Um blog do Ministério Fiel
A pregação como exegese pública: a centralidade da Escritura
A prática da exposição das Escrituras é uma das mais importantes tarefas do ministério pastoral[i] e frequentemente estudantes de teologia e pastores no início de sua jornada ministerial tem grande dificuldade em colocar essa disciplina em prática. A diversidade de métodos e propostas, gostos e preferências pessoais do pastor e da comunidade que ele serve fazem com que o novato na arte de comunicar a mensagem de Deus sinta-se perdido. É bem verdade que os aspectos da oratória da exposição são importantes e o estudante deve dedicar-se a aprimorá-la[ii], mas o pastor que quer proclamar a mensagem de Deus para sua comunidade deve estar primeiramente atento as Escrituras.
Fazer das Escrituras a prioridade da pregação é reconhecer que a autoridade do conteúdo proclamado é divino e não humano; é atribuir ao Senhor a responsabilidade de comunicar a mensagem dele para a comunidade dele; é entender que no processo da proclamação da mensagem, como pregadores, somos apenas mensageiros preocupados em não distorcer o que Deus tem a comunicar com sua igreja.[iii] Entretanto, fazer das Escrituras a prioridade da exposição é um desafio que deve ser encarado primeiramente na preparação da mensagem. Aliás, ousaria dizer que é na preparação da mensagem que um sermão é definido como uma pregação expositiva.
É por isso que gosto de chamar a prática da pregação que prioriza o texto original de exegese pública. É uma maneira de deixar evidente que a Escritura não é apenas a prioridade da mensagem a ser apresentada, mas a fonte primária do conteúdo a ser apresentado. É um modo de associar duas disciplinas fundamentalmente importantes em uma única atividade: Exegese e Homilética pertencem uma a outra e separá-las pode ser prejudicial para a prática da pregação expositiva.[iv]
A exegese pública é uma filosofia de pregação expositiva que faz das línguas originais o centro do estudo e preparação da homilia; é uma filosofia que reconhece que abandonar o texto nos seus idiomas originais é incorrer no risco de abandonar o evangelho[v] ou de se desviar da verdade divina.[vi] Reconhecer a Escritura como prioridade e fazer da Escritura a prioridade da pregação são duas coisas distintas, e a exegese pública dedica-se a realizar ambas atividades tanto na declaração da filosofia da pregação como na sua prática.[vii]
João Crisóstomo poderia ser citado como um bom exemplo de alguém que praticou a exegese pública.[viii] Conhecido por sua habilidosa oratória, João Crisóstomo figura entre aqueles que fizeram da exegese do texto grego o ponto de partida de suas mensagens. Via de regra, sua exposição iniciava-se com uma cuidadosa exegese, que se preocupava com aspectos gramaticais, literários e contextuais e a partir dessas informações ele apresentava a aplicação do texto.[ix] De tão habilidoso na sua prática homilética, João ganhou o título de “boca de ouro” (Χρυσόστομος – Crysóstomos) e ficou reconhecido por combinar com excelência a exegese do texto, sua apresentação e aplicação.[x] Sua maestria na realização da exegese pública lhe rendeu a condecoração de maior dos pregadores do período patrístico.[xi] Sobre ele, Everett Ferguson afirma: “Desde o sexto século ele é reconhecido como ‘boca de ouro’, porque ele dominou a arte da pregação. Seus insights sobre o significado da Bíblia Grega e sua habilidade em aplicá-la de modo prático para seus ouvintes são as perenes contribuições de suas mensagens sobreviventes”.[xii]
Contudo, Crisóstomo não era uma espécie de comentarista frio no púlpito. Muito pelo contrário, suas homilias eram destinadas especialmente a instrução da comunidade e reforma moral de uma sociedade nominalmente cristã. Em função de sua influência como pregador, Crisóstomo acabou por funcionar como um reformador na cidade de Antioquia,[xiii] com homilias que denunciavam o aborto, a prostituição, a glutonaria, o teatro, a prática do xingamento e o amor pelas corridas de cavalos. Crisóstomo era um exegeta público por excelência: com atenção ímpar ao texto grego e com os olhos voltados ao estímulo da prática cristã, Crisóstomo pode ser descrito como alguém que foi bem-sucedido na tarefa de associar a exegese e a homilética. Sua influência pode ser sentida ainda hoje e seu exemplo nos estimula a buscar a excelência
Além disso, Crisóstomo nos serve como exemplo de que existe vida na exegese, e que a mesma não é uma disciplina acadêmica a ser praticada na quietude do escritório pastoral. A bem da verdade, a exegese deve ser pública para poder ter seu fim levado à efeito. Aliás, é porque acreditamos que a “a Palavra de Deus é viva e eficaz e mais afiada do que qualquer espada de dois gumes”, porque acreditamos que “ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4:12) é que nos esforçamos para estuda-la minuciosamente. Afinal, na exposição somos meros comunicadores da mensagem divina; é na Escritura que reside a autoridade da mensagem proclamada.
