O “livre- arbítrio” nada é senão um escravo do pecado, da morte e de Satanás

A graça é gratuitamente ofertada a quem não a merece, nem é digno; não é conquistada por qualquer esforço que o melhor e mais justo dentre os homens tenha tentado empreender. – Martinho Lutero

Como dissemos na postagem anterior, começamos um novo tipo de postagem no Voltemos ao Evangelho: Voltemos aos Clássicos, onde iremos ler e discutir juntos um livro que seja um clássico da literatura cristã. Para esta discussão era preciso ler até a página 41 do livro Nascido Escravo.

Próxima Semana:

Nascido Escravo, capítulo 2

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Esclarecimento Iniciais

Antes de começarmos, é bom esclarecermos algumas coisas. Em todo debate sobre “livre-arbítrio” a primeira coisa que você deve fazer é perguntar “qual sua definição de livre-arbítrio?”, afinal não podemos esquecer que até a definição do tal arbítrio é livre. Piadas nerds-reformadas à parte, é bom deixar claro, pois algumas pessoas quando ouvem que o homem não tem “livre-arbítrio” logo pensam que se fala que o homem não tem vontade, que é um robô. O debate aqui não é se o homem tem uma vontade ou não. Lógico que tem! E essa vontade não é coagida. O que alguns chamam de livre-agência para não confundir. Veja Calvino usar o termo “livre-arbítrio” nesse último sentido: “Desse modo, pois, dir-se-á que o homem é dotado de livre-arbítrio: não porque tenha livre escolha do bem e do mal, igualmente; ao contrário, porque age mal por vontade, não por efeito de  coação.”

Então, a questão é se a vontade do homem é livre para… Para o quê? Quando entramos nessa pergunta, em minha opinião, o debate sobre livre-arbítrio pode ocorrer em duas esferas e, apesar de conectadas, haverá maior progresso se nos restringirmos a uma. As esferas são: salvação e providência. Quando pensamos em providência, estamos lidando com questões como determinismo, compatibilismo ou libertarismo ou seja qual a relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana (se você quer estudar isso, compre uma boa teologia sistemática; na verdade, compre várias).

Mas não é isso que Lutero está debatendo. A questão maior do livro é sobre o papel da vontade na salvação. Ou seja, o homem pode igualmente inclinar sua vontade para o bem ou para o mal? Para o pecado ou para Deus? O homem pode buscar a Deus à partir de sua própria vontade natural? O homem tem uma capacidade própria, ainda que pequena, de voltar-se para Deus (pág. 22)?

Robert C. Walton, em História da Igreja em quadros (citado por Franklin Ferreira em A Igreja Cristã na História), mostra quatro posições que fluíram do debate de Pelágio com Agostinho (veja RC Sproul explicar este debate aqui e aqui) sobre esse assunto:

  1. Pelagianismo: o homem nasce essencialmente bom e é capaz de fazer o necessário para a salvação
  2. Agostinianismo: o homem está morto no pecado; a salvação é totalmente pela graça de Deus, que é dada apenas aos eleitos;
  3. Semipelagianismo: A graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na salvação, na qual o homem deve tomar a iniciativa;
  4. Semiagostianianismo: A graça de Deus estende-se a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação.

Lutero estava defendendo a posição agostiniana e Erasmo, segundo o que Lutero aponta, parece flutuar entre as outras opções, principalmente o pelagianismo e semipelagianismo.

Uma observação final, apesar de ter implicações no debate entre calvinismo e arminianismo, este debate só aconteceu quase 100 anos depois do debate entre Lutero e Erasmo.

Um resumo: O “livre- arbítrio” nada é senão um escravo do pecado, da morte e de Satanás

Após essa longa introdução, vamos a um resumo do primeiro capítulo. Para Lutero, “as Escrituras são como diversos exércitos que se opõem à idéia de que o homem tem um ‘livre-arbítrio’ para escolher e receber a salvação. Porém, basta-me trazer à frente de batalha dois generais — Paulo e João, com algumas de suas forças” (18); e é isso que ele faz. Ele mostra, em 19 argumentos, como Romanos (em especial, os capítulos 1 a 3 e 8) e o Evangelho segundo João (em especial, os capítulos 1, 3, 6 e 16) destroem a ideia do “livre-arbítrio”. Em minha opinião, o principal argumento é que o “livre-arbítrio” só condena o homem.

Lutero argumenta que se é fato que o homem pode inclinar sua vontade tanto para o pecado e se perder, quanto para Deus e ser salvo, então o tal arbítrio não tem feito um bom trabalho, pois Romanos 1.18 diz que a ira de Deus se revela contra toda perversão de todos os homens. “Se existe realmente o “livre-arbítrio”, ele não parece ser capaz de ajudar os homens a atingirem a salvação, porquanto os deixa sob a ira de Deus” (19). Sim, o homem tem uma vontade, mas essa vontade está loucamente apaixonada pelas trevas (Jo 3.19). O homem natural não busca a Deus e não entende as coisas de Deus (Rm 3.11; 1 Co 2.14). Como Paulo diz claramente em Romanos 8.5-7 (NVI): “Quem vive segundo a carne tem a mente voltada para o que a carne deseja; mas quem, de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para o que o Espírito deseja. A mentalidade da carne é morte, mas a mentalidade do Espírito é vida e paz; a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à lei de Deus, nem pode fazê-lo.” Ou seja, em si mesmo, o homem, que é carnal, tem uma mente voltada contra Deus e não pode se submeter à lei de Deus (leia a parte em negrito novamente). Só pela ação do Espírito é que o homem se volta para Deus.

