Um blog do Ministério Fiel
Tomar bebida alcoólica desqualifica um pastor?
Foi no verão de 2016, quando ondas de choque passaram por alguns círculos evangélicos. O pregador de uma das maiores igrejas “multi-sites” do país em franco crescimento, havia sido removido de seu posto. Depois de um processo prolongado, os outros líderes de sua igreja consideraram-no desqualificado para o ministério, citando, entre outros fatores mais gerais, 1 Timóteo 3.3 e seu uso exagerado de álcool.
Foi surpreendente para muitos, não apenas porque eles não o viam com um pregador conhecido, mas porque nunca ouviram falar de um pastor sendo desclassificado por beber. Relatos trágicos como imoralidade sexual e má administração financeira tem sido muito comum. Mas o uso excessivo de álcool?
A geração abstêmia
Das quinze qualificações para o pastor-Presbítero em 1 Timóteo 3. 1–7, “não dado ao vinho” pode ser a que a geração anterior de evangélicos tenha transposto mais prontamente. Não porque essa geração fosse alheia aos perigos do álcool, mas porque, para muitos, tomar parte disso era quase impensável. O legado da Lei Seca (Prohibition) havia resistido. Em grandes áreas, beber era desaprovado para todos os cristãos e especialmente pastores.
Meu caro, como os tempos mudaram.
É claro que a abstinência não era assumida em todas as classes de associações evangélicas, ou em todas as regiões, mas os vestígios do movimento de temperança do século dezenove continuaram a dominar muitos setores. Para minha avó sulista e batista, por exemplo, era imponderável que os mesmos lábios tocassem uma bebida e ainda fizessem uma profissão de fé credível.
Uma reação tão aguda aos perigos e excessos do álcool (especialmente bebidas destiladas) nas gerações anteriores, sem dúvida criou seus próprios problemas, mas esses não são tipicamente os problemas que enfrentamos hoje – pelo menos não nos círculos nos quais convivo. O pêndulo oscilou de fato. Considerando que os evangélicos de uma era passada podem ter se excedido em relação aos perigos do álcool, nós nos encontramos hoje na necessidade de líderes da igreja que não se tornem vítimas do mesmo conjunto de novas tentações que nossos rebanhos estão enfrentando.
O novo chamado é para pastores e presbíteros firmes e maduros o suficiente na fé para não apenas conhecerem suas liberdades em Cristo, mas também estarem prontos, em amor, a renunciar, por vezes, aos seus direitos para o bem dos outros.
Vinho para alegrar o Coração
A lista de qualificações de Paulo para o cargo de pastor-Presbítero começa com sete características desejáveis e, em seguida, dá quatro negativas, ou desqualificadoras, antes de terminar com três requisitos finais. “Não dado ao vinho” (grego mē paroinon, somente aqui e em Tito 1.7) é o primeiro dos quatro desqualificadores. Os diáconos, também, de acordo com 1Timóteo 3.8, não devem ser “dados a muito vinho”. Esses não são requisitos para a abstinência. “Não dado ao vinho” dificilmente significa “sem álcool”.
O Salmo 104.14–15 celebra os bons dons de Deus na criação, incluindo pão, azeite e “vinho, que alegra o coração do homem”. Provérbios 3.10 menciona “transbordarão de vinho os teus lagares” como uma bênção, não uma maldição – como uma promessa para aqueles que honram a Deus, não um mal. João Batista escolheu o estilo de vida do asceta, enquanto Jesus veio comendo e bebendo, e ambos eram sábios e justos (Mt 11.18,19; Lc 7.33-35). Para o seu primeiro milagre, é muito claro, Jesus fez o vinho da água (e não o inverso), e Paulo instruiu seu protegido a “usar um pouco de vinho por causa do seu estômago e suas frequentes enfermidades” (1Tm 5.23).
Aqueles que se levantam contra as antigas tentativas de “abstemizar” a igreja, ficam do lado dos anjos e contra o ensino de demônios (1Tm 4.1–5).
Avisos que não podemos ignorar
As afirmações acima, no entanto, não são de modo algum tudo o que Deus tem a nos dizer sobre o vinho e a bebida embriagante. Como John Piper resume: “Embora o vinho fosse permitido e fosse uma bênção, ele estava repleto de perigos”. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, as advertências ultrapassam em muito os elogios (em alguns casos, em mais de três para um). Isso não significa somente que devemos ignorar as recomendações claras. Mas significa, ainda mais, que não podemos ignorar as advertências.
