Estes somos “Nós”: tornando, uns aos outros, em monstros

Todos nós vivemos de cabeça para baixo. Esse é o ponto que Jesus enfatiza em seu Sermão do Monte. Nossas prioridades estão invertidas. Em vez de refletir o reino de Deus e seu rei, nossas vidas e escolhas geralmente refletem nossos corações totalmente distorcidos e egoístas.

Este também é um tema que permeia o segundo filme de Jordan Peele, “Nós”.

Como um filme de terror, Nós contém muitas cenas intensas e perturbadoras (classificado como 16 por violência extrema e linguagem imprópria). Mas a característica mais perturbadora do filme é seu incisivo comentário social – e até teológico – que surge à medida que a trama avança.

Sangue em nossas mãos

Nós abre com um zoom lento em uma TV exibindo um comercial para um evento de caridade de 1986 chamado “Hands Across America”. Apresenta silhuetas vermelhas de pessoas desenhadas de forma idêntica, de mãos dadas em aparente solidariedade para com os pobres e marginalizados. Este verdadeiro evento histórico se torna uma chave interpretativa para o restante do filme, que é ostensivamente sobre uma violenta intrusão nas férias de uma família de classe média. (Spoilers a seguir!)

O filme segue a família Wilson – Adelaide (Lupita Nyong’o), Gabe (Winston Duke), Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex) – enquanto eles repelem os ataques dos “atrelados” (ou “pessoas refelxo”) Que se erguem do solo na esperança de se libertar de seus doppelgängers mais afortunados, acima do solo.

Para que ela e sua família sobrevivam, Adelaide deve matar ou ser morta, já que sua duplicata (“Red”) busca vingança por sua criação menos afortunada. O resultado inevitável são mãos cada vez mais manchadas de sangue, à medida que o enredo chega ao clímax em uma sala de aula subterrânea com paredes decoradas por várias marcas de mãos vermelhas. Notavelmente, no entanto, Adelaide passa cerca de metade do filme com as próprias mãos presas por algemas, talvez um símbolo de sua escravidão ao egoísmo em buscar apenas o bem-estar dela mesma e de sua família.

Nossos Piores Inimigos

Na maioria das vezes, somos nossos piores inimigos. O próprio Peele indicou que queria que este filme explorasse a dualidade interior e a “culpa e pecados que enterramos dentro de nós mesmos”. Os horrores que escondemos e os pecados que tentamos submergir, sugere o filme de Peele, acabarão nos alcançando. Haverá um ajuste de contas. Isso é ilustrado tanto pela camisa branca de Adelaide, que gradualmente acumula marcas de mãos vermelhas deixadas por seu próprio sangue e pelo sangue de suas vítimas, e também pelo uso de antagonistas que são simplesmente as “criaturas sombrias” dos mocinhos tradicionais.

O filme pergunta: Aqueles que vemos como nossos inimigos são realmente diferentes de nós?

Depois que Adelaide literalmente persegue Red pela toca do coelho, a reviravolta final é revelada: nossa aparente protagonista é na verdade uma antagonista. Ela assumiu a identidade de Adelaide cerca de trinta anos antes, arrastando-a para baixo da superfície e ocupando seu lugar acima. As linhas que separam o bem e o mal são, portanto, borradas além do reconhecimento.

Mas é precisamente por isso que Nós tem um impacto memorável. Isso nos acusa com precisão por nossa tendência de desprezar a Imago Dei quando consideramos nossos vizinhos abaixo de nós, menos dignos, menos humanos. O filme expõe nossa tendência de apagar “eles” e nos preocupar apenas com “nós”. Essa recusa pecaminosa de amar nosso próximo revela nossa própria desumanidade, não a deles. É a ética do reino do Sermão do Monte – invertida.

Terror de um mundo de soma zero

A certa altura, Red exclama: “Somos americanos!” O título de Peele, Nós, tem duplo sentido, sugerindo o clima atual dos Estados Unidos?

