Um blog do Ministério Fiel
O debate entre Guilherme Farel e Guy Fuerbity (Parte 1/2)
Nota de tradução e edição: O debate a seguir é um breve excerto e edição da obra de Melchior Kirchhofer, “A Vida de Guilherme Farel, o Reformador Suíço”, modernizada e disponibilizada em inglês pelo excelente William H. Gross, editor do precioso website OnTheWing.org. A edição fez-se necessária a fim de tornar a leitura mais agradável e compreensiva aos leitores de fala portuguesa. Para ter acesso a essa obra na íntegra clique aqui.
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Em meados de 1533 toda a cidade de Genebra estava dividida em partidos religiosos e políticos. Os inimigos da Reforma alegavam que as suas doutrinas eram novas e destrutivas do antigo edifício que tantos eruditos, ordens religiosas e universidades ergueram. “Visto que essas doutrinas”, disseram eles, “foram anunciadas (sem qualquer prova de que os divulgadores delas são enviados de Deus), a guerra, a peste, a fome, a discórdia, o ódio e a animosidade prevaleceram; enquanto anteriormente eram apreciadas a paz e a prosperidade, e tudo o que poderia ser desejado. Os pregadores, e não nós, são os falsos profetas que nos trouxeram tais desgraças”.
Os sacerdotes fizeram as pessoas supersticiosas acreditarem que Guilherme Farel e Pierre Viret, seu companheiro, alimentavam demônios em forma de gatos pretos; que diabos ficavam pendurados na barba de Farel; que ele não tinha o branco dos olhos; e outras coisas igualmente aterrorizantes. Eles tentavam apoiar a sua causa por meio da pregação. E com esse propósito, mandaram chamar Guy Fuerbity, um dominicano e doutor de Sorbone. Ele foi nomeado para pregar em certa ocasião, não na igreja de sua própria ordem, como de costume, mas na catedral, para a qual ele foi conduzido em grande pompa e com uma escolta armada. Ele escolheu para o seu assunto os soldados dividindo as vestes de nosso Senhor entre si, o que aplicou aos antigos e modernos hereges que dividiram a igreja: Arianos, Sabelianos, Valdenses, Luteranos e Alemães. Sua audiência era grande, principalmente de mulheres. Ele atacou com grande veemência os violadores dos dias de jejum, os que liam as Sagradas Escrituras, os desprezadores do Papa e de seus protetores, e os chamou de “cães loucos, hereges, judeus, muçulmanos”, etc. Ele exaltou a si mesmo e aos seus irmãos sacerdotes acima da virgem Maria, porque, como ele afirmava, poderiam trazer Cristo do céu e transmutar uma hóstia em um Deus.
Dois pregadores reformados, Antoine Froment e Alexander Camus (chamado du Montin) estavam na igreja. Depois que o sermão terminou, eles se ofereceram para provar a falácia do que fora dito, a partir das Sagradas Escrituras. Isso provocou um grande alvoroço e um clamor geral foi erguido: “Levem-os para o fogo!”. Du Montin foi preso e condenado ao banimento perpétuo sob pena de morte. Froment escondeu-se e inutilmente foi procurado de casa em casa.
Tais informações chegaram rapidamente aos ouvidos do senado, que se considerou ofendido pelas características que Fuerbity havia aplicado em seu sermão aos simpatizantes da Reforma, enviaram dois de seus membros mais respeitáveis, Hans Francis Nageli e Ausburger, para exigir a prisão do monge, e que ele devia responder diante dos enviados pelo que havia dito. Confiando na proteção dos deputados, Farel, Viret e Froment voltaram a aparecer em Genebra. Farel chegou no sábado anterior ao dia de Natal.