Em todo lugar do cânon, a embriaguez é enfaticamente condenada. Muitas vezes serve como uma metáfora de incredulidade e julgamento. Lucas e Paulo fazem conexões entre ficarmos vigilantes com Deus e permanecermos vigilantes (sóbrios) neste mundo (Lc 12.45–46; 21.34–36; 1Ts 5.7-8). O excesso de bebida pode ser associado não apenas à raiva violenta (“não dados ao vinho nem violentos”, 1Timóteo 3. 3; também Lucas 12.45; Mateus 24.49), mas com rebeldia (Deuteronômio 21.20), imoralidade sexual e divisão (Romanos 13.13-14).
Provérbios liga excesso de beber com loucura (Provérbios 20.1; 23. 29-35; 26. 9-10) e pobreza (Provérbios 21.17; 23.20). O benefício da bebida no mundo criado por Deus não é negado, mas a ânsia ou a luxúria do desejar cada vez mais (como chamou C.S. Lewis) é exposta e desafiada. Os profetas de Deus denunciam aqueles que “se levantam pela manhã e seguem a bebedice e continuam até alta noite, até que o vinho os esquenta”! . . . “Ai dos que são heróis para beber vinho e valentes para misturar bebida forte”, (Is 5.11, 22).
Modelos de Julgamento
Consequentemente, a embriaguez torna-se uma imagem recorrente do julgamento divino nos profetas – em Isaías (19.14; 24.20; 28.7–8), Jeremias (13.13; 25.17; 51.7), Ezequiel (23.33), Naum (3.11), Oséias (4.11,18) e Amós (2.8; 4.1; 6.6). Quando nos voltamos para o Novo Testamento, a embriaguez não tem lugar na igreja, mas pertence ao curso deste mundo caído e ao padrão de rebelião contra Deus (1Co 15.34; Ef 5.18; 1Pe 4.3). Sem exceção, as referências à embriaguez são negativas (At 2.15; 1Co 11.21; Tito 2.3) – uma manifestação de incredulidade da qual os cristãos estão sendo salvos, ou de outra forma não herdariam o reino (1Co 5. 11; 6:10; Gl 5.19–21.
Os perigos existem para todo o povo de Deus e, em algum sentido, ainda mais para os líderes. Provérbios 31.4–5 adverte que “não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte. Para que não bebam, e se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos”. Quanto mais ovelhas são confiadas aos seus cuidados, mais trágico quando o pastor as abandona e o vigia abdica de seu posto (Is 56.10-12). “Ditosa, tu, ó terra cujo rei é filho de nobres e cujos príncipes se sentam à mesa a seu tempo para refazerem as forças e não para bebedice”. (Ec 10.17).
Renunciar a sua liberdade?
O chamado de Deus ao seu povo, e particularmente aos líderes que servem como exemplo para o rebanho (1Pe 5.3), não é simplesmente reconhecer a bondade da criação de Deus acompanhada de sua lista de advertências graciosas. Deus nos chama para amar. Olhar não apenas para nossos próprios interesses, mas também para os interesses de outros (Fp 2.4). “Mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo”. (Fp 2:3). Não apenas para manter nossos próprios narizes limpos, mas para olhar além dos nossos próprios narizes para as necessidades dos outros.
É bom saber que “nenhuma coisa é de si mesma impura”, (Rm 14.14), que “Todas as coisas, na verdade, são limpas”, (Rm 14.20). Sim, e amém. Mas pouco é distintamente cristão sobre tal conhecimento. Pode até ser dito que “O saber ensoberbece, mas o amor edifica”. (1Co 8.1).
Negativamente, Paulo nos adverte repetidas vezes para não colocarmos uma “pedra de tropeço” diante dos outros (Rm 14.13, 15, 20–21; 1Co 8.9, 13; 9.12). Ou, positivamente disse, ande em amor (Rm 14.15). Seguir o que faz a paz e edificação mútua (Rm 14.19). E adicionalmente, “Não seja, pois, vituperado o vosso bem”. (Rm 14.16) por causa de suas ações descuidadas e sem amor na presença de irmãos e irmãs menos maduros.
Para esclarecer, os “irmãos mais fracos” não são tipicamente os proibicionistas que procuram imprimir suas convicções pessoais em outros, mas sim aqueles que “por efeito da familiaridade” teriam suas consciências fracas corrompidas (1Co 8.7). Na sociedade moderna, tal preocupação com os outros pode significar nunca se envolver, ou pode significar fazê-lo com cautela e atenção regular ao contexto e à companhia. E não contribuindo com uma cultura onde seja somente uma questão de tempo que o lazer e a indulgência tragam o abuso.
