O argumento odontológico para a existência de Deus

Fui hoje ao dentista. Nada muito sério, só uma restauração que poderia ficar realmente séria se não fosse tratada logo. Como eu já estava enrolando com ela desde janeiro, de fato era bom resolver. Dentistas e as visitas que a eles fazemos me lembram acerca de Deus e a sua existência. Deixe-me explicar.

Como é isso de argumento odontológico para a existência de Deus? Bem, a piada é que quando se está lá indefeso com a boca aberta e a broca vai chegando, não existe ateu. Pronto, está aí o argumento odontológico. É claro, espero ir além disso. Devo ser honesto quanto a algo, entretanto. Se você está aqui em busca de um silogismo, um argumento formal, ou algo que crie um encadeamento lógico com premissas bem estalecidas e uma conclusão irrefutável, desculpe, não vai ter. Melhor ir fazer flúor enquanto espera. Penso, entretanto, que eu realmente não precise provar para você a existência de Deus. É dessas coisa que todos nós já assumimos, mesmo que a gente não admita nem pra nós mesmos. Vamos conversando e a gente vai vendo o que sai. Já que você sentou na cadeira e a boca já está aberta, que tal ver até onde chegamos? O tratamento é grátis.

Hoje eu tinha meu horário marcadinho para 11 da manhã. Marcar dentista sem estar com muita dor é algo estranho. Quando temos incômodo, seja pela dor ou por causa daquela crosta acumulada de tártaro, ficamos querendo ajuda. Quando, entretanto, está tudo bem, hesitamos. Para minha alegria, a clínica faz todo o agendamento por Whatsapp. Que coisa agradável! Ajuda a tirar a sensação de ovelha para o matadouro. Nada como emojis incentivadores para que você de fato pare de enrolar e marque a data do abate. Não é assim que fazemos com as pessoas e mesmo com Deus? Ao menos um pouco? Quando há algo realmente incomodando a gente vai atrás de ajuda. Quando não estamos lá muito incomodados, vamos deixando as cáries do coração se espalharem e o estrago acaba sendo pior.

Cheguei cedo, como gosto, e logo me deparei com o desafio de fazer caber o propé minúsculo. Propé, caso não esteja relacionando o nome ao produto, é aquele paninho com elástico que a gente coloca no sapato por questões de limpeza do ambiente. E não foi nada fácil fazer caber. Tudo bem, sei que poucos usam sapato 45. Entretanto, julgo eu, esse negócio podia ser mais larguinho um pouco a fim de acomodar com menos amargor o meu calçado. Ou quem sabe ter variedade de tamanhos. Chegou em um ponto em que a moça da recepção veio rindo e ofereceu de arrumar para mim. Eu mostrei como estava e ela respondeu “Eita, está certo. É que está tão esticado que achei que o senhor tinha colocado errado.” É assim que a gente anda, não? Um mundo que não se molda direito ao que somos, pois o mundo é torto e nós somos inadequados. Uma inadequação mútua. É assim que a Bíblia descreve a realidade. Não é o que deveria ser. É assim pois se trata de um mundo quebrado. Não tem outro jeito, somos todos gente que não se acomoda ao nosso ambiente, que por melhor ajustado que pensemos que somos, uma hora ou outra sentiremos a inadequação do mundo a nós, ou de nós ao mundo. A gente sabe que tem algo de errado no mundo. Por vezes achamos que descobrimos ser isso ou aquilo, mas estamos apenas tomando os sintomas como se fossem a causa. Uma de meus romances favoritos é Gilead, de Marilynne Robinson. É a história de um velho pastor, no final da vida, escrevendo suas memórias para seu filho ainda criança. É incrivelmente belo, dolorido e útil. Em certo momento o protagonista, Rev. John Ames, diz:

Há duas ocasiões em que a beleza sagrada da criação se torna deslumbrantemente aparente, e elas ocorrem ao mesmo tempo. Uma é quando sentimos nossa mortal insuficiência para com o mundo, e a outra é quando sentimos a mortal insuficiência do mundo para conosco. Agostinho disse que o Senhor nos ama como se fossemos filhos únicos… ‘ele irá enxugar as lágrimas de todas as faces.’ Não diminui em nada a amabilidade desse versículo dizer que isso é exatamente o que será necessário.

