Como a Redenção de Cristo curou uma mulher abusada sexualmente pelo próprio pai

“Eu só queria que ele me levasse para tomar um sorvete na praça”

“O que a gente pode fazer para alguém amar a gente?” Depois de três tentativas, ela felizmente conseguiu verbalizar a dúvida que a deixava engasgada. Foi durante uma aula sobre abuso sexual, em mais uma das escolas que estava fazendo conosco. A pergunta me deixou em uma situação difícil, pois exigia muita informação para ser bem respondida. Então, percebendo que ela estava nitidamente muito nervosa, devolvi com outra pergunta: “Esse ‘a gente’ é você?”.

Costumo esperar que a pessoa se sinta à vontade para trazer algo mais pessoal, mas, nesse caso, foi diferente. Achei que deveria ganhar tempo, pois ela estava visivelmente angustiada e apertava uma mão contra a outra com força crescente, como quem busca forças ou alívio para a tensão. “Sou eu”, respondeu ela. Isso já me encorajou, pois, a partir dali eu poderia falar com ela na segunda pessoa — e não na terceira. No aconselhamento, é melhor falar com “você” do que com “alguém”. Eu já a conhecia de outras escolas nossas, mas nunca havia tido a oportunidade de aconselhá-la. Ela era muito reservada e tinha dificuldade em interagir. Ainda assim, demonstrava muita sinceridade com a missionária da nossa equipe, que a acompanhava mais de perto. Sabíamos que parte de sua vida tinha sido nas ruas, e que a sobrevivência nesse contexto costuma ter um custo alto, diante das privações e vulnerabilidades envolvidas.

Quando disse que era sobre ela, a pergunta ficou mais compreensível: “Como faço para alguém me amar?”. Mesmo assim, ainda era difícil responder. Fui tateando até que ela se sentiu segura para reconhecer: “Como faço para meu pai me amar?”. Presenciei inúmeras vezes o poder de nos ouvirmos falar aquilo que fervilha dentro de nós. Com ela, não foi diferente: ao se escutar, desmoronou. Ficou difícil até para compreender o que dizia, tamanha era a emoção atropelando os pensamentos, enquanto o corpo tentava dar conta de tudo. Fomos avançando até o momento em que ela explicou o estopim que culminou na pergunta: “Meu pai me ligou. Fiquei tão feliz porque, apesar dos pesares, pensei que ele estivesse com saudade de mim, já que o Natal está chegando. Mas ele me ligou e disse: ‘Estou com saudade de você… como mulher!’”. Essa jovem tinha pai, mãe e muitos irmãos. Dos 5 aos 17 anos, foi abusada frequentemente pelo pai e por outros familiares. A rua se apresentou como um refúgio logo que o pai abusou dela. Quando perguntei se na rua também era abusada, ela respondeu: “Os da rua também entram na conta?! Se entrarem, fui também.

Achei que não entrassem, porque na rua é assim…”.

Ela era uma criança de cinco anos abrindo a porta de casa para fugir de um “pai” que agia como predador. Pergunto a mim mesma como isso chega ao coração de Deus, ver uma criança vagando pelas ruas de uma cidade como se fosse um barco sem rumo navegando por um oceano desconhecido e cheio de tubarões.

Aprendi uma coisa ouvindo pessoas: os tubarões estão até onde menos imaginamos. A vida dupla está instalada nos corações dos mais variados tipos de pessoas, inclusive daquelas que têm a responsabilidade de zelar por outras, e não tirar proveito delas. No caso dela, foi abusada por familiares e por líderes religiosos — gente ímpia e gente que se dizia cristã.

Por isso, há muitos anos insisto em difundir a necessidade de que famílias, igrejas e escolas tenham uma política interna de proteção contra maus-tratos a crianças e adolescentes. A proteção de meninos e meninas é uma obrigação de todos nós, independentemente da fé. E, aos que têm fé, mais ainda — pois somos o povo que sabe que todo ser humano carrega a imagem de Deus e o quanto os pequeninos são importantes para Jesus. O texto de Mateus 18.5-6 alerta: “Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo. Mas, se alguém fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar”. A investida do diabo contra crianças e adolescentes é perversamente estratégica. Pela pouca idade e maturidade, são como um barro mole e, se tocados indevidamente desde cedo, petrificam. Uma vez petrificados, como glorificarão a Deus? Eles o odiarão, por causa do mal que vivenciaram. Foi o caso dela, que, ao ser perguntada sobre quem era Deus para ela enquanto estava com a família ou na rua, respondeu: “Na minha cabeça, ele era um pai abusador que também abusava de mulheres. Eu achava que as mulheres da Bíblia eram vítimas dele. Achei que ele queria que os homens abusassem de mim”.

Quando o pai ligou dizendo o que disse, a fala dele a desestabilizou. Pelo formulário, dizia-se cristã e tinha uma carta de recomendação pastoral. No entanto, eventualmente recebemos alunos que cresceram na igreja, mas não necessariamente nasceram do Espírito (Jo 3.5-7). No caso dela, notamos que ainda estava se aproximando do Evangelho. Ela carregava no coração os piores pensamentos a respeito de Deus. Além de um coração caído e em oposição a Deus, ela teve o agravante de uma vida marcada por maus-tratos de toda espécie. Viveu uma vida em que erraram muito com ela, mas, independentemente disso, também viveu de tal forma que cometeu muitos erros. E, justamente quando estava tentando acertar o rumo, o pai ligou — depois de anos sem contato. No início da ligação, ela achou que fosse uma tentativa de reparação e reconciliação, mas não: era mais um assédio.

