns desses terrores. Isso nos prepara para compreender um pouco mais a respeito daquilo que Outro maior do que Jó suportará por nós.

6. Espere por movimento; lembre-se de que Jó e os seus consoladores começam com as mesmas convicções

Uma das características mais instrutivas pela qual devemos esperar nos ciclos de discursos é movimento em Jó e a falta de movimento nos consoladores. Todos os quatro começam com o entendimento natural de toda pessoa moral, o entendimento de que vivemos num universo em que a impiedade será castigada, e a virtude será recompensada. Jó também sustenta essa convicção no início.

Mas, enquanto os consoladores nunca deixam a evidência interferir numa teoria bem-ordenada, Jó luta honestamente com a questão à medida que experimenta sofrimento imerecido. Os consoladores dizem no final muito do que disseram no começo, porém um pouco mais irritados por Jó. Mas Jó está aprendendo. Ele reage com a humildade sincera de um crente.

7. Não se esqueça de provar tudo pelo restante da Escritura

A Bíblia é um livro coerente. Nenhuma parte contradiz outra parte. Então, quando você se questiona ou está perplexo a respeito de um texto difícil, nunca esqueça o antigo princípio de comparar Escritura com Escritura. Por exemplo, se começo a me perguntar se a atividade de Satanás significa que Deus não está no controle total dos eventos, eu me consolo com o testemunho unânime de toda a Bíblia de que Deus é completamente soberano e governa todas as coisas com sua sabedoria e poder infinitos.

8.  Prepare-se para continuar com incertezas

Há dificuldades permanentes no livro de Jó. Por um lado, existe um número considerável de incertezas textuais e de tradução. Um bom comentário ajudará você nisso, mas às vezes você precisará dizer: “Não podemos ter certeza”.

E há algumas dificuldades maiores. Uma das mais óbvias é a figura enigmática de Eliú nos capítulos 32 a 37. Eruditos têm diferido em sua avaliação desse homem, que começa a responder Jó e — talvez — prepara o caminho para as respostas do Senhor. Mudei a minha opinião sobre isso depois que escrevi meu primeiro comentário sobre Jó e enquanto trabalhava no meu segundo comentário. No início, eu pensava que Eliú era um orador ambíguo, não muito diferente dos três consoladores. Mas cheguei à conclusão de que ele fala com sabedoria profética, sendo um precursor confiável do próprio Senhor. Apresentei minhas razões para isso em meu comentário mais extenso. Talvez eu esteja errado.

Ao lermos um livro complexo como Jó, precisamos estar preparados para admitir que há questões sobre as quais não temos certeza, e talvez nunca a teremos.

9. Pergunte como o livro de Jó o torna sábio para a salvação pela fé em Jesus Cristo

O personagem humano central no livro de Jó é um homem íntegro que sofre intensamente por pecados que não cometeu. Em seus sofrimentos, Jó prefigura o Senhor Jesus em seu sofrimento imerecido. O livro de Jó nos ajuda a entender um pouco mais do que Jesus sofreu e por quê.

Há, porém, mais do que isso. Para todos os que estão em Cristo, há um transbordar dos sofrimentos de Cristo (e.g., Rm 8.17; Cl 1.24). Como Satanás foi o acusador ordenado por Deus para demonstrar que Jó era realmente o que Senhor dissera sobre ele, também Satanás foi o inimigo ordenado por Deus para provar ao universo que Jesus era o que Pai dissera sobre ele. E agora Satanás pede que possa peneirar os discípulos de Jesus. Esse peneirar é necessário, para que seja visto que os discípulos genuínos são realmente genuínos.

“Simão, Simão, eis que Satanás vos [plural, os discípulos] reclamou para vos peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti [singular, Pedro], para que a tua fé não desfaleça” (Lc 22.31-32). Por intermédio das orações de Jesus, Pedro mostra que ele é um crente genuíno. O que é verdadeiro em relação a Pedro é verdadeiro em relação a todo crente genuíno. Por meio de provações, “se necessário… uma vez confirmado o valor da vossa fé… redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (1Pe 1.6-7). Somente quando algum eco dos sofrimentos de Jó vier sobre o povo de Cristo, será visto que a nossa fé é provada e genuína; então, a glória irá para Deus que nos deu essa fé.

