Escalando o Everest do ateísmo

O testemunho de um cientista de sua escalada do ateísmo à fé em Cristo.

Estou na carreira científica e acadêmica há 35 anos, e neste ano fiz 33 anos de cristão. Antes disso fui ateu, não daqueles barulhentos que querem converter a todos para seu ateísmo religioso, mas dos quietos que se sentem superiores a todos os demais. Um ateu fechado em seus pensamentos, taciturno em suas considerações e um tanto esquisito em seu modo de ser, a mistura certa para alguém não vir a crer no evangelho. Tive minhas dúvidas quanto a veracidade do ateísmo, mas foram poucas e rápidas. Aos 22 anos já era professor de carreira em uma universidade federal e até então bem tranquilo na minha cosmovisão naturalista. Vez ou outra me perguntam sobre como fui alcançado por Cristo e sou econômico nas palavras. Já escrevi alguns pequenos relatos, mas nunca a história completa. Espero fazê-lo agora.

Preparando os equipamentos para a escalada

Começo com a afirmação de que não importa sua formação, o que você já realizou ou deixou de fazer; em questões de crer, o que realmente conta é a intensidade e a intenção com que alguns poucos momentos cruciais foram vividos e de que forma afetaram sua visão de mundo. Refiro-me àqueles momentos que no relevo da vida estão mais para o Everest, e diante do qual não temos outra escolha senão escalá-lo, sob a pena de permanecermos para sempre na base da mediocridade. São situações que definem nosso caráter, que cristalizam convicções, que direcionam nas bifurcações da vida, que resultam em perdas ou ganhos reais para nossas almas. Entre estes poucos e raros momentos, há um que é fundamental. É aquele no qual somos confrontados com a inquietante questão se o tempo que nos resta tem algum significado real que vá além das aparências e realizações desta vida. É a resposta a esta questão, nesse momento único, que realmente nos define e diz muito a nosso respeito.

Passei minha adolescência e parte da juventude acreditando e argumentando que Deus era apenas um conceito humano para medíocres, fracos e ignorantes. Tendo sido criado em um lar católico, fiz primeira comunhão, ajudei na missa, participei de Perseverança, me crismei, e até fui líder de grupo de jovens, sem jamais crer em nada do que me era fracamente ensinado. Lembro claramente da minha confissão para o Crisma, em Manaus, quando o sacerdote capuchinho me perguntou quais eram meus pecados. Respondi-lhe, com um quê de desafio na voz, que não acreditava nele, nem em pecado e muito menos em Deus. Sua resposta foi cansada e triste: “Deus tenha misericórdia de tua alma”. Senti-me superior em minha atitude, mas nunca esqueci o olhar de tristeza daquele velho sacerdote. Mal sabia eu que estava diante dos primeiros metros do meu Everest.

O acampamento da minha escala

1989, segundo ano da graduação em química, no auge de meu ateísmo, sofri uma desilusão amorosa e, arrasado, acrescentei à minha pequena lista de desafetos existenciais, tendo os crentes já na mais alta posição, todo e qualquer japonês que surgisse a minha frente. Não tardou, meus alunos do ensino técnico notaram meu abatimento e introspecção em sala de aula. Perguntas foram feitas e respostas educadas e sucintas foram dadas aos mais chegados. Dentre a turminha, um querido e estudioso casal de namoradinhos instou, insistentemente, para que eu fosse com eles a um acampamento. Queriam me animar. Esclareço que sempre tive reservas quanto a convites sociais feitos por alunos, o que mantenho em certa medida até hoje. O risco de confundirem saudável interação social com algo além está sempre presente. Nesse caso específico, havia mais um agravante: a mocinha era japonesa, o que a tornava automaticamente um arquétipo de minha dor e um alvo digno do mais solene desprezo. Meu primeiro impulso foi recusar sem qualquer delicadeza, no entanto, era impossível não levar em consideração os sinceros esforços que empreendiam com o fim de fazerem eu me sentir melhor. Constrangido por tamanho interesse, aquiesci e aceitei o convite para o camping.

