Um blog do Ministério Fiel
Eu Creio
“Creio”
Comecemos esta exposição pela primeira palavra do Símbolo, “creio…”. Alister McGrath, em seu comentário ao Credo, afirma: “O Credo foi escrito em latim e (…) suas palavras iniciais — Credo in Deum — são tradicionalmente traduzidas por ‘creio em Deus’. (…) Traduções bem mais precisas seriam ‘tenho confiança em Deus’, ‘deposito minha confiança em Deus’ ou apenas ‘confio em Deus’. A tradução (…) tem o objetivo de expressar uma declaração bem mais vigorosa”.
Para aqueles que vieram de um contexto católico romano, o que costuma ficar na memória a respeito do Credo é de sua recitação automática, em algum momento da missa. A pessoa aprendeu o Credo através de alguma aula de catequese e, algumas vezes, o recitou sem pensar, sem tentar entender cada cláusula. Essa recitação mecânica acaba por distorcer o significado da primeira palavra do Símbolo. A primeira palavra desse texto exige confiança em Deus. Esta primeira palavra não está desconectada do restante do texto. A ideia aqui é que somente podemos recitar o texto se confiarmos no que o texto está ensinando a nós. De outra forma, “Credo” não faz sentido. Portanto, o Credo exige que eu, pessoalmente, confie de fato em Deus, que vem a nós como Pai, Filho e Espírito Santo. O Credo pressupõe uma relação de confiança, de entrega àquele que é a matéria de fé do próprio Credo. Então, o “creio” implica confiança, compromisso e obediência.
Visto que este documento é um resumo daquilo que é mais importante na Bíblia, isso significa que quando eu coloco minha confiança naquilo que está sendo recitado e confessado no Credo, estou me comprometendo com aquelas doutrinas e ensinos bíblicos que não são negociáveis e são dignos de nossa obediência em suas implicações. Isso porque a expressão “credo” ou “creio”, segundo J. N. D. Kelly, é “uma fórmula fixa que sumaria os artigos essenciais da fé cristã e que goza de sanção eclesiástica”. É uma afirmação dos pontos essenciais da fé cristã, com as quais se espera que todos os cristãos concordem. A ideia aqui é que eu, pessoalmente, preciso confiar no Deus que eu confesso; preciso me agarrar àquele que eu estou confessando, isto é, Deus em sua revelação como Pai, Filho e Espírito Santo.
John Wesley pode nos servir como exemplo de uma confiança e crença que se agarra ao objeto da fé. Lembre-se que Wesley era pregador e doutor em Teologia pela Universidade de Oxford e já havia servido na própria universidade, ajudara os pobres e os necessitados e servira como missionário na Geórgia, nas Treze Colônias (que se tornariam os Estados Unidos). Depois de ter feito tudo isso, ele experimentou sua famosa e dramática mudança de vida, na reunião dos morávios em Aldersgate, em Londres. Ele tinha acabado de voltar completamente derrotado de um trabalho missionário na Geórgia. Ele era ortodoxo. Suas crenças eram ortodoxas. Ele cria nas doutrinas bíblicas do pecado original, da justificação pela graça e da santificação. Algo, porém, faltava a ele. Como ele mesmo diz posteriormente, ele tinha a fé, mas de um escravo, de um servo, não a fé exercida por um filho. Até que ele foi desafiado por alguns cristãos morávios a ir a uma reunião deles, em Londres. Sobre isto, ele relata:
À noite [de 24 de maio de 1738] fui muito a contragosto a uma sociedade [reunião] na rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio do comentário de Lutero sobre a epístola aos Romanos. Por volta de quinze minutos para as nove [horas], enquanto ele estava descrevendo a mudança que Deus opera no coração através da fé em Cristo, eu senti o meu coração estranhamente aquecido. Eu senti que confiava em Cristo, em Cristo somente, para a minha salvação; e foi-me dada a certeza de que ele havia levado os meus pecados, os meus próprios, e me havia salvo da lei do pecado e da morte.
Essa é uma ilustração de um homem que conhecia intelectualmente as doutrinas centrais da fé cristã, que as abraçava e que chegou a pregá-las. Ele pregava sobre justificação pela graça. Ele pregava sobre a santificação como um princípio da vida cristã — de fato, Wesley enfatizava muito a santificação, de onde vem o motivo de Wesley e Whitefield, além de outros companheiros, serem chamados pejorativamente de metodistas, “os metódicos”. No entanto, apesar de tudo isso, Wesley ainda não tinha alcançado confiança no Deus vivo. Isso só veio a mudar com uma pessoa lendo o prefácio à epístola de Romanos que Martinho Lutero havia escrito quase duzentos anos antes. Enquanto alguém lia aquele prefácio, o coração de Wesley foi estranhamente aquecido, e ele provou uma transformação, uma mudança em seu coração – sola gratia, sola fide: somente pela graça, somente pela fé. Esse é um elemento importantíssimo. Quando eu digo: “creio em Deus”, a ideia que o Credo ensina é mais do que a mera adesão intelectual aos seus enunciados. O que este símbolo exige e requer, como eco do texto bíblico, é que nós confiemos, que nós obedeçamos e que nós sejamos compromissados com os enunciados daquele documento.
