Um blog do Ministério Fiel
O conhecimento de Jesus Cristo na História da Igreja
Capítulo 2 da série Reflexões cristológicas de Natal
Nota do Editor: Este é o segundo de quatro artigos da série Reflexões cristológicas de Natal, por Tiago Oliveira. Esta série faz parte do Especial de Natal 2024 do Voltemos ao Evangelho, onde estaremos postando, até o dia 25 de dezembro, conteúdos selecionados sobre o nascimento, pessoa e obra de Jesus Cristo, nosso Senhor.
No artigo anterior, partimos do pressuposto que embora sejam compostas por vários livros, escritos ao longo de cerca de quinze séculos, em várias formas literárias e por vários autores humanos, as Escrituras são a Palavra inspirada, infalível e inerrante de Deus. Ao mesmo tempo, concluímos que toda a Escritura é revelação de Deus em e através da pessoa do Senhor Jesus Cristo, primeiro prometido (Velho Testamento) e depois encarnado (Novo Testamento). A pessoa e obra de Jesus são centrais no ensino e pregação da Igreja que se chama pelo seu nome (cristã, ou seja, de Cristo). Mas, perguntamos, quantas vezes a pessoa do Senhor Jesus é colocada em segundo plano no ensino e na pregação das nossas igrejas? Quantos são os pastores (e crentes) que seguem o exemplo do apóstolo Paulo e fazem da proclamação da pessoa e obra do Senhor Jesus o centro da sua mensagem, ministério e vida (1 Coríntios 2.2)? Infelizmente, é mais comum ouvir discursos de auto-ajuda (auto-estima) ou lições morais com pretexto bíblico, do que pregações cristãs propriamente ditas. Por isso, é apropriada a acusação de que “a Igreja moderna está a criar pessoas apaixonadas com cabeças vazias. Pessoas que amam um Jesus que não conhecem muito bem.”[1]
Devido à sua centralidade na fé cristã, o desconhecimento ou introdução de falso ensino acerca da segunda pessoa da Trindade (o Filho) sempre foi um dos principais objetivos de Satanás. Como toda a fé e esperança estão centradas e dependentes da pessoa e obra do Senhor Jesus, o Inimigo procurou impedir que ele pudesse ser conhecido ou, caso não o consiga, procurar corromper o seu conhecimento. Desde cedo, a Igreja procurou defender a fé e combater as heresias acerca da pessoa do Filho. A diferença de uma correta e falsa Cristologia (ou seja, o conhecimento da pessoa de Jesus) não são assuntos secundários ou de pormenor. Como o apóstolo João escreveu: “nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que está já no mundo” (1João 4.2–3; cf. 5:1; 2John 7). Se, como João já tinha ensinado no seu relato do Evangelho, só é possível conhecer Deus através e na pessoa de Jesus (João 1:14; 14:6-11; cf. Hebreus 1:3) e se a vida eterna depende deste conhecimento (João 17:3); logo, se o nosso conhecimento de Jesus é defeituoso (falso), o nosso conhecimento de Deus também o é e, consequentemente, é a nossa própria salvação que está em causa. Por outras palavras, é necessário saber se o “Jesus” que dizemos colocar toda a nossa confiança (fé) é o Jesus que as Escrituras nos revelam.
No entanto, o conhecimento da pessoa do Filho é algo tão difícil quanto importante. De forma sucinta, a Igreja cristã afirma, de acordo com o ensino das Escrituras, que “Jesus Cristo foi completamente Deus e completamente Homem numa só pessoa, e assim o será eternamente.”[2] Na pessoa do Filho são unidas duas naturezas até então completamente separadas: a natureza divina e humana (chamada de união hipostática). Esta afirmação é um mistério para nós. Mistério, não no sentido de que está escondido. O nosso Senhor Jesus Cristo revelou-se a si mesmo. Ele deu-se a conhecer. É um mistério no sentido que está acima da nossa compreensão. Quem pode compreender uma pessoa que é simultânea, perfeita e completamente divina e humana?
Neste sentido, sabendo que o verdadeiro conhecimento da pessoa do Senhor Jesus é central na fé cristã e, ao mesmo tempo, muito acima da nossa compreensão, como pode, então, a Igreja conhecer e ensinar acerca da pessoa do Senhor Jesus Cristo? Seguindo o ensino revelado nas Escrituras que nos diz: “As coisas encobertas são para o Senhor, nosso Deus; porém as reveladas são para nós e para nossos filhos, para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei.” (Deuteronômio 29.29). Deste texto podemos deduzir dois princípios que nortearam a Igreja ao longo da história no conhecimento e ensino acerca da pessoa do Filho. Em primeiro lugar, a Igreja não pode especular sobre matérias que Deus não revelou na sua Palavra. Não queremos alimentar a nossa curiosidade nas coisas que Deus não revelou, sob pena de acrescentarmos algo à Palavra de Deus. Em segundo lugar, aquilo que Deus revelou é para ser conhecido, ensinado e aplicado à vida do cristão. Se, por um lado, não queremos especular, por outro lado, não queremos desprezar nada do que Deus nos revelou. Jesus ordenou aos seus discípulos que ensinassem todas as coisas que ele lhes tinha ordenado (Mateus 28.20). Se, por um lado, não queremos ir além das Palavras de Deus, por outro, também não queremos ficar aquém, sob pena de desobedecermos ao Senhor Jesus. Desta maneira, podemos e devemos afirmar tudo o que as Escrituras ensinam, sem reservas ou exceções. Em especial para aqueles que naturalmente não têm inclinação natural para o estudo, por vezes podemos considerar que é humilde afirmar que não vale a pena tentar entender algumas coisas mais difíceis. Mas, se Deus, na sua graça, se revelou a nós e se o nosso Senhor Jesus Cristo ordenou aos apóstolos (e, consequentemente, à sua igreja), dando-lhes a missão de ensinar todas as coisas que ele havia ordenado, quem somos nós para achar que só porque parte da Palavra de Deus é difícil de entender, nós não devemos procurar conhecer e afirmar?
