A Reforma Protestante, ciência e as universidade

Os frutos do substrato singular da fé cristã reformada

Muito se tem falado sobre a relação entre o saber científico e a Reforma Protestante no início do século XVI e como isso resultou nas modernas universidades. Mas, para entender a ciência e a educação nas universidades após o século XVI, e entendendo que o evento da Reforma foi o ponto fulcral nesse processo, devemos refletir um pouco como era antes do século XVI, antes de Lutero pregar suas 95 teses e com isso mudar todo o rumo da Europa e por tabela o mundo todo nos séculos que se seguiram.

Primeiramente devemos ter em mente que o conceito de universidade atual é atavicamente ligado ao conceito de desenvolvimento do conhecimento científico e seus avanços. Mas isso sempre foi assim? É necessário perguntar: como era esse desenvolvimento antes e por que a ciência moderna não se desenvolveu antes do século XVI, mesmo em povos como os árabes, os chineses e os gregos? A resposta não é simples, contudo podemos angariar algum auxílio em ao menos três pontos fundamentais:

A universidade não é uma evolução natural do pensamento e desenvolvimento das civilizações. A universidade, conforme relembram Pearcey e Thaxton, no excelente livro A Alma da Ciência, é uma instituição inventada. E por que é assim? Porque várias civilizações avançadas surgiram e desapareceram no decorrer da história sem desenvolverem uma filosofia científica. E esse é um ponto muito importante, pois o pensamento científico em termos de experimentação e formulação matemática só veio a surgir na Europa Ocidental, no fim do século XVI e em nenhuma outra era da história humana. Por mais estranho que pareça à primeira vista, a ciência, enquanto metodologia, não é algo natural para a humanidade. E aqui devemos ter o cuidado de não confundir com a curiosidade humana em entender como o mundo funciona: a curiosidade humana é algo natural; pensar, inquirir, buscar entender faz parte do padrão mental do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Todavia, a ciência institucional, a metodologia científica não o é. Para efeito de ilustração, alguns princípios de química em termos de metalurgia, fabricação de vidros, tinturas, bebidas, etc, eram conhecidos desde o século V aC, mas somente em fins do século XVII é que ganhou roupagem realmente científica, e nunca antes. 

Para que a ciência institucionalizada, metodologicamente precisa, possa surgir na história é preciso um substrato singular e específico para que isso possa se desenvolver. Esse substrato, como muitos filósofos da ciência têm atestado, é a fé cristã, especialmente a que se difundiu pela Reforma Protestante, iniciada por Lutero em 1517 ao afixar na porta da Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, Alemanha, as suas 95 teses. Sim, foi na Europa fortemente impregnada pela cosmovisão teísta cristã que a ciência pode surgir. Mesmo que muitos naquele século não vivessem a fé cristã de forma genuína, a cosmovisão vigente e abrangente era totalmente cristã e permeava a todos, do nobre ao camponês, do erudito ao ignorante. A estrutura intelectual do indivíduo à época, se fundamentava com a visão bíblica de mundo. Essa cosmovisão faria toda a diferença para a institucionalização da ciência. Por exemplo, culturas mais avançadas como China e os arábios, apesar de grandes descobertas e avanços tecnológicos à época, não tinham o substrato necessário para desenvolver a ciência moderna ou mesmo sequer iniciar uma revolução científica. Esta depende de alguns caros pressupostos acerca do mundo natural, que somente a cosmovisão bíblica fora capaz de imprimir nas mentes e corações. Que pressupostos são esses? Há vários, cito três: 