Como costuma acontecer, o gênero do terror é usado aqui para explorar os horrores da sociedade. No último filme de terror de Peele, Corra (2017), o horror social dizia respeito às tensões raciais não resolvidas da América. No caso de Nós, é o horror de uma sociedade cada vez mais caracterizada por um jogo de soma zero, onde um só pode ganhar se os outros perderem, onde os oprimidos e os opressores estão sempre trocando de papéis

Jogando com os conhecidos jargões “andar de cima/baixo” da divisão de classe (por exemplo, Downton Abbey), os necessitados em Nós (“os atrelados”) emergem de túneis escondidos no subsolo, em busca de um futuro melhor. Mas sua esperança depende de derrubar aqueles que vivem acima. O pressuposto é que as pessoas “abaixo” e “acima” nunca poderiam coexistir pacificamente; eles só podem trocar de lugar ou matar uns aos outros.

Os atrelados não têm fala cognitiva e se comunicam por meio de grunhidos e gemidos primitivos, ressaltando a maneira como são vistos pelas pessoas acima do solo (como monstros subterrâneos e subumanos semelhantes a zumbis). Red é a única exceção; ela pode falar, embora com uma inflexão perturbadoramente áspera e rouca, e atua como porta-voz dos atrelados. Figura distorcida do messias, Red acredita que sua visão para libertar seu povo veio do próprio Deus. Aqui vemos uma espécie de anticristo que imita o salvador bíblico enquanto perverte sua missão. Jeremias 11.11 é o imperativo divino do filme: “Portanto, assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; clamarão a mim, porém não os ouvirei.”

Enquanto Red acredita que sua missão é defender e liderar seus companheiros “reflexos” em uma missão retributiva, não é graça ou compaixão que eles buscam, mas o caos para seus doppelgängers desavisados. Em uma perversão distorcida de “Hands Across America” ​​- que buscava estimular a compaixão entre os que têm e os que não têm – Red orquestra uma versão da corrente humana forjada no sangue: Os que não têm, obtendo, finalmente, sua vingança sobre os que têm.

Descendo para se tornar um de nós

Enquanto ela desce às profundezas de um submundo escuro para resgatar seu filho, Adelaide fornece uma imagem distorcida de Jesus, que deixou o paraíso para reivindicar um povo para si e nos chamar das trevas para a luz (1Pe 2.9). Mas ao contrário de Adelaide, que brandia atiçadores de fogo e furiosamente defensiva, Jesus se humilhou e assumiu a semelhança dos humildes (Fp 2.7-8) para nos salvar. Em vez de descer à terra para exibir sua superioridade e livrar nossas vidas do julgamento, ele voluntariamente entregou sua própria vida e então se levantou para que pudéssemos subir com ele (Cl 1.8). Se alguma vez alguém teve o direito de desprezar os outros e considerá-los indignos, Foi Deus. No entanto, em vez de nos destruir ou humilhar, ele nos dignificou. Ele assumiu nossa carne e nos redimiu.

Infelizmente, muitas vezes não seguimos o exemplo de graça indescritível de Deus. Em nossas próprias vidas e relacionamentos com outras pessoas, muitas vezes temos mais probabilidade de reter a graça do que estendê-la. Como humanos caídos, somos especialistas em nos elevarmos às custas da exploração de outros. Nós naturalmente gravitamos em direção a formas de vida de soma zero, sobrevivência do mais apto, matar ou morrer. Mas isso está em total contraste com a ética do reino de Deus, que nos chama a dar a outra face (Mt 5.39), a amar nossos inimigos e orar por nossos perseguidores (Mt 5.44).

Entre outras coisas, o filme Nós, de Peele, nos lembra que aqueles que receberam misericórdia e graça de Deus – que somos todos nós que cremos – não devem negar misericórdia e graça aos outros. Fazer o contrário é realmente um terror.

Por: Sean Nolan. © The Gospel Coalition. Website: thegospelcoalition.org. Traduzido com permissão. Fonte: This Is ‘Us’: Making Monsters of Each Other.

Original: Estes somos ‘Nós’: tornando, uns aos outros, em monstros. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.