Além de “impotente, pois não consegue justificar ninguém diante de Deus” (25), o “livre-arbítrio” é ignorante e “cego, pois precisa ser ensinado através da lei” (25). O homem precisa ser ensinado pela lei o que é pecado e a sua necessidade de Cristo (Rm 7.7). Como afirmei acima, o homem carnal não consegue entender as coisas de Deus (Rm 3.11; 1 Co 2.14).

Por fim, nem vir a Cristo esse tal arbítrio consegue! Lutero diz:

Na passagem de João 6.44, Jesus Cristo diz: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer”. Isto não deixa qualquer espaço para o “livre-arbítrio”. E o Senhor Jesus passou a explicar como alguém é trazido pelo Pai: “Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim” (v. 45). A vontade humana, por si mesma, é incapaz de fazer qualquer coisa para vir a Cristo em busca de salvação. A própria mensagem do evangelho é ouvida em vão, a menos que o próprio Pai fale ao coração e traga a pessoa a Cristo. (37)

Obrigado por nada, “livre-arbítrio”!

Mas se Deus deu a Lei, o homem pode cumpri-la!

Um argumento típico em favor do “livre-arbítrio” é: “mas se o homem não tem capacidade de cumprir a lei de Deus, por que ele a deu? Se Deus fala para você obedecer, então você tem uma capacidade natural, em você mesmo, para obedecer!” (uma visão bem pelagiana – herética, diga-se de passagem) Lutero responde com maestria esse argumento: ignorância do propósito da Lei!

O argumento a favor do “livre-arbítrio” é que a lei não nos teria sido dada se não fôssemos capazes de obedecê-la. Erasmo, por repetidas vezes você tem dito: “Se nada podemos fazer, qual é o propósito das leis, dos preceitos, das ameaças e das promessas?” A resposta é que a lei não foi dada para mostrar-nos o que podemos fazer. Nem mesmo a fim de ajudar-nos a fazer o que é correto. Paulo diz em Romanos 3.20: “…pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”. O propósito da lei foi o de mostrar-nos no que consiste o pecado e ao que ele nos conduz — à morte, ao inferno e à ira de Deus. A lei só pode destacar essas coisas. Não pode livrar-nos delas. O livramento nos chega exclusivamente através de Cristo Jesus, que nos é revelado através do evangelho. (25)

Virando a mesa na questão do “acepção de pessoas”

Quando alguém afirma que Deus concede graça salvadora somente para os eleitos, alguém rapidamente diz que “Deus não faz acepção de pessoas” (tirando o texto fora do contexto, claro). Mas o interessante é que Lutero vira a mesa e diz (pág 28) que são aqueles que afirmam que Deus concede graça salvadora somente àqueles que pelo “livre-arbítrio” o escolhem é que caem nessa acusação, afinal Deus escolheu aqueles que o escolheram, ele fez acepção entre aqueles que usaram bem a sua vontade e aqueles que não.

Contudo, acho que Lutero também acabou tirando o texto fora do contexto. Em Atos 10.34, a questão é que Deus não faz acepção entre judeus e gentios, mas recebe pessoas que temem seu nome de qualquer nacionalidade. Em Romanos 2.11, a questão é que Deus irá julgar tanto judeus, quanto gentios, sem ser parcial com os judeus por serem o povo de Deus. Em Efésios 6.9, a questão é fazer acepção de “classe social”, escravos e senhores de escravos. Em 1 Pedro 1.17, é sobre Deus julgar a obra de todos sem parcialidade. Então, por favor, leia o contexto antes de levantar a bandeira “acepção de pessoas”.

Um conforto para a alma

Por fim, entender que nossa salvação não depende em última instância da nossa vontade, mas da graça de Deus é um conforto para a alma. Você sinceramente confia tanto na sua vontade que acha que pode se manter como cristão pelo resto da sua vida? Mas se você está confiando em si mesmo, você não está confiando em Deus! e isso é idolatria! Veja o que Lutero diz:

Confesso que eu não gostaria de possuir “livre-arbítrio” ainda que o mesmo me fosse concedido! Se a minha salvação fosse deixada ao meu encargo, eu não conseguiria enfrentar vitoriosamente todos os perigos, dificuldades e demônios contra os quais teria de lutar. Porém, mesmo que não houvesse inimigos a combater, eu jamais poderia ter a certeza do sucesso. Eu jamais poderia ter a certeza de haver agradado a Deus, ou se haveria ainda mais alguma coisa que precisaria fazer. Posso provar isso mediante a minha própria dolorosa experiência de muitos anos. Porém, a minha salvação está nas mãos de Deus, não nas minhas. Ele será fiel à sua promessa de salvar-me, não com base no que eu faço, mas em conformidade com a sua grande misericórdia. Deus não mente, e não permitirá que o meu adversário, o diabo, me arranque de suas mãos. Por meio do “livre-arbítrio”, ninguém poderá ser salvo. Mas, por meio da “livre graça”, muitos serão salvos. E não somente isso, mas também alegro-me por saber que, como um cristão, agrado a Deus, não por causa daquilo que faço, mas por causa de sua graça. Se trabalho muito pouco ou errado demais, Ele, graciosamente, me perdoará e me fará melhorar. Essa é a glória de todo cristão. (39-40)

Sua vez!

1) Por que você irá para o céu e aquele incrédulo não? Por que você escolheu a Jesus e ele não ou por que Deus lhe deu graça para receber a Cristo?

2) Como você resumiria os argumentos de Lutero?

3) Qual argumento chamou mais a sua atenção?

4) Discordou de algo?

5) Alguma dúvida?