Sexta-feira, sete horas da noite. Encontro o endereço onde o grupo de acampantes se reuniria. Estou a caráter, calça de abrigo, boné, tênis e uma vistosa e pesada mochila vermelha de camping com todos os apetrechos necessários à vida ao ar livre (colchonete, cantil, panelinha, fósforos, lanterna, etc). O local é em frente a um prédio mal pintado de dois andares, fachada mal iluminada, voltado para a entrada do cemitério municipal de Manaus. No portão, uma pequena placa com algo escrito em japonês. Dou de ombros, e considero uma lamentável coincidência – evito pensar que seja um mau augúrio, especialmente ao mirar os túmulos do outro lado da rua. Espero vários minutos e nada do grupo aparecer. A impaciência lentamente começa a se espalhar pelos meus pensamentos. Um belo automóvel estaciona e desembarca três jovens japoneses. Munidos de mochilas normais e colchonetes, eles apertam uma pequena campainha quase que escondida na escuridão. Segundos depois, uma jovem chega e os saúda em sonoro japonês e os convida para entrar. Olho de soslaio e viro para outro lado e continuo a esperar. Detrás do portão a ouço se dirigir a mim com forte sotaque:

– Você está esperando alguém?

– Estou sim. Tem um pessoal que vai para um camping e marcamos de nos encontrarmos aqui.

– Você quer dizer acampamento?

– Não, camping mesmo.

– Aqui estamos nos reunindo para sairmos para o acampamento. 

– Não se preocupe, meus alunos ficaram de me buscar aqui para o camping. Devem estar chegando.

– Ah! Então você é o professor que estamos esperando? Entre, entre, eles já foram para o acampamento e o estão esperando lá. Por aqui, por aqui… – e, antes que me desse conta, fui conduzido portão adentro.

Quando dou por mim estou rodeado de japoneses, boa parte adolescentes, todos alegremente falando em japonês, em um ambiente completamente nipônico. Meu rosto está crispado de indignação. Sinto vontade de sair correndo, mas o portão está fechado e não tenho a mínima ideia de como pedir, em japonês, para fugir. Olhando em derredor não vi nenhum equipamento de camping, exceto alguns colchonetes e um fogão industrial portátil de quatro bocas (quem seria louco de levar um fogão desse tipo para um camping?). Só podia ser brincadeira de mau gosto, algo estava muito errado e eu não tinha noção do que era. Um certo casal de alunos pagaria muito caro pelo desaforo. Em minha mente imagens de notas vermelhas e olhos chorosos se associavam agradavelmente à minha indignação.

Nove da noite, em uma Kombi balouçante, com lotação excedida, estamos nos dirigindo à área do camping. Outros carros nos acompanham. Não converso com ninguém, tanto por barreira linguística como por protesto. Não reconheço o caminho e não tenho noção em que parte da cidade estou. Em minha mente pululam planos ridículos para sair dessa furada. Vinte minutos depois chegamos a um local de mata abundante, em estrada de terra. No local, uma grande casa de madeira com dois pisos – no primeiro um amplo salão e no segundo uma casa de arquitetura quase ribeirinha –, um campinho de terra batida e uma construção de alvenaria inacabada com os pontaletes de ferro à mostra nas colunas mal preenchidas de cimento. Tudo transmitia uma impressão de decadência. Não há barracas montadas, nem toldos coloridos, bandeirolas ou mesmo uma fogueira. Em nada se parecia com um camping. Meus temores se aprofundam.

Alguém avisa que devo descarregar minhas coisas e rumar ao salão para o chá de boas-vindas. Como sempre detestei chá, dou em troca da informação minha melhor expressão de desagrado. Tenho esperanças que o recado tenha sido entendido. Após o chá – que não tomei! –, um japonês de meia idade, simpático, envergando grandes óculos, alto e magro, se levanta e nos dirige a palavra em bom português sem qualquer sotaque:

– Muito bem pessoal. Sejam todos bem-vindos. Venham todos para o fundo do salão e vamos começar o louvor.

Ouvi direito? Louvor? Que louvor? Como assim louvor? E com todos os alarmes mentais berrando na cabeça me dirigi para os bancos ao fundo do salão, no qual já se encontrava uma pequena banda formada por jovens japoneses.

– Meus irmãos, vamos iniciar nosso acampamento de jovens com uma oração e vamos louvar ao Senhor Jesus! Amém?

– Amém!! – foi a resposta em coro do grupo

Finalmente caíra a minha ficha. Eu não estava em um camping, mas em um acampamento de crentes, e se não bastasse, com exceção de dois ou três, todos os demais eram japoneses. Japoneses! E crentes! Nunca imaginei que essa mistura fosse possível. Se havia um Deus, definitivamente Ele não gostava de mim e tinha um estranho e distorcido senso de humor. 

