Um blog do Ministério Fiel
Fim de caso – Romances seculares que recomendamos [3]
Meu primeiro contato com Fim de caso, de Graham Greene, foi quando fiz uma análise crítica da adaptação cinematográfica de Neil Jordan, com Ralph Fiennes e Juliane Moore, para o meu jornal da faculdade. Odiei isso. Havia um espírito de algo intrigante ali sobre fé e descrença, mas a coisa toda parecia atenuada, obscura, maculada com o romantismo sentimentalista característico dos filmes de época de Hollywood. Mais tarde, contudo, alguém me convenceu a ir à fonte primária, e descobri, na obra de Greene – o quarto de seus romances mais explicitamente cristãos –, aquilo que as telas do cinema não poderiam reproduzir: as complexidades muitas vezes ensandecedoras da fé e da descrença, e a linha tênue entre a fúria contra Deus e o temor a ele.
“Uma estória não possui começo nem fim” – assim começa a narrativa de Greene. Há algo mais que não possui começo nem fim – ou Alguém mais, melhor dizendo, e sua sombra afeta cada página do romance, que narra o caso extraconjugal entre o escritor Maurice Bendrix e Sarah Miles, a esposa de um oficial britânico.
O romance ilícito parece bastante rotineiro: o típico artista apaixonado corteja a esposa entediada de um homem entediante. Mas durante um de seus encontros, uma bomba que estoura durante o ataque alemão a Londres destrói o quarto onde eles estavam, quase matando Bendrix. Após esse evento traumático, o romance misteriosamente azeda, e Bendrix cai numa espiral descendente de ciúme e luxúria.
Ele acredita que está sendo trocado por um novo amante; então, contrata um detetive particular, que acaba confirmando suas suspeitas. Mas o novo amante de Sarah revela-se ser a fonte de todo amor. Na ocasião em que Bendrix quase morreu, ela orou para que Deus o protegesse e comprometeu-se com Deus que, caso a vida de seu amante fosse poupada, ela não o veria mais. Por mais difícil que fosse desistir de seu namorico proibido, a alternativa era mais dolorosa. Ela temia não primariamente pelo corpo, mas pela alma. E aqui descobrimos algo um tanto estranho e um tanto singular em meio à vasta exploração literária do pecado sexual. Num contexto em que tantas obras fictícias tratam o adultério como “natural”, totalmente legitimado pela classificação de “Romance”, o grande justificador teórico de todas as coisas, eis um livrinho onde a mulher ama seu amante ao não “amá-lo”.
Isto, naturalmente, enfurece o mundano Bendrix, que passa a ver a religião como outro marido entediante refreando toda a sua fúria romântica, frustrando a expressão artística de seus próprios apetites. E quando, mais adiante, Sara contrai tuberculose e morre, ele vê o Deus dela não apenas como um intruso, mas como um vilão.
É aqui onde a narrativa se intensifica. Em sua abstinência, em seu rompimento doloroso, e agora em sua morte cruel, Sarah ensinou Bendrix mais sobre o amor do que ela jamais poderia ter feito na paixão imoral de seu passado juntos. E Bendrix agora se vê obrigado, pela primeira vez, a ajustar as contas com o grande Inimigo de seus apetites carnais, o grande Autor desimpedido que tão injustamente havia apagado a sua história.
Isso me lembrou uma fala de C. S. Lewis sobre seu ateísmo juvenil: “Eu não acreditava que Deus existia”, ele disse, “e ficava muito furioso com ele por ele não existir”. De fato, no final, à medida que brande o punho cerrado contra o Deus de Sarah, rejeitando o objeto de suas orações a seu favor, proclamando propositadamente inclusive o seu ódio por Deus (“Eu queria passar o resto da minha vida com Sarah e Você a levou embora. Com essas Suas formidáveis maquinações, você destrói a nossa felicidade como um trator agrícola destrói a toca de um rato: Eu te odeio, Deus! Te odeio como se você existisse”), achamos que ele protesta demais. Ele sequer percebe que está orando.
Não, ficar furioso com Deus não é correto nem justificável. Mas é um começo. Quando a narrativa de Fim de caso acaba, a luta jacobeana[1] de Bendrix está apenas começando. Estamos certos de que, considerando as últimas linhas do romance, brilhando com uma fatia de esperança, como uma luz através de uma porta rachada (“Eu disse a Sara: ‘OK, faça como quiser. Eu acredito que você vive e Ele existe’”), Bendrix não sairá dessa luta da mesma forma que entrou. O leitor termina, na verdade, com a grande expectativa de que o ódio possa ter uma vantagem peculiar sobre a indecisão na medida em que é, pelo menos, uma espécie de cuidado, uma paixão que está apenas aguardando o redirecionamento do evangelho transformador.
[1] Uma referência à luta de Jacó com Deus, relatada em Gênesis 32. [Nota do Tradutor]