  1. A realidade concreta da natureza. Parece óbvio para nós em pleno século XXI, afirmar que a natureza que nos cerca é real, tangível, concreta, no entanto, no passado, civilizações cujas cosmovisões eram dominadas pelo panteísmo e idealismo ensinavam que as coisas eram manifestações ou simulacros da divindade. No fim das contas defendiam que a realidade era um certo tipo de ilusão. E muitos desses sistemas de pensamento estão em voga até hoje. O hinduísmo apregoa que o mundo material é dominado pelo conceito do maya (uma ilusão) e todos vivem imersos em um mundo que é apenas um simulacro vago e ilusório. Nesse pensamento, o iluminado é quem percebe essa ilusão e alcança uma compreensão divina da realidade maior (a trilogia Matrix bebe nessa fonte). O problema desse sistema de pensamento é óbvio: se você desacredita da materialidade do mundo, como desenvolver uma metodologia verdadeiramente científica, que parte do pressuposto que a matéria é real? A doutrina cristã, redescoberta pelos reformadores, por outro lado, ensina que o mundo material é criação de Deus. É concreto, e não uma emanação ou manifestação divina. É real, não ilusório, passível de estudo e experimentação.
  2. A ordem na natureza criada. Por apresentar uma ordem subjacente, a natureza é digna de estudo. Também parece um conceito óbvio, mas por muitos séculos esse pressuposto não foi aceito. A civilização grega, talvez a mais inteligente da história, pressupunha que a matéria era má e caótica, sem qualquer ordem subjacente. Para os gregos o trabalho braçal era coisa para escravos, trabalhar com a matéria bruta era algo degradante. Chama a atenção que os gregos, apesar do impressionante desenvolvimento filosófico e intelectual, não desenvolveram nenhuma ciência empírica, posto que esta requer observação e experimentação material. Por outro lado, a cosmovisão bíblica vai martelar a ideia de que a criação é boa. Várias vezes o livro de Gênesis repete a reação de Deus ao terminar cada obra: e viu Deus que era bom. A teologia cristã, especialmente após a Reforma, afirma que o trabalho manual não é degradante e deve ser usado para a glória de Deus, pois tudo o que foi criado por Deus espelha a sua bondade. A Reforma Protestante reconheceu além do chamado para servir na igreja, o chamado secular do cristão. Esse chamado para servir permitiu e conferiu dignidade à investigação da natureza. Não há como desenvolver boa ciência se considerarmos a natureza indigna dos esforços do ser humano. João Calvino, o mais notório dos reformadores, certa vez escreveu acerca das observações astronômicas: “é necessário haver arte e um trabalho mais preciso para investigar o movimento das estrelas, determinar suas posições ordenadas, medir seus intervalos e observar suas propriedades”. Se eu der essa frase para qualquer aluno que cursa a disciplina Metodologia Científica e perguntar a que metodologia o autor se refere, ele dirá prontamente: ora, isso é puro método científico! 
  3. A materialidade da natureza em contraposição à divinização. Aqui o princípio já não é tão óbvio, mas é de suma importância para o estabelecimento de uma instituição científica. O pressuposto afirma que a natureza, ainda que boa, ordenada, digna de estudo da parte do homem, não é divina, e sim apenas criação de Deus. Qual a importância desse fundamento? Simples, religiões animistas, totemistas e panteístas retratam o mundo como um jardim encantado, cheio de espíritos, demônios, fadas, semideuses, ou emanações divinas. Chama-se a isso de divinização da natureza. Um exemplo emblemático deste obstáculo na história foi o não desenvolvimento da ciência chinesa. Os chineses, apesar das muitas e impressionantes descobertas (papel, pólvora, bússola, imprensa, sericultura, papel moeda, ábaco, números negativos, etc), tinham uma visão animista de mundo, com uma natureza comandada por espíritos, traduzido no ocidente como dragões. Na mitologia chinesa diversos tipos de dragões, ou espíritos, eram responsáveis por toda sorte de fenômenos naturais, desde o movimento de placas tectônicas até o controle do fluxo dos rios e a mudança no clima. Nesse sistema de pensamento, era mais interessante estudar os gostos e hábitos dos dragões do que procurar sistematicamente as causas dos fenômenos. Não há como sistematizar os padrões naturais se estes são caprichos de seres sobrenaturais. Em suma: uma civilização, por observação cuidadosa, pode chegar a compreender vários fenômenos naturais e construir algum avanço tecnológico, mas nunca chegará a institucionalizar uma metodologia científica se sua cosmovisão for animista. A doutrina bíblica sempre descartou a ideia que a matéria é divina. Deus não habita nas coisas materiais, não é uma personificação de forças naturais e as coisas criadas não são emanações do divino. Deus é o Criador, e os reformadores relembraram o mundo que não devemos confundi-lo com as coisas criadas, como sol, lua estrelas, templos, pessoas, ídolos, etc. Com a Reforma, a natureza foi desdeificada. E aqui temos um ponto de suma importância: é só quando a natureza é desdeificada, desvestida de sua aura divina, que a ciência pode emergir. A alquimia só se tornou a química moderna que conhecemos quando abandonou de vez a ideia grega dos quatro elementos divinos e a simbologia egípcia do poder oculto na matéria.