O livro de Jó nos torna sábios para a salvação pela fé em Jesus Cristo porque nos ajuda a assimilar os sofrimentos inculpáveis de Cristo por nós e crer nesses sofrimentos. Mas também nos torna sábios para a salvação por nos preparar para uma vida que anda nos passos de Cristo, um andar que Jó prefigura para nós.

A agonia de Jó: 9.22-23

Vamos retornar ao primeiro dos exemplos difíceis com o qual começamos. Em Jó 9.22-23, Jó acusa claramente a Deus de injustiça cruel. O que fazemos quando lidamos com essa afirmação? O resto da Escritura nos ensina claramente que a afirmação de Jó não é verdadeira. Mas, então, por que Jó diz isso? E o que podemos aprender dele?

Primeiramente, notamos que esses versículos estão no meio do discurso de Jó que se estende pelos capítulos 9 e 10. Em segundo, lembramos que Jó está respondendo aos primeiros discursos de Elifaz (capítulos 4 e 5) e de Bildade (capítulo 8), os quais insistem em que não pode haver nenhuma injustiça no universo (e.g., Jó 4.7; 8.3). Em terceiro, lembramos (Marcador 1) que o próprio Jó não merece os sofrimentos terríveis que ele está suportando; nunca devemos duvidar disso.

Então, o que devemos concluir? Temos duas opções: ou Jó não é realmente tão inocente quanto afirma, ou o sistema de Elifaz e Bildade não funciona. Sabemos que Jó é realmente inocente, então a segunda opção é o que nos resta. Mas Jó compartilha com Elifaz e Bildade a convicção de que vivemos num universo moral. A agitação dos capítulos 9 e 10 acontece exatamente porque Jó está tentando elucidar como ou porque o sistema do qual estivera tão certo parece não ser verdadeiro. E isso o perturba realmente. Deixa-o intensamente preocupado. De fato, o aflige mais do que seu próprio sofrimento o aflige; porque lhe parece lançar dúvidas sobre a justiça de Deus. Na maior parte do capítulo 9, Jó reafirma o soberano poder de Deus; ele nunca questiona isso. Mas, depois, nos versículos 22 e 23, Jó faz a dedução (compreensível, mas errada) de que, se Deus é soberano, então tudo que acontece tem de expressar diretamente o que lhe apraz. Se acontece injustiça, ela tem de acontecer porque Deus quer que aconteça.

É nesta altura que precisamos introduzir os espetáculos do restante da Escritura. De outras passagens da Bíblia, sabemos que Jó está correto no que diz respeito a Deus ser soberano. Qualquer coisa que acontece, isso acontece porque Deus decreta que aconteça (Is 46.9-10; Rm 11.36). Mas sabemos dos capítulos 1 e 2 que o que acontece na terra não expressa a vontade de Deus da mesma maneira que, por exemplo, bondade, benignidade e amor expressam a vontade de Deus. Jesus nos ensinará a orar para que a vontade de Deus seja feita na terra como é feita no céu (Mt 6.10). A vontade de Deus é feita na terra agora; não há nenhuma dúvida na Bíblia a respeito disso. Mas ainda não é feita da mesma maneira que é feita no céu. Deus decreta coisas na terra que não estão em harmonia com seu bom prazer moral. Ele faz isso porque, em sua profunda sabedoria, o mal serve aos propósitos divinos de um bem supremamente maior. O exemplo sublime da profunda sabedoria de Deus é a cruz de Cristo, um ato terrivelmente ímpio e horroroso que é, ao mesmo tempo, a expressão perfeita da vontade de Deus para salvar muitos (At 2.23).

