Um blog do Ministério Fiel
A divindade do bebê Jesus
Capítulo 3 da série Reflexões cristológicas de Natal
Nota do Editor: Este é o terceiro de quatro artigos da série Reflexões cristológicas de Natal, por Tiago Oliveira. Esta série faz parte do Especial de Natal 2024 do Voltemos ao Evangelho, onde estaremos postando, até o dia 25 de dezembro, conteúdos selecionados sobre o nascimento, pessoa e obra de Jesus Cristo, nosso Senhor.
Neste mês celebramos o Advento, o natal do Senhor Jesus. Celebramos o dia em que um bebê nasceu, há cerca de dois mil anos, numa pequena cidade no médio-oriente. Estima-se que cerca de 130 milhões de bebês nascem todos os anos. Aparentemente, este evento não teve nada de extraordinário. O seu nascimento foi como o de qualquer outro bebê. A olho nu, não havia nada que destacasse este bebê de qualquer outro bebê. A sua família era uma família comum. O seu pai era um simples carpinteiro. O seu nascimento não teve honras de estado. Os seus pais, que viviam em Nazaré, viajaram até Belém onde Maria deu à luz o menino e “deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem” (Lucas 2:7a).
Historicamente, a importância deste bebê é inegável. Jesus tornou-se a maior figura da história da humanidade, cuja influência se estendeu a todas as áreas da sociedade (social, religiosa, cultural e política), a ponto de alterar os calendários de uma boa parte do mundo. A influência que este bebê exerceu ainda hoje altera a nossa cronologia. Vivemos hoje no ano 2019 depois de Cristo. Qualquer evento da história é colocado numa perspetiva cristológica. O ano de qualquer evento relatado nos livros da história é relativo ao nascimento desta pessoa.
No entanto, para nós, cristãos, a razão pela qual celebramos o nascimento de Jesus é porque acreditamos que esta pessoa é única. Afirmamos sobre a pessoa de Jesus aquilo que não podemos afirmar sobre nenhuma outra pessoa em toda a história da humanidade. Acreditamos que “Jesus Cristo foi completamente Deus e completamente Homem numa só pessoa, e assim o será eternamente.”[1] Esta afirmação é ousada porque afirmamos que, sendo Jesus um ser humano, a sua pessoa não se reduz à sua natureza humana. De acordo com o ensino das Escrituras, confessado pela Igreja ao longo da história, a pessoa do Filho de Deus é um mistério para nós. É um mistério no sentido que está acima da nossa compreensão. Quem pode compreender uma pessoa que é simultânea, perfeita e completamente divina e humana?
Mas, apesar de não podermos compreender de forma perfeita a pessoa do Senhor Jesus Cristo (a união perfeita entre a natureza humana e divina – chamada união hipostática), a fé cristã está fundada nesta doutrina. Por isso, devemos afirmá-la. Como vimos no artigo anterior, podemos resumir o ensino da Igreja (com base nas Escrituras) acerca da pessoa do Filho em seis afirmações principais: (1) O Filho de Deus é uma só pessoa; (2) O Filho tem duas naturezas: natureza divina e natureza humana; (3) O Filho é completa e perfeitamente divino; (4) O Filho é completa e perfeitamente humano; (5) As duas naturezas do Filho não podem ser separadas; (6) As duas naturezas do Filho não podem ser confundidas (devem ser distinguidas).
Um princípio fundamental quando falamos sobre a união hipostática é ter o cuidado de preservar as suas naturezas divina e humana intactas. Elas não podem ser separadas nem confundidas. Se as naturezas forem separadas, não mais temos uma pessoa, mas duas pessoas. Se as naturezas forem confundidas, não mais temos a união de duas naturezas distintas, mas uma fusão de duas naturezas que faria da pessoa de Jesus nem Deus, nem homem. Por isso, ao falarmos sobre as suas naturezas de forma distinta, não queremos (nem podemos) esquecer ou separar as duas naturezas. “Porque o risco é, em ler as duas (naturezas), não acreditar em ambas, mas uma das duas. Sendo que as duas são afirmadas acerca de Cristo, que as duas sejam afirmadas; para que a fé seja verdadeira e também completa.”[2] Não é apenas por preciosismo ou precisão teológica que é necessário afirmar as duas naturezas de Cristo unidas e distintas ao mesmo tempo. É necessário que o Cristo fosse Deus e homem ao mesmo tempo para que a nossa salvação seja possível e real. “[A] não ser que tivesse sido Deus a dar-nos a salvação livremente, nunca a poderíamos possuir de forma segura. E, a não ser que o homem tivesse sido unido a Deus, jamais poderíamos tomar parte da sua incorruptibilidade. Porque era esta a tarefa do Mediador entre Deus e o Homem, que através do seu relacionamento com os dois, trazer os dois a uma amizade e concórdia, e apresentar o Homem a Deus, enquanto Ele revela Deus ao Homem.”[3]
Mas, como a pessoa do Filho é simultaneamente divina e humana, podemos falar das suas naturezas de forma distinta. Comecemos pela sua natureza divina.