Em resumo, a vida é como um pé que não se ajusta ao propé, ou um propé que não se ajusta ao pé. Ou melhor, as duas coisas ao mesmo tempo. Por isso que a gente vive com o incômodo senso de que as coisas não estão no lugar. Há raros momentos de plenitude, onde tudo se encaixa, mas mesmo nesses momentos a gente se deleita precisamente por saber que é algo fugaz, que logo vai passar. A gente vai andando e ele vai saindo ou esgarçando e a gente faz o melhor que pode, mas que não está servindo, ah, não está não. E isso causa as lágrimas que você chora escondido, ou não.

Falando em lágrimas, teve um momento em que lágrimas meio que se formaram nesses olhos que Deus formou no ventre de Dona Regina Garofalo. Tinha uma trilha sonora muito boa tocando lá no consultório. Várias músicas que amo e reconheço. Uma delas me trouxe lembranças ao coração que fizeram os olhos umedecerem. Não pergunte, é privativo. Isso não é impressionante? Isso de música? Como sons ordenados são capazes de causar o reviver de memórias e emoções de forma vívida. Deus nos fez assim. Nós achamos que inventamos a música, mas foi Deus que a inventou e deixou nosso coração pronto para que ela viesse fazer ninho e colocar seus adoráveis ovinhos. A humanidade só precisou descobrir como funciona. Música mexe conosco. Faz até esquecer a broca um pouco. Ao mesmo tempo, a música nos leva a lugares onde a gente prefere não voltar. Eu não sei vocês, mas eu tenho na mente uma playlist secreta de músicas proibidas. A beleza musical pode causar arroubos de voos altaneiros da alma, bem como lembranças amargas e escuras que contrastam incomodamente com o que de belo se ouviu.

Além dessa canção que criou lágrimas, foram várias as que ajudaram a passar a hora. The Police, Adele, Clapton, Katy Perry e John Legend me ajudaram a manter a boca aberta e a mente distraída. Quando Sting canta “Oh can’t you see you belong to me?” ele está falando de alguém preocupado em perder os dentes? Ou a dentista com medo que o paciente corra? Quando Adele destila como só ela é capaz “Sometimes it lasts in love/But sometimes it hurts instead” ela está falando de tratamento de canal? Quando John Legend dispara “My head’s under water/But I’m breathing fine/ You’re crazy and I’m out of my mind” ele está falando de excesso de anestesia? Aliás, aqui no Brasil tem aquele gás que deixa feliz? E quando Perry explode um “And you’re gonna hear me roar” é uma referência ao que acontece quando a broca acerta o nervo?

A dentista viu que eu estava curtindo a música. Não sei como. Será que eu estava acompanhando com os pés? Cantarolando não estava… Deus fez seres em sua imagem e semelhança e lhes deu música no sangue. Até no seu livro santo ele colocou letras de músicas. Algumas delas são de fazer mortos voltarem à vida. Algumas anestesiam, outras perfuram, algumas raspam e muitas saram o que está apodrecendo. Tem até umas que servem para proteção e prevenção.

Anestesia? Sim claro, por favor, pelo amor de Deus. Anestesie tudo o que a senhora quiser e mais um pouco. Sério, quem pensou em anestesia? Não pesquisei e nem o farei agora, mas grato estou a Deus por esse ser humano. Todos nós desfrutamos de invenções oriundas da criatividade humana. Esquecemos, entretanto, que esse foi dada por Deus. Ela é parte de sermos imitadores dele. Eu mesmo pouco lembro de agradecer e falar a respeito da maravilha que é Deus ter capacitado pessoas a pensarem em substâncias que quando injetadas pontiagudamente na gengiva alheia causam falta de dor. Preciso lembrar de falar mais sobre como Deus capacita a criatividade humana. Aliás, falando em falar…

Como gostam de falar os dentistas que me tratam. Não sei se é algo universal, ou se realmente é só com os que chegam a mim com suas brocas e instrumentos pontiagudos. Aliás, um parênteses: você também, enquanto está lá deitado, de boca aberta e vulnerável a instrumentos cortantes e perfurantes, fica imaginando quantas são as maneiras pelas quais o dentista poderia facilmente te matar e você mal conseguiria esboçar reação? Não? Desculpa, espero não ter plantado ideias em sua cabeça.