Assim, ouvimos em Jó 9.22-23 as agonias honestas de um sofredor inocente que crê corretamente que Deus é todo-poderoso, um sofredor que é honesto o suficiente para reconhecer sofrimento imerecido quando o vê. Não concordamos que Jó esteja totalmente certo no que expressa aqui da maneira como o expressa; ele precisará admitir que falou sem conhecimento (Jó 42.3). Mas Jó o expressa de um coração que ama a Deus, que busca honrar a Deus, que anela entender o mistério do sofrimento imerecido. Esse mistério será esclarecido, por fim, tão somente na cruz de Cristo.

A repreensão de Elifaz: 22.21-26

Agora, vamos considerar um exemplo complementar. Já consideramos algo errado que Jó diz embora tivesse um coração crente. Agora, vejamos algo correto que Elifaz diz embora tivesse um coração incrédulo. Observamos no começo que as palavras de Elifaz aqui são lindas e — até parecem — um apelo evangélico para que Jó se arrependa. Mas sabemos (Marcador 1) que Jó não precisa se arrepender. Não estou querendo dizer isso no sentido absoluto. Sabemos que Jó “se desviava do mal” habitualmente; portanto, o arrependimento caracterizava sua vida. Não há, porém, nenhum pecado secreto e oculto do qual Jó precisa se arrepender, o que Elifaz, Bildade e Zofar pensam tem de ser verdade. Eles estão errados.

Portanto, quando Elifaz deduz que os sofrimentos de Jó devem ser evidência de algum pecado do qual Jó não se arrependeu, ele está profundamente equivocado. Aprendemos disso que devemos ser muito hesitantes para acusar outras pessoas de pecado apenas porque as vemos sofrer. Esse mesmo espírito debocharia e escarneceria de Jesus na cruz. Afinal de contas, ele foi claramente amaldiçoado por Deus; por isso, deve ter merecido essa maldição! Mas Jó não o merece. Está experimentando, de antemão, algum estranho transbordar antecipatório dos sofrimentos de Cristo. Jesus não o merece, porque ele, que é sem pecado, é feito pecado em favor do povo pecador que ele veio salvar (2Co 5.21). Os crentes verdadeiros não merecem, em um sentido punitivo, os seus sofrimentos, porque todo o pecado deles foi pago por Jesus. Os sofrimentos deles podem ser o amor disciplinatório do Pai (Hb 12.5-11), mas não são punições por pecados. Aprendemos do equívoco de Elifaz a sermos muito cuidadosos em dar espaço, em nossa cosmovisão, para sofrimentos imerecidos daquele que está em Cristo.

Continue lendo

Não se desespere ao lidar com o livro de Jó. Interpretá-lo não é fácil, mas não é impossível. Lembre-se de que Jó nos aponta, como toda a Escritura, para a fé em Cristo. Conserve em mente os marcadores no começo e no fim. Leia a história em grandes extensões; tente não ficar empacado em detalhes complexos. Prepare-se para continuar com alguma incerteza a respeito de questões secundárias. Procure ouvir, sentir e ser movido pelas imensas antecipações dos sofrimentos de Cristo e, depois, de sua igreja perseguida.

Que o Senhor lhe dê paciência, perseverança, sabedoria bíblica e graça para ler Jó de modo que você se torne ainda mais sábio para a salvação pela fé em Jesus Cristo, a quem Jó prefigura tão vividamente.


[1] Christopher Ash, Job: The Wisdom of the Cross, Preaching the Word (Wheaton, IL: Crossway, 2014); Christopher Ash, Out of the Storm: Grappling with God in the Book of Job (Leicester, UK: InterVarsity, 2004).

[2] No hebraico, “Satanás” é literalmente “o satanás”, sugerindo que isso é um título (“o acusador” ou “o adversário”) e não um nome próprio.

[3] As palavras “Ele apanha os sábios na própria astúcia deles” (1Co 3.19) são extraídas do discurso de Elifaz em Jó 5.13.

[4] Hywel Jones expressa suscintamente esse ponto. Veja The Book of Job (Darlington, UK: Evangelical Press,2007), 26.

Por: Christopher Ash. © Desiring God Foundation. Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: Lost in The Land Of Uz. Traduzido por Francisco Wellington Ferreira. Revisor e Editor: Vinicius Lima.