Um blog do Ministério Fiel
A vida cristã, uma mistura de exílio e restauração
Capítulo 2 da série 'Entre dois mundos'
Este é o segundo de 11 capítulos da série da revista Tabletalk: Entre dois mundos.
A maioria das pessoas reconhece intuitivamente a diferença entre uma casa e um lar. É isso que faz do exílio uma punição tão eficaz: nos impede de voltar para o lar. Nos separa dos entes queridos e da segurança, e nos tira o senso de pertencimento. Inclusive pode até nos colocar em lugares hostis e perigosos.
Nós, o povo de Deus, temos vivido como exilados em terras estrangeiras desde que fomos expulsos do jardim do Éden. Toda a nossa história tem sido um ciclo de exílio e restauração. A boa notícia é que o ciclo está chegando ao fim. Porém, por enquanto, nossas vidas são uma mistura de exílio e restauração.
O jardim do Éden
A humanidade foi criada como parte do plano de Deus de estender Seu reino celestial à terra (Mt 6:10; Ap 21 – 22). Para isso, Deus criou um mundo perfeito e separou uma terra especial chamada Éden (que significa “lugar agradável” ou “lugar encantador” em hebraico). Os quatro rios do Éden (Gn 2:10-14) indicam que se estendia desde a Mesopotâmia até o Egito.
Deus plantou um jardim no Éden, de onde as nascentes dos quatro rios fluíam. Isso sugere que o jardim era elevado e central, talvez nas montanhas da Judeia. Também atribuiu à humanidade a tarefa de “cultivar” e “guardar” o jardim (Gn 2:15) e “encher a terra e subjugá-la” (1:28). Em outras palavras, nosso trabalho era expandir as fronteiras do jardim para os confins da Terra.
No Éden, Deus estabeleceu o pacto de obras para governar nossa relação com Ele (Confissão de Fé de Westminster, 7.2). Éramos responsáveis por obedecer a Deus cumprindo nossos deveres designados e não comendo o fruto proibido (Gn 2:17). Se obedecêssemos, seríamos abençoados com a vida eterna (3:22). Se não o fizéssemos, seríamos responsabilizados com a morte (2:17).
Infelizmente, a serpente enganou Eva, Eva convenceu Adão, ambos comeram do fruto proibido, e a humanidade foi desterrada do jardim (Gn 3). Deus colocou guardas angelicais para garantir que a humanidade não voltasse a entrar às escondidas (v. 24).
A maldição do exílio
O primeiro exílio da humanidade nos afastou da presença manifesta de Deus e colocou a nós e ao resto da criação sob a Sua maldição (Rm 8:20-22). O trabalho tornou-se difícil, a gravidez tornou-se dolorosa, e todos eventualmente morreram (Gn 3:16-19). Todos nascemos espiritualmente mortos (Rm 8:5-11), tornando impossível cumprir nossas obrigações do pacto ou ir a Deus em fé (7:14-25; Gl 5:17). Vivíamos em comunhão quebrada com Deus (Rm 5:10; Ef 2:1-3) e em conflito com nossos cônjuges, familiares e com o próximo. Essas condições persistiram. Sem a intervenção de Deus, isso é tudo que podemos ser.
Graças a Deus, Ele prometeu enviar um Redentor para nos salvar do exílio e, finalmente, da morte (Gn 3:15). Ele estabeleceu o pacto da graça (Confissão de Fé de Westminster, 7.3), por meio do qual Cristo inverte a maldição e o exílio do pecado de Adão (Rm 5:12-19).
O exílio da humanidade do jardim tornou-se programático pela forma como Deus administrou a Sua aliança com a humanidade, pelo menos em um nível corporativo. Deus nos dá leis pactuais. Podemos cumpri-las e ser abençoados ou desprezá-las e ser amaldiçoados. A maldição pode ser tão ruim quanto a morte, mas Deus com mais frequência opta por algo como o exílio. Se nos voltarmos para Ele em fé, nos redimirá. Se não o fizermos, a punição pode aumentar (Lv 26; Dt 28 – 31).