Última noite de acampamento. Não aguento mais ver crente japonês, me dá urticárias. Suas músicas me entediam, suas conversas me enjoam e as pregações me aborrecem. Para completar, todos me tratam com excessiva amabilidade e grande respeito, a ponto de desconfiar que seja tudo armação. Reunimo-nos pela última vez para o culto de encerramento. Louvor, oração, pregação, a bobagem de sempre. Ao fim da pregação o pastor insere uma novidade:

– Quero fazer um convite para você. Um convite que mudará sua vida. Abaixe sua cabeça – o que todos obedeceram –. Se você entendeu o que foi pregado nesses dias, abra seu coração e aceite Jesus. Quem aqui quer aceitar a Jesus?

Silêncio total. Estou de olhos fechados, entediado, quase cochilando. O convite soa um tanto ridículo e fora de moda.

– Abra seu coração, deixe o Espírito agir. Sua vida vai mudar – continua o pregador –, levante a mão se quer aceitar Jesus. Amém! Isso mesmo! Venha para o meio, não tenha vergonha – abro os olhos e vejo uma brasileira ajoelhada em frente de todos e deixo escapar um pequeno sorriso de mofa e superioridade.

– Quem mais quer aceitar a Jesus? Esse é o momento, não deixe para depois. Quem mais?

– Meu, esse cara não vai terminar? – penso com meus botões – tá esperando quem mais? Se for minha augusta pessoa, vai cansar.

– Deus é real, Jesus é real. A nova vida que Ele concede é real. Há uma vida eterna além dessa vida. Há um sentido maior para estarmos aqui nesta noite. Creia nisso, é para você que Ele está oferecendo uma nova vida.

E o pedido se estende por vários minutos, quase um quarto de hora, uma verdadeira apelação. À frente já estavam ajoelhados uns dois jovens e ao mirar o pastor percebi que estava dirigindo o apelo especificamente para mim. Minha aluna, sentada ao meu lado, me cutucou e disse baixinho:

– Vai professor, é a sua chance, levante a mão – .Surpreso com o “incentivo”, percebi que se não fizesse alguma coisa ficaríamos um bom tempo presos nesse convite. Com um grande suspiro, transbordante de enfado, levantei a mão.

– Graças a Deus! Venha para frente para receber a oração de Deus. – Levantei-me com rosto austero e rindo por dentro pelo ridículo da situação. Se isso os fazia sentirem-se melhor e dava um ponto final ao blablablá, eu estava disposto a participar da comédia. Ajoelhei-me e,  junto com os outros dois, recebi a oração de entrega do pastor, seguido de alguns tímidos aleluias por parte do público presente. Ao levantar fui abraçado por todos e com muitos “Deus te abençoe” a reboque, o que me deixou visivelmente constrangido de minha zombaria interior.

Deixamos o acampamento na mesma Kombi velha. A alegria de todos contrastava com minha sisudez e rabugice. A frase “Deus é real” não saía da cabeça. Deus não é real – argumentava internamente –, é apenas uma mentira, uma desculpa, usada como muleta para esconder nossos medos e limitações. Não existe qualquer vida além dessa vida. Isso foi apenas um camping bobo, nada mais. – insisti comigo mesmo – Ainda sou o mesmo e o universo ainda está no seu lugar. Apenas um camping, um camping. Porém algo muito profundo teimava em sussurrar o contrário: era um acampamento, um acampamento de santos e eu tinha ouvido a suave e inquietante voz de Deus.

Ainda na base do monte

Um ano após, tendo visitado aquela igreja nipônica quase semanalmente, ainda continuava no mesmo lugar, a contemplar as dúvidas que pairavam nas alturas, julgando ser mera miragem, uma ilusão oriunda de medos ancestrais impingida por religiosos. Apesar de meus esforços, não consegui provar a mim mesmo que Deus não existia; não consegui me convencer da obsolescência da Bíblia; não consegui provar que aqueles crentes estavam fingindo; não consegui tirar da mente a incômoda sensação de ter ouvido algo além que meus pensamentos naquele terrível acampamento. Tentei me refugiar nas cavernas da ciência e da lógica, na base da montanha da dúvida, e dei melhor atenção à faculdade. À época comecei a cursar a disciplina química biológica, que tinha como leitura obrigatória “A origem da vida”, de Aleksandr Oparin, propositor da teoria da evolução química e detrator da existência de um Deus Criador. Um livro que, para um ateu, seria o que uma corda de segurança representava para um alpinista – uma alegria para alguém que estava balançando à beira de um abismo existencial. Após a leitura, o que deveria ser segurança e sólida ciência, revelou-se intelectualmente pobre e questionável. A proposta tinha tantos poréns, tantas considerações, tantas inconsistências químicas que, incomodado, procurei o professor e perguntei:

– Professor, o senhor concorda mesmo com tudo o que está escrito aqui? Não faz o mínimo sentido a química que o autor sugere para as muitas etapas necessárias à vida.