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[i] Mark Dever afirma que a exposição das Escrituras na comunidade crista é a mais importante de todas as marcas de uma igreja saudável (DEVER, Mark, Nove Marcas de uma Igreja Saudável, 40); fazer da Escritura a prioridade do púlpito deve ser o contínuo esforço do pregador. Donald Miller chega a afirmar que “toda pregação verdadeira é uma pregação expositiva, e que toda pregação que não é expositiva, não é verdadeiramente pregação” (MILLER, Donald, Way to Biblical Preaching, 22).
[ii] Haddon Robinson defende que são dois os elementos que fazem uma pregação eficiente: (1) que se fala e (2) como se fala: “fora dos aspectos relacionados com a vida, com o conteúdo bíblico, nós não temos nada que valha a pena comunicar; mas sem uma habilidosa oratória, nós não seremos capazes de fazer com que esse conteúdo chegue à congregação” (ROBINSON, Haddon, W., Biblical Preaching, 201 – publicado por Edições Vida Nova como Pregação Bíblica).
[iii] Ler a excelente introdução à pregação expositiva de Sidney Greidanus, The Modern Preacher and the Ancient Text, pp.1-18 (publicado pela Cultura Cristã como O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo). Para Greidanus, no coração da pregação expositiva encontra-se “não apenas um método, mas um compromisso, a visão da essência da pregação, uma abordagem homilética de pregar as Escrituras” (p.15). É esse compromisso de expor a mensagem de Deus para a comunidade dele é o compromisso mais importante da pregação expositiva.
[iv] Um dos grandes problemas da formação pastoral de muitos dos nossos seminários é que se separam exegese da homilética desde o planejamento acadêmico. Normalmente, homilética figura entre as matérias pastorais ao passo que a exegese é alocada entre as matérias acadêmicas. Professores de línguas originais defendem a prioridade da Escritura na pregação, mas não ensinam seus alunos como sair do texto para o púlpito porque suas matérias são desenhadas para ajudar o aluno a focar no texto; ao passo que professores de homilética defendem a prioridade da Escritura na preparação e entrega da pregação, mas não ensinam os alunos a como fazê-lo porque estão mais preocupados com a entrega da mensagem do que sua preparação. Nesse cenário, muitos alunos não conseguem transpor o abismo entre a realização da exegese e a apresentação da mensagem. Resultado disso é que pouquíssimos pastores fazem uso recorrente da exegese em seu ministério pastoral.
[v] Marinho Lutero foi o reformador campeão desse princípio: “Certifique-se disso: não preservaremos o evangelho sem as línguas originais. As línguas são a bainha na qual que espada do Espírito está contida; a caixa em que essa joia é consagrada; a garrafa em que esse vinho é mantido; a despensa em que esta comida é armazenada (…) Se, por nossa negligência, abandonarmos as línguas originais (que Deus não permita!), nós iremos perder o evangelho” (LUTHER, Martin, To the Councilmen of All Cities in Germany That They Establish and Maintain Christian Schools, p.31).
[vi] João Calvino defendeu isso com propriedade: “Ao abandonarmos as línguas bíblicas, fechamos os olhos para a luz e espontaneamente nos desviamos da verdade” (CALVIN, John, Selected Works of John Calvin, 3:75).
[vii] Com isso não estamos dizendo que aqueles que não usam língua originais na preparação de suas mensagens não são verdadeiros expositores, nem que estão em erro ou abandonando a verdade. Estamos apenas afirmando uma filosofia que faz do texto original o ponto de partida da exposição, e que tal preocupação pode nos ajudar a defender e apresentar o evangelho e a verdade divina. A exegese pública é uma forma de pregação expositiva, e não a única forma.
[viii] O leitor deveria, entretanto, refrear os impulsos de julgar a prática da exegese de Crisóstomo pelos critérios dos métodos atuais da exegese contemporânea pois isso seria anacrônico. Crisóstomo é um excelentíssimo representante da escola exegética antiocana, e baseado nos critérios dessa escola hermenêutica que ele deveria ser avaliado.
[ix] THISELTON, Anthony C., “Chrysostom, John,” The Thiselton Companion to Christian Theology, 246.
[x] VENABLES, Edmund, “Chrysostom, John,” A Dictionary of Christian Biography, Literature, Sects and Doctrines, 521. Ver também: GALLI, Mark, OLSEN, Ted Olsen, “John Crysostom,” 131 Christians Everyone Should Know, 83; LEID, K., “Chrysostom, John,” Who’s Who in Christian History, 159.
[xi] HUNTER, David G., “Chrysostom, John,” The Encyclopedia of Christianity, 475.
[xii] FERGUSON, Everett, “John Crysostom,” Eerdmans’ Handbook to the History of Christianity, p.191.
[xiii] CROSS, F. L., LIVINGSTON, Elizabeth A., “John Crysostom,” The Oxford Dictionary of the Christian Church, p. 345. Sua série de mensagens intituladas “Sobre os Estatutos” pregadas entre março e abril de 387 EC serve como um excelente exemplo de sua participação e influencia pública.