A humanidade do bebê Jesus

Capítulo 4 da série Reflexões cristológicas de Natal

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Nota do Editor: Este é o último de quatro artigos da série Reflexões cristológicas de Natal, por Tiago Oliveira. Esta série faz parte do Especial de Natal 2024 do Voltemos ao Evangelho, onde estaremos postando, até o dia 25 de dezembro, conteúdos selecionados sobre o nascimento, pessoa e obra de Jesus Cristo, nosso Senhor.


No início da epístola aos Cristãos da Ásia Menor (Turquia nos dias de hoje), o apóstolo Pedro escreve que a salvação que foi revelada aos profetas do Velho Testamento e cumprida na pessoa de Jesus Cristo são “coisas para as quais os anjos desejam bem atentar” (1 Pedro 1.12). A imagem dada pelo apóstolo Pedro revela-nos os anjos nos céus a olharem para o que se passa na terra. Imagine-se, seres espirituais perfeitos debruçados nas regiões celestes com atenta curiosidade para aquilo que se passa na terra. Que ‘coisas’ são estas que despertam a curiosidade dos próprios anjos? O que pode levar estes seres celestiais perfeitos a atentar com admiração para o que se passa no planeta terra? Que outro interesse pode despertar a atenção de seres cuja função é o de servir e adorar o próprio Deus? Estas coisas que “os anjos desejam bem atentar” são o cumprimento das promessas de salvação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, em particular, diz-nos Pedro, “os sofrimentos que a Cristo haviam de vir e a glória que se lhes havia de seguir” (1Pedro 1:11), aos quais nos referimos como os estados de humilhação e exaltação do Messias.

Quando pensamos sobre os sofrimentos do nosso Senhor Jesus Cristo e a salvação que nos foi dada, é natural pensarmos sobre a sua morte e ressurreição. No entanto, não podemos esquecer que os estados de humilhação e exaltação de Cristo são mais abrangentes. Sendo aspectos centrais, o ministério do Senhor Jesus não pode ser reduzido à sua morte e ressurreição, sob pena de estes perderem o seu significado e efeito. Na epístola aos Filipenses, o apóstolo Paulo escreve que o estado de humilhação do Messias começou na encarnação, no momento em que “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Filipenses 2.7).

É na concepção e no seu nascimento que as boas-novas (o evangelho) prometidas ao longo de séculos e de várias maneiras aos profetas do Velho Testamento começam a ser cumpridas. Esta verdade é reconhecida por Isabel que, cheia do Espírito Santo reconhece que o bebê no ventre de Maria é seu Senhor (Lucas 1.43). São as boas-novas proclamadas aos pastores pelos anjos: “eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo (o Messias), o Senhor” (Lucas 2.10–11).

O próprio Deus desceu à terra na pessoa do Filho. O próprio Deus tornou-se homem para salvar os homens. Por isso, a nossa compreensão do significado da Páscoa começa com a compreensão do significado e necessidade da encarnação. Sem a encarnação não há Páscoa. É necessária uma real, total e perfeita encarnação do Deus-Filho para que a Páscoa tenha valor salvífico. E muitas vezes é esta encarnação que é posta como secundária pela própria igreja, como se fosse apenas um apêndice ou um preâmbulo histórico para aquilo que realmente interessa.

Em contraste, a afirmação da completa e perfeita humanidade de Jesus (a encarnação do Deus-Filho) é um assunto de tal importância que o apóstolo João afirma que “nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que está já no mundo” (1 João 4.2–3). João não pode ser mais explícito. Contra aqueles que negavam a encarnação do Senhor Jesus Cristo, João afirma que esses mesmos são contra Cristo. Não é possível negar a encarnação sem negar Jesus Cristo.

Por isso, a doutrina da encarnação não é apenas um apêndice na fé cristã. A celebração do Natal não é apenas uma ocasião para juntar a família à volta da mesa. A encarnação do Deus-Filho é tão central no plano de Deus que podemos afirmar que negar a encarnação é negar o próprio Evangelho. Se Jesus não encarnou, a nossa fé é vã, e nós ainda estamos mortos nos nossos pecados. Se a encarnação não foi real, total e perfeita, a Páscoa não tem valor salvífico.

O autor aos Hebreus é claro quando diz que “convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo. Porque, naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados.” (Hebreus 2.17–18). Por outras palavras, se Deus-Filho não encarnou de forma real, total e perfeita, então (1) ele não pode ser um misericordioso e fiel sumo sacerdote (não pode ser o nosso mediador); (2) ele não pode expiar os pecados do povo (logo, ainda estamos condenados em nossos pecados); e (3) ele não pode socorrer-nos nas nossas tentações. A Páscoa estaria esvaziada de conteúdo sem a encarnação.

No contexto evangélico[1], a encarnação do Deus-Filho parece ser um dado adquirido. No entanto, não devemos deduzir que a simples afirmação da encarnação do Senhor Jesus seja suficiente para um bom entendimento do que esta realmente significa. Na realidade, este não parece ser um assunto que tenha merecido a desejável atenção no nosso meio. Neste sentido, as palavras do apóstolo João devem ser um aviso para a igreja. A doutrina da encarnação, pela centralidade que ocupa nos planos de Deus e para a fé dos crentes, foi objeto de ataque desde os primórdios da igreja neotestamentária. De formas mais ou menos sutis, a doutrina da encarnação é negada ou deturpada ainda hoje no seio da igreja. Por isso, é essencial que a Igreja não negligencie o seu ensino de forma intencional, explícita, verdadeira e clara. Ou seja, porque a doutrina da encarnação é necessária, é essencial que se conheça o seu significado.