– É o que temos de melhor. Está tudo aí. Medite e verás que Oparin tem razão.

– Mas como coacervados, envoltos em películas de caráter hidrofóbico, podem ter surgido espontaneamente em um ambiente aquoso? Como moléculas ao acaso formaram polímeros? Como aquela sopa aleatória pode ter gerado uma célula? Isso beira a irracionalidade, contraria a química, a físico-química, a biologia…

– Apenas PARECE contrariar – pontuou enfaticamente –, mas foi assim que a vida surgiu. Creia nisso.

– Ao falar crer, o senhor está dizendo para ter fé?

– Isso, tenha fé na ciência.

– …

Se a ciência exigia fé para eu descrer em um deus e aceitar a irracionalidade de algumas teorias, então não era melhor que a religião. A religião ao menos exigia um deus como causa, aquele discurso nem ao menos trazia este consolo. Se antes duvidava da religião, passei também a duvidar da ciência.

Chegando ao cume e vencendo o monte

Foi nessa paralisia de alma, incapaz de subir aquele monte, que a própria montanha veio ao meu encontro, sem rodeios, sem preparações. Participei novamente do mesmo acampamento e, angustiado, dei-me conta que por minhas forças não conseguiria chegar ao topo da verdade: descobrir se Deus era uma realidade ou uma ilusão estava muito além das minhas capacidades intelectuais. Desiludido, na segunda noite, sentei-me em uma laje e orei. Não foi exatamente uma oração espiritual, aliás sequer era uma oração. Estava mais para um desafio cínico misturado com queixume angustiado. Não esperava ser ouvido. Foi a única oração possível a um ateu. Disse Àquele que odiava:

“Olha, não sei se você existe. Não acredito em ti. Não acredito na Bíblia. Não acredito nessas bobagens. Até gostaria de viver igual esse pessoal, mas não consigo. Gosto deles, mas não sou igual a eles. Eles são diferentes, bobos, crédulos. Se você realmente existe, faça como eles dizem: entre em meu coração. Não é isso que falam que você faz?”

Aqui entra o inefável, o indescritível, o que a ciência não pode explicar, o que viria a definir e moldar quem eu seria para todo o sempre. Subi aquela laje ateu, desci crente. Assim, sem explicações, sem dúvidas, sem lágrimas ou testemunhos arrebatados. Era o mesmo homem e ao mesmo tempo uma nova pessoa. Em meu coração habitava agora uma certeza inabalável de que fora criado por Deus e salvo por Cristo Jesus. Nem mesmo minhas dúvidas foram capazes de me separar dAquele que me criou, me amou, me preparou e me dirigiu para aquele momento único. Havia escalado o Everest da mais fundamental de todas as questões e sobrevivido para contar Quem encontrei lá.

A visão de cima do monte vencido

A Bíblia, que antes era enigmática, passou a ser clara e a fazer sentido, tornou-se alimento para minha alma cansada de lutar contra Deus e o pecado. A ciência, que antes parecia-me inimiga da fé, aos poucos se me tornou uma preciosa aliada em minha caminhada com o Senhor Deus. Se antes estudava a criação do Senhor, agora minha mente se voltava com alegria para conhecer também o Senhor da Criação. Se sou o que sou hoje, o sou pela Graça dAquele que me amou primeiro. Todas as demais decisões e realizações foram moldadas por aquele instante único. E isso me define, me realiza, me consola e me dá esperanças. Que seria de mim como pai se não tivesse a Graça de Cristo? Como seria como esposo se não houvesse a misericórdia do Senhor? Como sobreviveria no ambiente acadêmico se não recebesse diariamente força e discernimento que vem do Alto?

Termino relembrando o pedido daquele sacerdote católico que foi plenamente atendido: “que o Senhor tenha misericórdia de ti”. Certamente Ele teve, pois pela misericórdia divina, escalei e venci o Everest de meu ateísmo, e disso dou testemunho.

A Ele toda a glória.

 

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Autor: KELSON MOTA. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisão e Edição por Vinicius Lima.