Em resumo, a ciência para se desenvolver precisa de um pensamento que aceite que esse mundo é real, ordenado, inteligível e cujos padrões podem ser naturalmente reconhecidos. Um mundo onde os acontecimentos naturais ocorrem de maneira confiável e regular e não sob o capricho de potestades e espíritos da natureza. A fé cristã foi o substrato no qual a ciência moderna pôde nascer, e a Reforma Protestante foi o meio usado por Deus para fixar na mente europeia esses pressupostos. E é nesse ponto que começamos a pensar nas universidades que vieram no rastro da Reforma, no século XVI. Mas a Reforma não é um movimento institucional fixo, ela começa e se desenvolve com o substrato da genuína cosmovisão cristã, ainda de forma incipiente no século XV, e vai encontrar sua expressão mais emblemática em Martinho Lutero.

Martinho Lutero, ainda novo, com 21 anos, chegou à conclusão que todos deveriam ter acesso aos textos sagrados. Mas havia um problema, o povo alemão era majoritariamente analfabeto. É nessa preocupação que começa os caminhos que levariam a educação a ser um direito de todos e a ciência uma metodologia. Com a Reforma, Lutero propôs aos príncipes que as crianças deveriam receber educação formal e, ao seu lado, estava Felipe Melanchthon que defendeu o direito universal à educação ao requerer que tanto meninos, quanto meninas, tivessem o direito de frequentar a escola. Assim, Lutero propôs que a educação fosse mantida pelo Estado e fosse obrigatória para todos, e defendeu que a educação deveria ser mais do que apenas espiritual, mas também cultural, para que os indivíduos pudessem se inserir na sociedade. Anos depois, já em meados do século XVII, o fundador da didática moderna, João Amós Comenius, bispo protestante da igreja da Moravia, e seguidor das ideias de Jan Huss, lançou as bases que fundamentaram as universidades que viriam. Primeiro defendeu, assim como Lutero, a universalidade da educação. Depois estabeleceu um tratado sobre a tríade da educação superior que deveria contemplar três áreas: (a) a instrução, que seriam os conteúdos em si (as nossas ementas modernas), (b) a virtude, entendidas por habilidades que podem ser desenvolvidas (para nós hoje, a prática e a experimentação) e por fim (c) a piedade, que são as atitudes (nos dias de hoje, a competência, a responsabilidade e o senso crítico). O interessante desta visão reformada, é que apregoava que a educação deveria considerar o educando e enxergá-lo como um ser integral em todas as suas dimensões: intelectual, moral e espiritual. Basicamente, Comenius antecipou em três séculos a teoria moderna de aprendizado significativo. Todas as universidades e o próprio sistema de educação, aos poucos, aderiu à visão de Comenius, dando origem ao que entendemos hoje como a base do ensino, tanto fundamental e médio, como superior. Se hoje temos currículos que se preocupam com o aprendizado significativo do aluno, é porque no passado um cristão reformado lançou as bases para tal.