Encarnação não é uma palavra Bíblica, mas uma palavra derivada do latim que expressa a verdade bíblica que “o Verbo se fez carne” (João 1.14). O Verbo que estava com Deus e era ele mesmo Deus (João 1.1). O Verbo que criou todas as coisas (João 1.3) “ se fez carne,” ou seja, tornou-se um ser humano. Aquele que era Deus desde a eternidade “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Filipenses 2.7). Ao esvaziar-se, Deus-Filho não deixou de ser Deus. Diz-se que Deus-Filho se esvaziou por ‘adição’ não por ‘subtração’, ou seja, à sua natureza divina foi adicionada uma natureza humana. Desde o momento da encarnação, Deus-Filho é Deus e Homem para todo o sempre. Esta união entre a natureza divina e humana é para nós um mistério, no sentido em que a nossa mente não o consegue compreender. Mas, ao mesmo tempo, esta união entre a natureza divina e humana do Senhor Jesus foi-nos revelada e precisa de ser ensinada. Como a igreja tem afirmado ao longo da sua história e de acordo com o ensino das Escrituras, nós cremos em “um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação” (Credo de Calcedónia – A.D. 451)

Por outras palavras, precisamos afirmar e entender que Deus-Filho se tornou um ser humano como nós, exceto no pecado (Hebreus 4.15). Jesus não tinha apenas a aparência de homem. Ele não era parte homem e parte Deus (uma espécie de super-homem). Ele não tinha um corpo humano e uma mente divina. Ele tornou-se completa e perfeitamente homem, sem deixar de ser Deus.

Jesus foi e é perfeita e completamente homem desde o momento da concepção no ventre de Maria, sua mãe. Como Lutero afirmou: “Ele não pairava por aí como um espírito, mas habitou entre os homens. Ele tinha olhos, orelhas, boca, peito, estômago, mãos e pés, tal como eu e tu temos. Ele mamou. A sua mãe amamentou-o tal como qualquer outra criança é amamentada.”[2] Na imagem de intimidade entre uma mãe e o seu bebê, Lutero exprime bem, por um lado, a realidade da encarnação (o bebê Jesus era mesmo um bebê em tudo o que significa ser bebê!) e, por outro lado, a admiração pelo mistério incompreensível. É o próprio Deus na pessoa do bebê que Maria deu à luz. Deus humilhado, por sua própria vontade e para nossa salvação. Na sua natureza humana, o eterno se torna circunscrito no tempo. O onipresente circunscrito no espaço. O criador, criatura. O imortal, mortal. O impassível, passível. O autônomo, em total dependência. O todo poderoso em fraqueza.

Conseguimos medir a dimensão desta verdade? Aquele que habita eternamente na luz inacessível (1 Timóteo 6.16) e de cuja glória os anjos cobrem a face (Isaías 6.2), torna-se homem, baixando, por um tempo, a uma condição inferior ao dos anjos (Hebreus 2.9). Como compreender esta verdade? O Filho, Deus eterno com o Pai, tornado inferior aos próprios anjos? Nisto compreendemos a admiração e curiosidade dos próprios anjos face ao plano de salvação de Deus. Os anjos em santo deslumbramento face à multiforme sabedoria de Deus no seu plano para salvar a humanidade.

Conseguimos entender e juntarmo-nos ao espanto angelical pelo privilégio dado aos homens? Deus-Filho torna-se homem para salvar os homens. Este é um privilégio que não é concedido aos anjos! Esta é uma graça da qual os anjos não comungam. Deus não se fez anjo para salvar os anjos. Fez-se homem para salvar a humanidade.

Que neste Natal possamos celebrar a encarnação do nosso Senhor Jesus Cristo e juntar-nos ao espanto e adoração angelical. Que a encarnação do Senhor Jesus Cristo possa ser também algo para o qual queremos bem atentar. Que a celebração da encarnação nos ajude a compreender melhor o sacrifício do nosso Senhor Jesus Cristo. Que o conhecimento da real, total e perfeita encarnação do Deus-Filho nos prepare para celebrar a Páscoa. Porque “para que Jesus pudesse sofrer e morrer, ele tinha de planejar com antecedência porque, enquanto o logos (palavra/ verbo) que existia antes da criação, ele não podia morrer – era imortal. Ele não tinha um corpo. Ele não poderia morrer. E, ainda assim, ele queria morrer por ti. Então, ele planejou tudo ao revestir-se a si mesmo de um corpo para que pudesse ter fome, sentir-se cansado e ter pés doridos. A encarnação é a preparação das terminações nervosas para os pregos. Isto é o que a encarnação é. A encarnação é a preparação de uma cabeça para que os espinhos a pudessem perfurar. Ele precisava de costas largas para que houvesse lugar para as chicotadas. Ele precisava de pés para que houvesse lugar para se pregar os pregos. Ele precisava de um ‘lado’ para que houvesse lugar para a lança perfurar. Ele precisava de uma face para que Judas o pudesse beijar e para que houvesse lugar para que os cuspes dos soldados pudessem escorrer. Ele precisava de um cérebro e de uma medula espinhal, sem vinho misturado com fel, para que o requinte da dor infligida fosse completamente sentida.”[3]

Soli Deo Gloria!


[1] Original: nosso contexto denominacional

[2] Luther, Martin, and Jaroslav Pelikan. Luther’s works, vol. 22 (St. Louis, Miss: Concordia Pub. House, 1957), 113.

[3] https://www.desiringgod.org/interviews/why-jesus-needed-a-body. Traduzido e adaptado.


Autor: Tiago Oliveira. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.