Sozinhos, nunca podemos ser bons o suficiente para evitar o exílio, muito menos ganhar as bênçãos de Deus. Então, Cristo faz isso por nós. Se estamos unidos a Ele apenas pela fé, temos a promessa de restauração total do exílio de Adão.
O Dilúvio
Depois de ser exilada do jardim, a humanidade desceu para uma maldade ainda maior. Ao desprezar tanto Deus quanto o próximo, nos tornamos falsos adoradores e assassinos. Caim, o primeiro assassino, foi exilado da presença do Senhor no Éden (Gn 4:16) e seus descendentes eram piores do que ele tinha sido. A humanidade tornou-se tão má que Deus destruiu a quase todos nós no Dilúvio (Gn 6 – 9). Apenas Noé e sua família foram poupados.
O Dilúvio levou Noé ao Ararat, logo além da fronteira do Éden. Este movimento geográfico ampliou a maldição da humanidade, nos levando mais longe da terra abençoada por Deus. No entanto, Deus confirmou a aliança da graça com Noé (6:18; 9:9), ao indicar que, por meio de Noé, a humanidade recuperaria o que havia sido perdido não apenas no Dilúvio, mas na Queda.
Sob a aliança noética, a humanidade começou a ser restaurada achando graça diante de Deus. Neste sentido, também começamos a voltar para o Éden. Até então era muito diferente, mas ainda representava a esperança do reino de Deus.
A permanência de Abraão
Com o passar do tempo, Deus escolheu Abraão para se tornar o pai de uma nova nação, por meio da qual Deus cumpriria Seu plano para um reino terreno (12:1-3; 17:4-8). Geograficamente, Ele levou Abraão das porções distantes do Éden na Mesopotâmia em direção ao centro daquela região.
A mudança de Abraão foi ocasionado pela graça e bênção de Deus, não por Sua ira e maldição. Ainda assim, Abraão saiu de casa sem saber para onde estava indo. Além disso, quando chegou a Canaã, era grande a fome na terra (12:10). Então, ele temporariamente se mudou com sua família para o Egito, e depois a levou de volta para Canaã, assim que a fome terminou.
Durante este tempo, a vida de Abraão parecia longe de ser abençoada. Sua esposa foi levada para o harém do Faraó, seu sobrinho foi sequestrado e Abraão teve que levar os homens de sua casa para a batalha (Gn 12 – 14). Tudo isso foi antes de Deus fazer um pacto com ele. Deus lhe deu várias ofertas e garantias de terra e descendência (12:1-3, 7; 13:14-17) e, mais tarde, confirmou-as a pedido de Abraão (15:8).
Deus fez uma aliança para dar Canaã a Abraão, juntamente com descendentes numerosos demais para contar. Por meio desses descendentes, Ele estenderia o reino de Abraão por todo o mundo (Gn 1 – 21; 17:1-14; Rm 4:13).
Abraão nunca viu essas promessas cumpridas (Hb 11:13). Ele viveu e morreu como um estrangeiro na própria terra que Deus havia prometido lhe dar, com apenas um filho (Isaque) a quem Deus havia estendido a promessa do pacto (Gn 22:16-18). Mas nem Abraão nem ninguém nas Escrituras, depois dele, jamais acreditou que as promessas de Deus haviam falhado. Eles esperavam mais do que apenas um poderoso reino humano, esperavam que o reino celestial de Deus viesse à terra (Hb 11:16).
O êxodo
Duas gerações após, a família de Abraão voltou ao Egito como convidados de honra, com a promessa de Deus de que voltariam a Canaã como uma grande nação (Gn 46:3-4). Essa promessa foi cumprida, mas apenas depois que Deus permitiu que os israelitas fossem escravizados pelos egípcios por séculos (Ex 6:6; 12:40).