 É nesse caldo cultural que veio com a Reforma Protestante que as universidades antigas se abriram para a população e novas universidades foram formadas. Naturalmente que antes da Reforma já existiam universidades fundadas na idade média (como Universidade de Bolonha, criada em 1190; Universidade de Oxford, criada em 1214; Universidade de Paris, criada em 1215, e cerca de 60 outras). Mas as universidades antes da Reforma eram restritas à formação do clero e a alguns filhos de nobres e do alto escalão da governança. Foi só após o movimento da Reforma que aos poucos, e mui lentamente, as portas dessas universidades antigas começaram a se abrir para os demais segmentos da população. Cristãos reformados, imbuídos pelo desejo de educação universal, criaram novas universidades atreladas a seminários teológicos, onde se poderia estudar além da teologia divina (ThD), a teologia natural ou filosofia natural (PhD). A mais emblemática foi a Universidade de Genebra, fundada em 1559, por João Calvino, criada para treinar ministros e promover a teologia reformada, seguida da Universidade de Leiden, na Holanda, em 1575, por calvinistas durante a guerra dos oitenta anos. Em uma movimentação diferente, a vetusta universidade de Heidelberg, fundada em 1386, foi fortemente influenciada pela Reforma Protestante, sendo a primeira a adotar o luteranismo e o calvinismo. A universidade de Maburgo, fundada em 1527, foi a 1ª universidade protestante do mundo, tornando-se um centro de teologia luterana e formação clerical. Por fim, foi criada a (hoje famosa) Universidade de Edinburgo, na Escócia (um dos maiores centros de Ciência da Computação da atualidade), fundada em 1582, por reformadores escoceses na esteira de John Knox.

Mas é impossível falar de universidades reformadas sem citar as universidades protestantes americanas. Entre as famosas cito três: a Universidade de Yale (1640), a Universidade de Harvard (criada por puritanos em 1643) e a Universidade de Princeton (1746). O desejo de Lutero de ver todas as crianças com acesso à educação ficou marcado no coração dos peregrinos que emigraram para a América, que criaram o lema uma escola, uma igreja. Nenhuma outra nação anterior, com cosmovisão diferente da cristã, foi capaz de estabelecer um marco de educação tão impressionante. As universidades americanas (e mesmo as europeias), acima citadas, estão entre as mais respeitadas e relevantes do mundo atual e todas possuem em sua história muitos ganhadores de nobel, presidentes famosos e lideranças globais. Os lemas das instituições americanas apontam indubitavelmente para suas origens reformadas. O lema de Princeton até hoje é: Dei sub numine viget (Sob o poder de Deus prosperará). O de Yale é Lux et veritas (luz e verdade) e no brasão escrito, em hebraico, urim e tumim, indicando a vontade de Deus revelada. O lema de Harvard atual, criada originalmente para formar líderes e pastores para as igrejas, é um claro caso de tentativa de gerações posteriores em esconder suas origens cristãs: veritas (verdade). Mas o lema original era maior:  Veritas Christus et eclesieae (verdade para Cristo e a Igreja). Esses lemas, longe de ser apenas propaganda, eram um testemunho do quanto a ciência era algo vinda de Deus e um conceito valioso para os reformados. Infelizmente, os lemas das universidades seculares de hoje esquecem que para haver ciência é necessário que haja o substrato da fé cristã. Na universidade em que trabalho o lema é Universia scientia veritas (a ciência como verdade universal), o que em si incorre em erro, posto que o método científico é um meio de investigação da verdade natural e não é a expressão da própria verdade. E é sempre bom lembrar aqui: ciência não é a verdade, mas a busca pela verdade.

 Infelizmente, nos séculos que se seguiram à Reforma, a ciência e a educação nas universidades europeias e americanas passaram por transformações profundas. O incipiente humanismo no século XVI, o deísmo no século XVII, o iluminismo do século XVIII e o naturalismo do século XIX aos poucos eclipsaram as conquistas da Reforma Protestante, o que culminou em meados do século XIX na narrativa tosca e mentirosa que fé e ciência sempre se opuseram, o que foi aceito como certo no século XX.

Se hoje temos boas escolas, excelentes universidades e incríveis avanços na ciência e na tecnologia é porque no passado cristãos corajosos se levantaram e ensinaram que vivemos em um mundo ordenado e inteligível, criado por um Deus sábio, inteligente e poderoso, que nos deu domínio sobre sua criação. A igreja reformada, pelos desígnios do Senhor, nos legou, além do maravilhoso e correto entendimento das doutrinas bíblicas, a benção da ciência. Sim, a ciência quando honestamente conduzida, sempre concordará com a correta interpretação das Escrituras, e apontará para o Criador. Certamente, os reformadores concordariam com essa frase. 

Soli Deo Gloria!

 

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Autor: KELSON MOTA. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Revisão e Edição por Vinicius Lima.