Mesmo em uma festa
Como os pastores hoje podem procurar praticar esses princípios? Para começar, como maridos, pais e cristãos, nunca queremos ser incapazes de ajudar os outros – seja em uma festa ou não. As emergências não se anunciam com antecedência. E nossas bebidas são maiores e mais fortes do que nas gerações anteriores.
Por mais confusa que a linha entre um coração feliz e o uso excessivo possa ser, um aspecto da vida moderna nos dá uma maneira de objetivar a sobriedade: operar um veículo motorizado. Como homens prontos para cuidar de nossas esposas e filhos e de outros em tempo de necessidade inesperada ou emergência, nunca queremos ser incapazes de levar alguém em segurança para um hospital. E não importa quão grande seja a festa, nunca queremos ser incapazes de pensar com clareza suficiente para ajudar ou aconselhar alguém sob nossos cuidados. Deus nos chama a sermos sóbrios e estarmos disponíveis, sempre capazes de deixar de lado nossos próprios interesses para servir às necessidades dos outros em um momento inesperado. “Não ser dado ao vinho” significa mais do que apenas “não se alcoolizar”. Ele chama homens que são sempre confiáveis, “quer seja oportuno, quer não” (2Tm 4.2) – homens que nunca estejam incapacitados por sua própria falta de autocontrole quando você pede sua ajuda.
Os líderes qualificados na igreja devem ser homens que tenham crescido na maturidade pessoal de buscar preencher o vazio, que frequentemente sentimos, com a plenitude de Cristo e seu Espírito (Ef 5.18). Devemos apontar o caminho para conduzir corações inquietos para Deus, em vez de os tratar com álcool ou qualquer outra substância. Este é um teste vital: para onde nos voltamos para preencher uma alma vazia? Como podemos chamar nosso povo para festejar em Cristo quando estamos em falta em outro lugar? Os pastores devem ser exemplares no autocontrole (1Tm 3.2; Tito 1.8), para liderarmos a caminhada no sentimento paulino: “eu não me deixarei dominar por nenhuma delas”. (1Co 6.12) para que possamos em vez disso, ser escravizados de bom grado ao nosso Senhor, e avidamente prontos para agir em amor pelos outros, quando ele chama.
Os pastores também têm a oportunidade de modelar a moderação do “coração alegre”. Jovens cristãos que cresceram em contextos abstêmios só podem conhecer duas opções: abstinência total ou embriaguez. Em certos contextos, os pastores podem servir de exemplo para o rebanho, como em outras áreas, de celebrações sábias, amorosas e de coração alegre em relação ao uso de álcool.
Cristo não se agradou
Mas os líderes da igreja devem estar prontos para se levantarem mais do que simplesmente evitar a embriaguez. Paulo não diferencia os pastores como os únicos chamados, por vezes, a renunciar ao exercício das liberdades cristãs para o benefício dos outros. Ele queria fazer todos os cristãos crescerem em tal amor. No entanto, como acontece com outros aspectos esperados em relação à maturidade da fé, os líderes, em particular, devem exemplificá-los e modelá-los (para que todos cresçam em tal maturidade): “Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem…. não buscando o meu próprio interesse, mas o de muitos, para que sejam salvos”. (1Co 10.24,33).
Em relação às liberdades cristãs, os líderes da igreja não são necessariamente mantidos em um padrão mais elevado, mas são mantidos com mais rigor ao padrão de toda a igreja. Os líderes devem estar entre aqueles que melhor conhecem a verdade, que nem participar nem se abster podem nos recomendar a Deus (1Co 8.8), e que provamos alegrias únicas e satisfatórias não apenas nos momentos em que participamos em contextos seguros, mas também nos tempos em que nos abstemos por amor.
No fundo, o que inspira amor e preocupação pelos outros, nos pastores e no rebanho, é o próprio Salvador. Paulo diz: “Ora, nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação”. (Rm 15. 1,2). Em seguida, ele dá a razão mais importante: “Porque também Cristo não se agradou a si mesmo”. (Rm 15.3).
Jesus não simplesmente conheceu e exerceu seus direitos divinos. Em vez disso, ele escolheu abrir mão de seus direitos (Fp 2.6-7) para amar e resgatar-nos. Cristo não agradou a si mesmo. Jesus nos ama assim. Que privilégio e alegria receber e ecoar tal amor, quando ele chama, enquanto antecipamos o dia em que desfrutaremos com ele, sem nenhum perigo, o fruto da videira no reino de seu Pai (Mt 26.29).