Um blog do Ministério Fiel
A fé de Jane Austen
O trecho abaixo foi retirado com permissão do livro 8 Mulheres de Fé, de Michael Haykin, Editora Fiel.
Jane “demonstra uma reserva anglicana quanto às afeições religiosas”, e é muito interessada no cristianismo como formador da moral. Assim, não causa surpresa o fato de que Jane não fosse protestante. De fato, em 1809, Jane foi bem clara, ao se referir a um romance de Hannah More, dizendo à sua irmã, Cassandra: “Não gosto dos protestantes”. Em 1814, porém, sua atitude mudou. Conforme ela disse à sobrinha Fanny Knight (1793–1882): “Não estou, de modo algum, convencida de que não devêssemos ser todos protestantes. Estou certa de que aqueles que o são, de mente e sentimento, devem sentir-se mais felizes e seguros”. Observa-se que seu romance Mansfield Park, concluído não muito tempo depois desse comentário a Fanny Knight, revela clara “simpatia pelo protestantismo”. Essa simpatia estava especialmente centrada na crença que Jane e os evangélicos tinham em comum: “Os cristãos devem estar de pé e trabalhando no mundo”. Por exemplo, Mansfield Park aborda um tema caro ao coração de muitos evangélicos no final do século XVIII: a abolição do comércio de escravos. Jane pôde, assim, escrever, no outono de 1814, em uma carta enviada a uma amiga, Martha Lloyd (1765–1843), que a sua esperança nos estágios finais da Guerra de 1812 era: “Se seremos arruinados, isso não pode ser evitado, mas deposito minha esperança de coisas melhores em um pedido de proteção do céu, como uma nação religiosa, uma nação que, apesar de tanto mal, avança na religião, o que não posso acreditar que os americanos tenham”. É claro que os protestantes haviam figurado, com bastante proeminência, na onda de avivamento religioso que varreu a Grã-Bretanha cerca de vinte anos antes, um avivamento que havia assistido à vitória evangélica na abolição do comércio de escravos. Uma posição de vantagem para observar a fé de Jane é analisar uma das três orações que foram atribuídas a ela e que provavelmente datam de sua vida após a morte do pai dela, em 1805, embora existam dúvidas acerca da autenticidade de duas delas. A terceira segue como veremos e realmente parece ter sido escrita por Jane:
Dê-nos graça, poderoso Pai, tanto de orarmos como de merecermos ser ouvidos; de nos dirigirmos a ti com nossos corações e também com nossos lábios. Tu estás presente em todo lugar, de ti nenhum segredo pode ser escondido. Que o conhecimento disso nos ensine a fixar nossos pensamentos em ti, com reverência e a devoção de que não oramos em vão.
Olhe com misericórdia para os pecados que cometemos nesses dias e, com misericórdia, faça-nos senti-los, para que nosso arrependimento seja sincero, e nossas resoluções firmes de nos empenhar em não cometê-los no futuro. Ensina-nos a entender a pecaminosidade de nosso próprio coração, e trazer ao teu conhecimento cada falha de temperamento e cada mau hábito no qual temos incidido em prejuízo de nossos companheiros e no perigo de nossas próprias almas. Que possamos agora, e em cada noite, considerar como passamos o dia, quais têm sido nossos pensamentos, palavras e ações predominantes e até que ponto podemos nos inocentar do mal. Pensamos em ti de maneira irreverente, desobedecemos a teus mandamentos, negligenciamos alguma obrigação conhecida ou causamos dor a qualquer ser humano por vontade própria? Inclina-nos a fazer essas perguntas ao nosso coração, ó, Deus, e livra-nos de enganar a nós mesmos pelo poder ou a vaidade.
Dê-nos um senso de gratidão pelas bênçãos em que vivemos, dos muitos consolos de tua parte; que não mereçamos perdê-las por descontentamento ou indiferença.
Seja gracioso com nossas necessidades e nos guarde, e também a tudo que amamos, do mal nesta noite. Que os doentes e aflitos sejam, agora e sempre, cuidados por ti; e, de coração, oramos pela segurança de todo aquele que viaja pela terra ou pelo mar, para o conforto e a proteção do órfão e da viúva, e que tua piedade seja mostrada sobre todos os cativos e prisioneiros. Acima de todas as outras bênçãos, ó, Deus, por nós mesmos e por nossos irmãos, imploramos a ti que acelere nosso senso de tua misericórdia na redenção do mundo, do valor daquela santa religião na qual fomos criados, e que nós, por nossa própria negligência, não joguemos fora a salvação que nos tem dado, nem sejamos cristãos apenas no nome. Ouça-nos, Deus poderoso, pelo nome daquele que nos redimiu, e ensina-nos assim a orar:
Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal.
Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém.
A linguagem dessa oração é claramente retirada do Livro Comum de Orações, que era tão familiar a Jane. É expressa na primeira pessoa do plural e não se trata de arte literária; é uma oração simples, sem adorno, a Deus, para ser feita por um grupo de crentes em um contexto familiar, provavelmente o próprio círculo familiar de Jane. Nessa oração, ela está profundamente preocupada em não machucar o próximo, tema comum em seus romances. Como Irene Collins afirma, “os personagens de Jane que experimentam a verdadeira felicidade são aqueles que pensam nos outros”. Emma Woodhouse comenta sobre o personagem do sr. Weston em Emma: “Benevolência geral, e não amizade geral, torna um homem o que ele deve ser”. No mesmo romance, é a preocupação do sr. Knightley com o pai de Emma e a senhorita Bates que se ergue como modelo de Jane para o verdadeiro comportamento cristão.
A nota da sinceridade de coração também corre ao longo da oração: “Dê-nos graça, Pai poderoso, para nos aproximar de ti com nossos corações”, e ela ora por “misericórdia”, para que possa “sentir” seus pecados “profundamente” e que seu “arrependimento seja sincero”. Um comentário escrito por Jane em 1814 na parte de trás de um dos sermões de seu irmão James e que recentemente veio a lume sugere que a sinceridade religiosa era intensamente valorizada por Jane: “Os homens podem adquirir o hábito de repetir as palavras de nossas orações mecanicamente, talvez sem entendê-las por completo – certamente sem sentir, em plenitude, sua força e seu significado”. E, ligado a esse desejo por sinceridade, está o desejo por autoconhecimento, a libertação do autoengano.
Somente no final da oração, porém, é que ouvimos uma nota e um tom especificamente cristãos, pois Jane pede a Deus que ela possa continuar a valorizar a salvação e “aquela santa religião na qual [ela havia] sido criada”, um clamor que é feito especificamente “em nome daquele que nos redimiu”. E, com um fervor que se iguala ao de qualquer evangélico, Jane pede a Deus que “acelere nosso senso de tua misericórdia na redenção do mundo”. Como Bruce Stovel observa, esses sentimentos nos dizem que “Jane Austen tinha uma fé [cristã] religiosa profunda e sincera”. E esses são sentimentos que foram endossados de coração por todas as mulheres que vimos nesta obra.