Voltando ao papo dentista-paciente. Já tive dentistas que falavam sem parar. Teve uma que perguntava e respondia ela mesma o que achava que eu responderia. Ela criava todo o diálogo entre nós. Era o máximo. Meu primeiro dentista foi meu avô Rubens. Tratou meus dentes durante toda a minha infância, com consultas semestrais quando íamos visitá-los no interior do estado de São Paulo (Ipaussu, caso queiras saber). Que mãos fortes. Lembro do gosto que deixava em minha boca (não, não era gosto de luva de látex, não tinha disso não). Lembro dele falando sem parar de nosso São Paulo enquanto me tratava e lembro que eu achava engraçado que ele dizia “gospe” ao invés de “cospe” quando era hora de, bem, cuspir. Dentista raiz não tem esse negócio de sugador, nem quando vai arrancar o dente pela raiz.

A minha dentista hoje falava bastante. E não era monólogo. Ela realmente esperava respostas. E o pior é que eu fui ficando agoniado pois eu tinha coisas a dizer que de fato contribuiriam para o avanço da conversa, tinha uma ou duas observações perspicazes acerca do assunto que ela tratava. Só fazia grunhidos que podiam significar qualquer coisa. Que frustrante estar assim limitado. Aliás, é essa a nossa condição humana, mesmo a gente não sabendo disso. A queda afetou o ser humano integralmente. Nosso corpo, nossa mente, tudo foi manchado e em algum nível quebrado pelo pecado. Será que se não fosse o pecado não haveriam cáries? Olha, não sei, desconfio que não. Porém, meu ponto aqui é outro. Nós todos temos limitações, é claro. Sequer sabemos, entretanto, o quanto somos limitados pela queda. Talvez o melhor dentre nós humanos seja um mero paciente imobilizado e de boca aberta em comparação ao que teríamos sido sem pecado. Como fazer para saber? Só na próxima Terra.

Lá pelo meio do tratamento vem a pergunta: “O senhor fuma? Não, já sei, toma muito café, não toma?” É a tal da pigmentação nas restaurações. Como tudo na vida, escolhas e consequências. Eu poderia não ter minhas obturações pigmentadas. Valeria a pena? Creio que não. Creio que Deus criou a língua humana já pensando no dia em que, pela sua graça, alguém pensaria em pegar café, torrar, secar, moer, e derramar água quente por cima para ver no que daria. Claro, pessoas bagunçam isso usando açúcar e alguns até a afronta à civilização chamada Stevia. Continua, ainda assim, sendo das melhores coisas da vida e cicatrizar suas restaurações com pigmentos de café é algo que vale a pena.

Eu não pretendo tentar descrever tudo o que a dentista fez ali em meu dentinho molar. Foram muitos os aparelhos, muitos os instrumentos, coisas que furam, coisas que gastam, coisas que preenchem, coisas que secam, coisas com gosto ácido, coisas com cheiro de fumaça, uma imensidão de manobras e ações de mãos treinadas por Deus e pelo homem para realizar maravilhas em cura num espaço pequeno e antes da pausa para o almoço. A dentista estava com fome, em certo momento me perguntou se eu estava ouvindo o estômago dela roncar. Não, eu não estava. Tem coisas que só a gente ouve e sabe e pensa que estão na cara. Aliás, tem algo que eu gosto de fazer enquanto o dentista trabalha com seu olhar fixo nos dentes. Eu olho para seus olhos. É belo perceber a concentração, a vista treinada em ação, a rápida sucessão de olhares de um perito no que está fazendo. Espero que isso não desconcentre ninguém.