Devemos, por isso, lembrar que a verdade revelada nas Escrituras não está dependente nem deixa de ser importante porque não a podemos compreender de forma completa. Por isso mesmo, ao ensinar acerca da pessoa do Senhor Jesus, a Igreja, desde cedo, procurou afirmar a verdade. Os chamados pais da Igreja procuraram ensinar o que a Escritura ensina, sem tentar humanamente explicar algo que é incompreensível. Por exemplo, embora a doutrina da Trindade seja incompreensível para nós (como seria possível humanamente compreender um Deus triúno?), ela é verdadeira e basilar na fé cristã. Afirmamos junto com a igreja nos primeiros séculos: “Creio em Deus- Pai todo poderoso, criador dos céus e da terra. Creio em Jesus Cristo seu único Filho… Creio no Espírito Santo.” A Igreja hoje deve seguir o exemplo da Igreja nos primeiros séculos: devemos estar preocupados em afirmar a verdade, mesmo que não a consigamos explicar ou compreender de forma completa. Não queremos resolver o mistério, mas afirmá-lo. É uma fé que procura compreender, mas não uma fé que está dependente de compreensão para acreditar e confiar. Acreditamos, não porque compreendemos, mas porque Deus o revelou. Na verdade, a tentativa de racionalizar a fé e de a querer fazer compreensível à nossa mente foi talvez o principal erro que deu origem ao falso ensino acerca da pessoa do Senhor Jesus logo nos primeiros séculos da Igreja.
Nesta matéria, é bom lembrarmos que a Igreja tem história. Em particular, nós, batistas, podemos ser acusados de ignorarmos a história. É bom lembrar que a doutrina da Sola Scriptura (só a Escritura) não implica ignorância histórica (antes pelo contrário). A história não é, para o crente, um apêndice dispensável na nossa fé. Sem história não existe fé, porque acreditamos na soberania e providência de Deus, ou seja, num Deus soberano sobre a história e que age na história. A própria doutrina da Sola Scriptura implica que Deus agiu na história da Igreja. A coleção de livros a que chamamos Novo Testamento não foi dada por direta revelação de Deus (não existe nenhum texto das Escrituras que inclua a lista do canon neo-testamentário), mas reconhecido pela Igreja na história debaixo da soberania de Deus. Ao mesmo tempo, a interpretação das Escrituras é feita no contexto da Igreja. Hoje em dia, muitos acreditam que podem estudar as Escrituras em isolamento (eu, a Bíblia e Deus). Mas, as Escrituras não são de particular interpretação (pois é revelação de Deus ao seu povo) e, por isso, não pode ser alienada da história da igreja. Hoje afirmamos o que a Igreja afirmou ao longo da história. Não queremos descobrir a verdade, mas afirmar a verdade pregada pelos nossos pais. Um dos princípios que os reformadores procuraram seguir foi voltar às fontes e à história da igreja (aos pais da Igreja). Uma das acusações feitas à Igreja católica pelos reformadores do século dezasseis foi a de que a Igreja se havia desviado do ensino das Escrituras e dos pais da Igreja.
Por isso, é importante conhecer a história da igreja. Em particular, no que diz respeito à pessoa do Senhor Jesus Cristo, aquilo que acreditamos hoje foi o principal assunto de debate no seio da Igreja nos primeiros séculos, ao ponto de que tudo o que a igreja afirma hoje foi discutido nos primeiros séculos. É admirável, tanto mais que a nossa fé assenta nesta doutrina fundamental, que não houve assunto mais discutido nos primeiros séculos da igreja neo-testamentária do que a doutrina da pessoa de Jesus Cristo (juntamente com a doutrina da Trindade). Os Credos da Igreja nos primeiros séculos são credos Trinitários / Cristológicos. Credos que a Igreja continua a afirmar hoje. É muito significativo que, no meio de tanta discussão teológica, a doutrina da pessoa de Jesus Cristo (nas suas afirmações principais) seja partilhada pela grande maioria das confissões e denominações cristãs. Diria mais: é sobrenatural que, no meio de tanta controvérsia teológica, a doutrina da pessoa de Jesus Cristo tenha alcançado tamanho consenso. E este consenso foi alcançado no meio de muita discussão e falso ensino nos primeiros séculos da igreja. É assinalável que todo o falso ensino acerca da pessoa do Senhor Jesus nos nossos dias pode ser associado a uma das heresias combatidas pela Igreja nos primeiros séculos.
O que é que a Igreja, então, ensinou, com base nas Escrituras, acerca da pessoa do Senhor Jesus? Podemos resumir o ensino da Igreja acerca da pessoa do Filho em seis afirmações principais:
- O Filho é uma só pessoa.
- O Filho tem duas naturezas: natureza divina e natureza humana.
- O Filho é completa e perfeitamente divino.
- O Filho é completa e perfeitamente humano.
- As duas naturezas do Filho não podem ser separadas.
- As duas naturezas do Filho não podem ser confundidas (devem ser distinguidas).
É sobre essas verdades (e sua base bíblica) que nos debruçaremos nos próximos artigos.
Soli Deo Gloria!
[1] Se bem me recordo, o autor desta citação é Voddie Bauckam. No entanto, não consegui encontrar a origem desta citação.
[2] Wayne A. Grudem, Systematic Theology: An Introduction to Biblical Doctrine (Leicester, England; Grand Rapids, MI: Inter-Varsity Press; Zondervan Pub. House, 2004), 529.