Quando o conselho foi composto, como Fuerbity se viu sem apoio, imediatamente se submeteu e expressou sua vontade de responder às proposições que seriam colocadas diante dele com o melhor de sua capacidade. Algumas delas ele negou positivamente; outras ele objetou como não sendo relatadas com precisão, ou justificou-se apelando para o modo usual de pregação na França; e ele declarou que se dirigiu ao povo de Genebra em tais termos apenas para seu bem. Hans Francis Nageli e Ausburger insistiram em que ele lhes havia feito uma grande injustiça e lhe pediram mais uma vez para fundamentar as suas afirmações. Depois de ser pressionado para provar suas opiniões com referência às Escrituras, Farel imediatamente disse: “Eu agradeço a Deus que colocou essa resolução em vosso coração; e peço que ele debata conosco em toda mansidão e amor, para que não tenhamos mais nada além da glória de Deus e da edificação do nosso próximo”. “A vitória mais gloriosa”, acrescentou, “é a que se ganha pela verdade, e de bom grado sacrificaria minha vida para assegurar a sua aceitação universal”.
A disputa começou na quinta-feira 29 de janeiro e foi realizada com a participação de muitas autoridades e de vários doutores. Primeiramente, Fuerbity apresentou a proposição de que os prelados e pastores da igreja têm o direito de promulgar leis e ordenanças além daquelas contidas nas Escrituras, e que elas não podem ser violadas sem pecado mortal. Ele tentou provar isso a partir de Deuteronômio 17.8-12. Mas Farel tomou esta e outras passagens, e mostrou que Moisés havia proibido adições às suas leis. Disso inferiu que seria ainda mais pecaminoso tomar tal liberdade com o evangelho, que é a revelação final da verdade divina.
Fuerbity afirmou que o sacerdócio levítico era um tipo do Papa. Farel fez referência a Jesus, o grande Sumo Sacerdote que, por sua própria oferta, havia abolido todos os serviços sacrificais e sacerdotais, e chamava todos a irem ao Pai por meio dele. Isso não satisfez o monge. Ele sustentou que a igreja deve ter uma cabeça suprema, já que até o próprio Cristo ordenou ao povo que obedecesse aos escribas e fariseus que estavam assentados na cadeira de Moisés; e Paulo recomendou obediência aos mestres, e que as tradições dos antigos deviam ser mantidas. Logo, ele concluiu que os decretos do Papa eram obrigatórios. Farel admitiu que a igreja tinha uma cabeça — não o Papa, mas Jesus — o supremo Senhor e Cabeça, de quem toda a salvação flui para a igreja; e fez a observação que Jesus recomendou que o povo seguisse os escribas somente quando ensinassem o que Moisés havia ordenado; pois de outro modo, ocupariam o lugar falsamente. Da mesma maneira, somente deveriam ser ouvidos em tempos posteriores aqueles que pregam a pura doutrina de Jesus; o ensino de todos os demais deve ser evitado tanto quanto o fermento dos fariseus. Os decretos dos apóstolos em Jerusalém não procederam de si mesmos, mas de Jesus, de acordo com as suas instruções e a orientação do seu Espírito.
Fuerbity então perguntou em que parte dos evangelhos foi afirmado que Jesus tinha proibido comer sangue ou carne estrangulada ou o que tinha sido oferecido aos ídolos? Essas, afirmou, eram ordenanças dos pais, mantidas sob a autoridade de Pedro, a quem Jesus declarara ser o cabeça da igreja, e posteriormente estabelecido pela autoridade do papa e dos concílios. Farel respondeu que essas proibições eram feitas de acordo com o mandamento de Jesus, de modo que não ofendêssemos nosso irmão; e o próprio Pedro falara contra a imposição de novos e insuportáveis fardos aos cristãos. Ele explicou ainda mais o que Jesus quis dizer com as chaves do reino dos céus, ou seja, o evangelho, ou palavra de Deus, que possuem todos os que pregam a palavra de Deus em sua pureza. Portanto, nada em favor da supremacia do Papa é encontrado nas Escrituras. Nenhum homem, por mais santo que seja, deve ser ouvido, exceto quando prega o que está de acordo a verdade divina. Se ele ensinar imaginações, como os falsos profetas, ninguém deve ouvi-lo, pois ele não é enviado de Deus.
Para sustentar a autoridade da tradição, Fuerbity deu exemplo da mudança do sábado que foi transferido para o domingo em celebração da ressurreição. A isso, Farel respondeu que as festas também eram um mandato divino, embora cada dia fosse santo, e devesse ser considerado assim; e seria contrário à lei do amor que um indivíduo se separasse dos demais e celebrasse outro dia.
A maior parte do dia foi gasto nesta disputa.
Continua na Parte 2.