Tive de lhe perguntar sobre como foi para ela ouvir aquilo. Ela desabou em choro. O corpo foi tencionando, e a dor emergiu do seu interior de forma visceral. Aproximei-me dela, pois parecia em desespero e desamparo. Ela foi falando o que conseguia em meio a tantas lembranças e confusões do tipo: “Por que Deus deixou acontecer? Por que não posso ter um pai que me ama? Por que ele só me vê como mulher? Por que não me vê como filha? Eu odeio Deus”.

Cheguei mais perto e perguntei se ela não gostaria de falar com Deus. Disse-lhe que ele estava ali, que a ouviria e que ela podia confiar. Ela pediu minha ajuda, pois estava apavorada com a ideia de falar com o “Deus mau”. Então, literalmente, estendi minha mão a ela. E, à medida que começou a falar com Deus, o pus da alma ferida veio à tona. Ela urrava de dor e revolta, mas não parava de orar. Quanto mais clamava, mais me puxava, até que me ajoelhei ao seu lado. Com uma das mãos, ela me segurava; com a outra, orava com tanta fúria e sofrimento que socava minha coxa. Se me perguntarem se é necessário levar murros de uma aconselhada durante uma oração, direi que não. Mas reconheço que, naquele momento, não fui sábia nem ágil o suficiente para reagir de outra forma.

O que me alegrou o coração foi que ela falou com Deus sobre tudo o que a envenenava e, ao final, para sua surpresa, teve uma paz inexplicável. Ela nunca tinha sentido nada igual. Porém, uma fala dela durante a oração me intrigou. Ela havia perguntado a Deus o que custava a ele dar-lhe um pai para ter a chance de realizar seu sonho desde pequena. Perguntei-lhe qual era esse sonho e, para minha surpresa, ela respondeu: “Eu só queria que ele me levasse para tomar sorvete na praça!” (Só de escrever, me emociono de novo…). Quando ouvi essas palavras, perguntei-lhe: “Você está nos dizendo que, quando seu pai ligou, você tinha a expectativa de que fosse para ele fazer o que nunca fez e que era seu sonho que levasse você para tomar um sorvete na praça? É isso?”. Ela respondeu que sim. Foi difícil, mas tive de alertá-la: “Você sabe que seu pai não tem a menor condição de fazer isso, não sabe? Você entendeu que o coração dele está em pecado e que é um homem perigoso pelo tanto de crime que cometeu contra você, não sabe?”. Mais uma vez, ela disse que sim. Mas, então, me ocorreu algo… “Seu pai não vai levar você, mas, se Deus quiser levar, você iria ou continuaria ressentida com ele? Deus é Espírito, mas, se quiser levar você por intermédio dos seus irmãos e irmãs? Você aceitaria?” Lembro que ela ficou atordoada, olhando para mim, e me perguntou: “Você está perguntando sério?! Claro que eu iria!”.

Então, pela primeira vez em plena Escola de Sexualidade, virei para a turma, que assistira a tudo, o tempo todo em oração, e fiz um convite: “Irmãos, vamos representar Jesus e levar nossa irmã, uma filha de Deus, para tomar sorvete na praça?”. Foi lindo ouvir, de forma unânime: “Sim!”.

Em minutos, uma avalanche de alunos e obreiros descia a rua Wilson Freitas abaixo, rumo à praça, para levarmos Jesus para tomar sorvete com uma ovelha que estava desgarrada, mas que fora encontrada pelo Bom Pastor. Naquele dia, ela nasceu de novo. Deus é bom! Celebre a conquista de Jesus na cruz e em sua ressurreição, mas faça isso sem jamais subestimar o estrago que a Queda causou em nós, humanos. O pecado foi a maior de todas as tragédias, pois nos separou de Deus — e, sem Deus, estamos entregues a nós mesmos. O mundo inteiro foi afetado pela entrada do pecado, e a presença do mal ainda é algo que exige nossa vigilância. O texto de 1 João 5.19 afirma: “Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno”.

Ainda que sejamos de Deus, se verdadeiramente reconhecemos Jesus como nosso Redentor, precisamos ser suficientemente humildes para examinar nosso coração com diligência. O texto de Salmos 139.23-24 (NVI) nos orienta: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece as minhas inquietações. Vê se no meu caminho algo te ofende e dirige-me pelo caminho eterno”. Jamais podemos permitir que cesse a disposição de submeter nosso coração ao crivo das Escrituras. Assim como, em hipótese alguma, devemos perder o foco naquele que é a nossa referência: Jesus. Que aprendamos com a determinação de Paulo: “Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3.13-14).

Sem exceção, seremos tentados a olhar para trás e acreditar que nossa história é o ponto focal da nossa existência. Se cairmos nessa cilada, o próximo equívoco será ancorar nosso olhar para dentro de nós, a fim de identificarmos quais são nossos mais profundos anseios a serem saciados para que sejamos felizes. Se mordermos mais essa isca, estaremos em uma rota autocentrada — que pode, sim, ser marcada pela busca por coisas boas. Mas a pergunta é: “boas” segundo a opinião (e para a glória) de quem?

Desse modo, que aprendamos com aquele que concedeu a si todos os desejos, mas que, ao final, chegou à seguinte conclusão: “De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ec 12.13-14). Diante de Deus, não há vida dupla.

 

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Vida dupla: descendo aos porões da intimidade sexual, de Andréa Vargas, Editora Fiel (em breve)

Por: Andréa Vargas © Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Traduzido com permissão. Revisão e edição por Renata Gandolfo.