Deus devolveu Israel a Canaã não porque se lembraram de Sua aliança, mas porque Ele lembrou-se (2:23-25). Tal como ocorreu com Noé e Abraão, a razão de seu sofrimento prolongado parece não ter sido seu próprio pecado, mas a pecaminosidade dos outros. No entanto, Deus o usou para o bem deles (Rm 8:28). Israel tornou-se uma nação poderosa e partiu com espólios do Egito (Ex 3:22).
Ao retornar a Canaã, Israel repetia um movimento que Abraão havia feito. Tal como Adão, tinham sido expulsos do jardim. Tal como Noé, tinham sido expulsos do Éden. Tal como Adão, Noé e Abraão, foi-lhes prometido um retorno ao Éden, onde começaria a estender o reino de Deus até os confins da terra.
Israel tornou-se infiel a Deus durante o êxodo. Assim, apesar de Ele ter permitido que a nação deixasse o Egito, não os restituiu à terra prometida. Em vez disso, Ele estendeu seu exílio fazendo-os vagar até que toda a primeira geração que havia deixado o Egito, exceto Josué e Calebe, tivesse morrido no deserto (Nm 14).
O primeiro reino
Em Canaã, Israel lutou por séculos antes de Deus fazer um pacto com Davi, um pacto que prometia que um de seus filhos governaria Israel para sempre (2 Sm 7; Sl 89). Então, sob o filho de Davi, Salomão, Israel subiu ao auge de seu poder. Suas fronteiras se estendiam até as bordas do Éden e o povo era numeroso demais para ser contado (1 Rs 4:20-21), assim como Deus havia jurado a Abraão.
Salomão construiu o templo como a casa de Deus e a sala do trono (1 Cr 28:.2; Is 6:1) e o próprio trono de Salomão era uma extensão do trono de Deus (1 Cr 28:5-6; 29:23). Como o tabernáculo, o templo e seus móveis ecoavam imagens do Éden. Ambas as estruturas refletiam externamente seu propósito espiritual de ser o lugar onde Deus habitava e se encontrava com Seu povo. No entanto, mesmo ali, algo faltava. Deus não andava com Seu povo como fazia com Adão no jardim.
Mais tarde, o próprio Salomão tornou-se infiel. Assim, nos dias de seu filho Roboão, o reino foi dividido entre Judá ao sul e Israel ao norte (1 Rs 12:16-24). Por fim, os reinos do norte e do sul foram levados para novos exílios. Na medida em que se distanciaram espiritualmente de Deus, foram geograficamente afastados de Seu trono em Jerusalém.
O último reino
Houve uma tentativa de restaurar o reino nos dias de Esdras e Neemias, mas ela falhou porque o povo era infiel. Em última análise, Deus fez o que Seu povo era incapaz ou não estava disposto a fazer. Ele enviou Seu próprio Filho para tirar o Seu povo do exílio e construir o reino dos céus em todo o mundo.
Onde isso nos leva agora? Vivemos no exílio ou vivemos no reino celestial de Deus na terra? De certa forma, as duas situações são corretas. Tendo em vista que o reino de Deus já está aqui, ele é em grande parte espiritual (Lc 17:20-21). Então, somos exilados físicos, mas não exilados espirituais. Lutamos com o mundo físico, a carne corruptível e a presença do pecado (Rm 7:14-25; Gl 5:17). Mas, espiritualmente, somos cidadãos do reino de Deus, em nós habita o Espírito Santo, e estamos sentados com Cristo nos lugares celestiais (Ef 2:4-7).
Entretanto, Jesus ainda não voltou para renovar os céus e a terra, e este lugar não é o jardim do Éden, ou melhor, a nova Jerusalém. O pacto de graça garante que, quando a plenitude do reino de Deus chegar, nunca mais sofreremos (Ap 21:4). Até lá, esse pacto nos assegura em grande parte que sofreremos (2 Tm 3:12). Isso faz com que nossas vidas sejam muito parecidas com a de Abraão. Vivemos e caminhamos pela fé, conscientes de que as promessas de Deus são verdadeiras mesmo quando não parecem ser.