O que distingue a pessoa do Filho de Deus de qualquer outra pessoa, é que, antes do Filho se tornar homem na pessoa de Jesus, ele já era Deus eternamente. As Escrituras claramente ensinam, de forma explícita e implícita, que Jesus é Deus. De forma explícita, a divindade de Jesus é afirmada por vários autores neotestamentários. Ele é o Verbo (a Palavra) criador (Genesis 1.1, 3; cf. João 1.3, Colossenses 1.16), que não apenas estava com Deus quando criou todas as coisas, mas era ele mesmo Deus (João 1.1). Ele é o Deus bendito (Romanos 9.5), o Senhor a quem João Batista preparou o caminho (Isaías 40.3, Mateus 3.3). Ele é aquele cujo trono subsiste eternamente (Hebreus 1.8; cf. Salmos 45.6). Ele mesmo afirmou ser o “Eu Sou” (João 8.57-58; cf. Êxodo 3.13-14). Ele é o “nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (1 Pedro 1.1).
Para além do que afirmam explicitamente, o ensino das Escrituras acerca de Jesus também nos leva a concluir, sem sombra de dúvida, que a pessoa do Filho de Deus é verdadeiramente Deus. Ele partilhava a glória do Pai mesmo antes de qualquer coisa ter sido criada (João 17.5; cf. Filipenses 2.6). Ele é o Emanuel, Deus-conosco (Mateus 1.23; cf. Isaías 7.14). Ele é a expressa imagem da pessoa de Deus (Hebreus 1.3, João 1.14), a ponto de ter afirmado que “quem me vê a mim vê o Pai” (João 14.9). Por ser Deus, o Filho pode perdoar pecados (Lucas 5.20, 24; 7.48) e conceder a vida eterna a quem desejar (João 5.21; 10.28-29; 11.25). Dele é o Reino, os anjos pertencem-lhe por direito e ele julgará o mundo (Mateus 13.41; 25.31-32; João 5.22-23). Por ser nosso Senhor e Salvador, Deus com o Pai e com o Espírito-Santo, todo o que crê é batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mateus 28:19-20).
A divindade de Jesus no ensino das Escrituras é tão clara que Berkhof afirmou: “As provas são tão abundantes que todos os que aceitam a Bíblia como a infalível Palavra de Deus, não podem ter qualquer dúvida sobre esse ponto.”[4] Concluímos o mesmo que Atanásio: “Todas estas passagens condenam a heresia Ariana, provam a eternidade da Palavra e de que Ele não era estranho mas da mesma essência do Pai.”[5]
A afirmação da divindade do Senhor Jesus Cristo é essencial para a fé cristã, para a nossa salvação. Se Jesus fosse uma mera criatura, a sua natureza seria tão corrompida como a nossa (Romanos 5:12; 1 Coríntios 15:21-22) e nós não teríamos qualquer esperança de salvação. Se Jesus fosse um mero homem, ele jamais teria sido capaz de cumprir toda a Lei de Deus e a sua morte na cruz não teria qualquer valor salvífico. Só Deus, na pessoa do Senhor Jesus, é a nossa justiça e a nossa salvação. Antes de Cristo, houve muitos mediadores escolhidos por Deus, mas, apesar da fé e fidelidade que possuíam, nenhum deles foi capaz de salvar o povo dos seus pecados. Mas Jesus, porque ele é Deus desde a eternidade, pode fazer o que nenhum outro homem poderia alcançar.
Nas palavras de Atanásio: “E como, se a Palavra fosse uma criatura, poderia Ele ter poder para anular a sentença de Deus e de remir pecados, quando está escrito nos profetas que este é um dom de Deus? (…) ‘A não ser que o Filho nos liberte.’ E o Filho, que nos libertou, revelou em verdade que não é uma criatura, nem uma das coisas originadas, mas a própria Palavra e Imagem da Essência do Pai, o qual no princípio declarou a sentença e o único que pode remir pecados.”[6]
Esta é a maravilha e o escândalo do Advento. O próprio Deus, na pessoa do Filho, torna-se homem para salvar os homens. Conseguimos medir a dimensão desta verdade? Aquele que habita eternamente na luz inacessível (1 Timóteo 6:16) e de cuja glória os anjos cobrem a face (Isaías 6:2), torna-se homem, baixando, por um tempo, a uma condição inferior ao dos anjos (Hebreus 2:9). Como compreender esta verdade? O Filho, Deus eterno com o Pai e o Espirito-Santo, tornado inferior aos próprios anjos? É sobre isso, sobre a encarnação do Verbo e sua humanidade, é que falarei no próximo e último artigo desta série!
Soli Deo Gloria!
[1] Wayne A. Grudem, Systematic Theology: An Introduction to Biblical Doctrine (Leicester, England; Grand Rapids, MI: Inter-Varsity Press; Zondervan Pub. House, 2004), 529.
[2] Novatian, “A Treatise of Novatian Concerning the Trinity,” in Fathers of the Third Century: Hippolytus, Cyprian, Novatian, Appendix (ed. Alexander Roberts, James Donaldson, and A. Cleveland Coxe; trans. Robert Ernest Wallis; vol. 5; The Ante-Nicene Fathers; Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1886), 5621.
[3] Irenaeus of Lyons, “Irenæus against Heresies,” in The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus, ed. Alexander Roberts, James Donaldson, and A. Cleveland Coxe, vol. 1, The Ante-Nicene Fathers (Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1885), 448.
[4] L. Berkhof, Systematic Theology (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans publishing co., 1938), 316.
[5] Athanasius of Alexandria, “Four Discourses against the Arians,” in St. Athanasius: Select Works and Letters (ed. Philip Schaff and Henry Wace; trans. John Henry Newman and Archibald T. Robertson; vol. 4; A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series; New York: Christian Literature Company, 1892), 4365.
[6] Ibid., 4385.