Um blog do Ministério Fiel
Por que me oponho à pena de morte
*Nota do editor: Pena de morte é um assunto polêmico, mas importante, em especial, diante da situação violenta de nosso país. Para que você possa refletir sobre a temática, trazemos dois artigos, um a favor e outro contra. Eles foram escritos tendo em vista o contexto norte-americano, mas as argumentações buscam ser enraizadas na Escritura. Independente de sua posição, é sempre bom considerar a argumentação do outro lado. Esperamos que você seja edificado ou desafiado com a leitura.
Dylann Roof, um adepto da ideologia da “supremacia branca” que assassinou nove afro-americanos que frequentavam um estudo bíblico na igreja, foi condenado à morte em um tribunal federal[i] no início de janeiro de 2017. Era esperado, o crime de Roof era um mal monstruoso. Você encontrará poucos que acham que ele não mereça a sentença. Para ser sincero, também compartilho desse sentimento. E, no entanto, quando olho mais fundo, para além da minha raiva em relação a ele, tenho que admitir que executá-lo, na verdade não resolve as coisas; somente parece que resolve, e é aí que reside o cerne da questão: no conceito cristão, a justiça na pena capital não consiste em sentimentos de satisfação alcançados através de retaliação ou vingança, mas em definir corretamente aquilo que precisa ser corretamente definido.
Os cristãos não são obrigados a apoiar a pena de morte e, na verdade, não devem apoiá-la. Minhas razões para me opor à pena de morte são filosóficas e teológicas. Deixe-me começar com objeções filosóficas, que eu divido em aspectos teóricos e práticos, e então concluo com objeções teológicas.
Objeções filosóficas
Os defensores da pena capital geralmente apelam para a importância de os criminosos receberem o que merecem ou pagarem pelo crime cometido. Acredita-se que essa troca siga o antigo princípio legal da “lei de talião” – olho por olho – e, assim, em certo sentido, “quita” uma dívida criminal incorrida pelo transgressor. Mas pensar em punição como troca – olho por olho – é um erro. A punição é melhor concebida como uma representação simbólica. Se uma pessoa assassina outra, matar o infrator não restabelece o estado de coisas que existia antes do assassinato. A situação anterior ao crime é irrecuperável.
A punição não pode definitivamente e por si só restaurar o equilíbrio na sociedade. É uma condição necessária, mas não suficiente para a ordem social. A pena de morte, como uma forma de punição, só pode ser aplicada aos crimes violentos. Como no caso do Roof, ela pune simbolicamente, levando o acusado a julgamento e, por sua vez, notificando o público sobre o que aconteceu e o que está sendo feito para corrigi-lo. A pena de morte não pode restabelecer a justiça ainda que tente respeitá-la.
Não se trata de qualquer forma de um desejo em relação ao que se passou, mas sim o sentimento profundo de que os malfeitores devem receber retribuição. Para o “retributivista”, o objetivo da punição é simplesmente punir. Isso é literalmente o que a palavra “retribuição” significa e, em muitos aspectos, a retribuição tem seu lugar de direito em nosso código penal. Quando aplicada à pena capital, no entanto, a teoria começa a ruir.
A retribuição pode, na melhor das hipóteses, constituir apenas parte do propósito da punição. É igualmente essencial que, na punição, seja demonstrada as reais condições em que se deram o crime, e que a pena seja aplicada com finalidade pedagógica. Essa é a posição de Agostinho. Ele argumenta que a punição deve “dizer a verdade sobre o crime” e disciplinar o acusado de maneira proporcional e educativa. A pena de morte é única entre as punições, na medida em que é incapaz de aplicar exatamente esse propósito pedagógico. Os mortos não aprendem com seus erros ou com a disciplina imposta. A sugestão de que a pena capital de alguma forma expressa nosso sincero respeito pela vida humana – a imagem de Deus – é, na verdade, paradoxal demais para ser aceita. Por essa e pelas outras razões que exponho abaixo, não creio que em Gênesis 9. 6 o “derramar sangue por sangue derramado”, seja moralmente aplicável. O fato de sermos coexecutores de Cristo deve ser motivo suficiente para ajustarmos nossa hermenêutica neste ponto.
Evidências também sugerem que a pena capital não serve como um impedimento efetivo para os crimes de morte. Alguns crimes de assassinato são acusados de não premeditados, ou cometidos no calor da paixão, e assim nunca entraram na mente do infrator antes da perpetração. Além disso, em 14 estados sem pena de morte, as taxas de homicídio são iguais ou inferiores à média nacional. Evidências que alegam a eficácia da pena de morte em dissuadir crimes violentos não são convincentes.
Objeções Práticas
Deixe-me agora mudar brevemente para o aspecto prático, começando com algumas estatísticas sugestivas:
- Mais da metade dos presos no corredor da morte são pessoas de cor.