Pronto, encerrada a restauração. Agora só falta ver se está adequada e fechando direitinho a mordida. Vamos ver se não está alta. Claro que está. Na primeira tentativa parecia que tinha uma azeitona na boca. E eu nem gosto de azeitona. Sim, está alta. Vamos morder o tal do carbono e desgastar esse negócio. Segunda tentativa… ainda está alta. Terceira tentativa e ainda está ruim e eu estou ficando com vergonha de falar, mas falo. Não é possível. Foi precisa uma quarta.

— “Ainda está alta?”

— “Então eu tô vendo aqui…”

— “Está com vergonha de falar né? Pode falar, já sei que está alta pelo seu jeito.”

A pior coisa quando você está com vergonha é a pessoa notar e falar que você assim está. Eu estava mesmo. Fomos até uma quinta desgastada. Olha, para ser sincero, aqui enquanto escrevo ainda não estou totalmente convencido de que não está um pouco alto.

Curioso isso da vergonha. É um sentimento que adentrou o mundo junto com o pecado. Ele veio no pacote, no combo que Adão comprou a crédito parcelado e pago por incontáveis gerações. Lá começou isso de vergonha. Sentimos vergonha do que fazemos, do que somos, do que dizemos. Sentimos vergonha alheia, vergonha mútua, vergonha desnecessária, como a de dizer que a restauração ainda está alta. Tudo isso ocorre por causa do mundo quebrado pelo pecado. De fato, o mundo não é como deveria ser. A gente tem vergonha do que nem precisava ter. O mundo é como uma arcada que não se encaixa direitinho. A boa notícia envolve o fato de que Deus está no processo de desgastar e restaurar em mim tudo o que precisa. Um dia as razões para vergonha não vão mais existir.

Hora de sair do consultório. Sou grato por sua atenção, caro leitor. Você ficou aí só me ouvindo falar, como se eu fosse um dentista. Espero que tenha sido bom e não tenha doído nadinha. Viu? Não é tanto um argumento. É mais uma forma de ver o mundo e viver que me parece explicar corretamente a complexidade do que é a vida. Penso que a explicação que Deus dá sobre a realidade é a que melhor faz sentido das coisas como elas são, e nos dá o melhor direcionamento para como seguir. Pigmente suas restaurações. Tente falar mesmo quando não tem como. Sorria e se emocione com as músicas. Aguente as dores e seja grato pela anestesia. Responda quando puder.

C.S. Lewis famosamente disse que acredita no cristianismo como acredita no Sol, não apenas pois ele o vê, mas porque por meio dele pode ver todas as coisas. O ponto é esse. Não posso te provar que Deus existe usando um quadro-negro. Nem adianta te ameaçar com broca ou sugador. Tem um jeito mais fácil e que envolve pensar sobre o que você já conhece. O mundo se encaixa melhor, faz mais sentido quando o entendemos do que jeito que Deus disse que é. Tudo fica mais claro, inclusive as coisas que são escuras. Até a ida ao dentista faz mais sentido. O medo, a dor, a vergonha, o deleite, a criatividade, a música, a perícia da mão humana, tudo isso faz melhor sentido por meio das lentes que Deus nos dá para ver o mundo. A razão de termos medo de dor, as vergonhas que sentimos, a capacidade humana, o poder da música sobre as emoções, tudo isso se harmoniza perante a explicação que Deus nos dá sobre a vida. Você está diante dele, e a boca de sua alma sempre estará aberta perante seus olhos onipresentes. Ele não almeja seu mal. Apenas tirar essa sujeira, raspar, restaurar, fazer parar de doer. Que tal aproveitar a música e parar de resistir?

Nota: Esse singelo texto tem seu estilo inspirado em “Por que creio em Deus?” de Cornelius Van Til. Obviamente, com qualidade muito inferior à do velho mestre. Vale a pena procurar para ler!

 

Texto cedido gentilmente pelo autor. Você pode ler outros textos do autor neste link.

Por: Emilio Garofalo Neto. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: O argumento odontológico para a existência de Deus.