Em nenhum lugar da Escritura os escritores canônicos tentaram provar a existência de Deus a partir da Criação. A Bíblia já pressupõe que Deus existe, e ao pressupor a existência de Deus no texto sagrado, a fé é requerida. Não há um meio termo. Ou aquele que é alcançado pela mensagem bíblica crê naquele que inspirou o texto bíblico ou ele permanece em desobediência e rebeldia. Mesmo em Romanos 1.18-31, Paulo não está argumentando a respeito da existência de Deus a partir da Criação, dos graus de beleza da Criação, de Deus como o primeiro motor, ou usando algum argumento parecido. Paulo simplesmente constata que a revelação de Deus na Criação é clara, e que por causa do nosso pecado os seres humanos distorceram essa revelação, preferindo adorar a criatura ao invés do Criador, e que por isso somos todos igualmente alvos da ira e do desprazer de Deus. Paulo não está argumentando ali sobre a existência de Deus a partir da Criação. Ele lembra que a Criação já pressupõe a existência de Deus. O Santo, o Todo-Poderoso, o Invisível, mas Real. E o que nós fazemos é distorcer essa revelação preferindo adorar aves, quadrúpedes, répteis e o próprio ser humano.
O que a Escritura ensina é que a fé é exigida de quem se aproxima de Deus. As Escrituras não apresentam a menor tentativa de provar a existência de Deus — fé é requerida daqueles que se aproximam de Deus. Portanto, a resposta apropriada daqueles alcançados pela revelação é: “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc 9.24).
Ao exigir de nós fé e confiança no evangelho – uma vez que o Credo oferece o evangelho a nós, ao afirmar que Cristo morreu pelos nossos pecados, foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia dentre os mortos – somos lembrados que tudo o que temos provém do próprio Deus. A fé, para o Credo, não é uma obra meritória, mas é autodenúncia. Quando o cristão confessa a sua fé, ele deixa claro que é pecador e dependente da graça de Deus. Desta forma, a fé, para o Credo, lembra as últimas palavras de Lutero: “Somos mendigos, essa é a verdade”.
Neste contexto é importante afirmar que, seguindo o Catecismo da Igreja Católica, esta fé que é requerida de nós é uma graça concedida por Deus: Quando Pedro confessa que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, Jesus declara-lhe que esta revelação não lhe veio da “carne e sangue”, mas de “meu Pai, que está nos céus” [Mt 16.17; cf. Gl 1.15-16; Mt 11.25]. A fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por Ele. “Para prestar esta adesão da fé, são necessárias a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte o coração para Deus, abre os olhos do entendimento, e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’”.
Portanto, tal fé que afirma “creio em Deus”, é um dom concedido e sustentado pelo Espírito Santo (At 13.48; Ef 2.89; Hb 12.2).
Precisamos fazer um destaque provocador, nesta altura. O Credo não possui uma única palavra sobre o ser humano. Ele fala de Deus como criador, mas não fala do ser humano, como parte da criação. O foco do Credo é Deus: Quem é Deus, a obra de Deus na eternidade, a obra de Deus em Cristo, a obra de Deus por meio do Espírito na comunidade cristã. A ideia, então, é que quando nós confessamos o Credo, junto com nossos irmãos e irmãs, nós estamos confessando que dependemos da revelação; o que nós confessamos é matéria de revelação, que vem de Deus a nós nas Escrituras; somos mendigos, precisamos ser vestidos com a veste de Cristo, não temos capacidade de deduzir racionalmente, à luz da Criação, aquelas verdades enunciadas pelo Credo.
Crer está acima e além daquilo que nós podemos saber por meio da tradição, da experiência e da razão. Agostinho de Hipona escreveu: “Portanto, creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço”. O destaque de Agostinho é brilhante. De um lado, nós somos chamados a crer, a confessar. Porém, nós não teremos capacidade de explicar racionalmente tudo o que confessamos. Há alguns elementos da nossa fé que estão além da razão. Há que se reconhecer que há paradoxos na Escritura, e que há um elemento de mistério em alguns dos dogmas cristãos. Deus habita na luz inacessível, e nós ainda estamos em trevas. Ainda estamos tateando. Então, Agostinho, com muita percepção, lembra que algumas verdades cristãs são, por assim dizer, suprarracionais. Não são contraditórias, mas estão além da nossa capacidade de compreendê-las. Por isso, nós temos de confessar: “Creio em Deus”, “Eu confio em Deus”, “Eu obedeço à revelação dada por ele”. Então, o crer vai inclusive além mesmo da tradição, da experiência e da razão. Às vezes, nós até cremos contra nossa própria experiência e cremos mesmos sem entender completamente os enunciados da nossa fé. Há que se manter algum nível de mistério ao confessarmos as doutrinas básicas da fé cristã.