- Desde 1977, a esmagadora maioria dos internos condenados à morte (77 por cento) foi executada por matar vítimas brancas, embora os afro-americanos sejam metade de todas as vítimas de homicídio.
- Desde 1973, 140 indivíduos no corredor da morte foram inocentados.
- Quase todos os presos no corredor da morte não podiam pagar seu próprio advogado de defesa.
- Desde 1976, 82% de todas as execuções ocorreram no sul.
- Dos 344 inocentados representados pelo “Innocence Project”, 20 cumpriam pena já no corredor da morte. Dessas 344 absolvições, 71% envolviam erros de identificação das testemunhas oculares, 46% envolviam má aplicação de provas forenses e 28% envolviam confissões falsas ou coagidas.
- Destes 344, um total de dois terços eram pessoas de cor.
Essa é apenas uma pequena amostra dos problemas práticos que são endêmicos no sistema de justiça criminal. Gostaria de destacar, em particular, os problemas da representação do advogado e do viés racial. Dada a tensão atual imposta aos defensores públicos, tanto por causa da carga elevada de casos como pelo pelas verbas insuficientes, é difícil ver como infratores violentos que não podem pagar seus próprios advogados são comparativamente representados por advogados nomeados pelo estado – não importando quão bem intencionados ou talentosos esses advogados possam ser. Da mesma forma, evidências crescentes sugerem que pessoas de cor recebem uma porcentagem desproporcional de sentenças capitais. Juntos, esses são motivos suficientes para se implantar uma suspensão temporária na pena de morte.
Objeções Teológicas
Finalmente, vamos considerar objeções teológicas à pena de morte.
Primeiro, se alguém deseja justificar a pena de morte observando o princípio do “olho por olho”) do Antigo Testamento, então deve-se demonstrar como a morte como medida punitiva é moralmente correta, já que os elementos civis e cerimoniais da lei foram cumpridos em Cristo. Ao fazê-lo, os defensores cristãos da pena capital também terão que contar com a instrução de Jesus em Mateus 5.38-41, onde ele deixa claro que essa interpretação retaliatória da lei estava incorreta. Se alguém está sujeito a transgressões ou injustiças, Jesus pede a benevolência e a caridade, dispensando qualquer leitura que justifique a vingança. É especialmente difícil, na prática, desvincular a vingança da retribuição na pena de morte. As autoridades governamentais às vezes são obrigadas a usar a força para defender a lei e assegurar a paz, é claro, mas nada os obriga a matar os infratores para fazê-lo. A mesma ideia é presumida na lógica de Romanos 13: a autoridade política pode, mas não é obrigada, a impor uma penalidade de morte. Nem o cristão estará sendo insubordinado ou desrespeitoso em pedir clemência.
Um segundo ponto teológico, oferecido há muito tempo por Agostinho, é o seguinte: uma vez que o condenado é condenado à morte, essa pessoa não é mais elegível para a evangelização e a conversão. A clemência permite a possibilidade de renascimento em Cristo. Isso não garante a conversão, obviamente, mas a execução certamente encurta a chance. Eu creio que a igreja primitiva proporcionava essa particular oportunidade ao coração.
Terceiro, a fé cristã é totalmente e inteiramente a favor da vida – do início ao fim. Esse compromisso tem alcance amplo o suficiente mesmo para os condenados. Todo ser humano tem dignidade e ninguém, nem mesmo o assassino monstruoso, pode perder sua dignidade por completo. Acho Oliver O’Donovan instrutivo precisamente nesse ponto. Se os cristãos levarem a dignidade humana a sério, devemos criticar qualquer penalidade que promova atitudes de desprezo em relação aos condenados. O código deuteronômico, por exemplo, limita o número de vezes que o culpado pode ser açoitado para que, “teu irmão não fique aviltado aos teus olhos” (Dt 25. 1–3). Aviltação aqui é diferente de vergonha, que pode justamente fazer parte da punição, mas a execução é aviltação por definição. Como diz O’Donovan: “Quando o sofrimento da punição se torna objeto de curiosidade e fascínio vulgar, e até mesmo de experimentação, o condenado deixa de contar entre nós como um ser humano que merece o amor ao próximo, e o respeito humano comum parece desaparecer.”
Essas são minhas objeções e explicações. Eu as coloco francamente sabendo que muitos rejeitarão veementemente meus argumentos. Eu entendo o sentimento. Peço apenas que você considere se a pena capital realmente dá ao condenado o que ele merece, ou se ela simplesmente ameniza a raiva, por mais justificável que seja, daqueles mais próximos de quem foi a vítima de assassinato – que então ponderam “justiça foi feita” com “aquele que matou a quem eu amava.
Muitas das chamadas defesas cristãs da pena de morte são, eu temo, mais pragmáticas do que teológicas.
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[i] N.E.: Este texto foi publicado pelo autor considerando o contexto e noticiário americano, porém nós, do Voltemos ao Evangelho, cremos que seu ensino geral é importante para o nosso contexto.