Estrelas na Estrada: Um Conto de Natal

Parte 1

Uns dois mil anos atrás…

À medida que caminhavam, aproximando-se da pequena vila, seus olhares manifestavam certa surpresa – e, ainda assim, certa compreensão.

– Então será aqui?

– A menos que Davi tenha nascido em outro lugar…

– Não… Eu sei… É que… bem…

– Eu disse que nos atrasamos. Atrasamos a saída e fomos atrasados na estrada.

– Mas… Não era pra nós cuidarmos disso? Do tempo de viagem e de…

– E cuidamos, Dara. Mas, mesmo nós, não controlamos tudo. Só Ele faz!

– Só Ele faz! – Dara concordou, mas ainda tentava compreender os detalhes…

No Oeste, o sol baixava e eles podiam ver as sombras alongadas do casal e da montaria. Maria – a “Menina”, como Zaniel costumava chamá-la – tinha apeado e andava ao lado do marido. O céu limpo alertava para mais uma noite fria. Dara reparou em dois pastores que tocavam umas poucas ovelhas colina acima, ao sul da vila. Certamente reunindo algumas desgarradas. O entardecer seria curto e aqueles homens não estavam muito ligados na paisagem.

– Você conhece as Letras, Dara. Por que está com essa cara?

– Eu sei, eu sei. É que… há uma sombra sobre tudo isso…

– Sempre houve… mais que uma sombra…

– Sim. Esse é o problema. Isso é que me intriga.

– Como assim?

Dara respondeu, desviando os olhos do casal para o sol que começava a desaparecer atrás de um monte.

– É que… para haver sombra… tem que haver luz…

Parte 2

Cerca de 9 meses antes…

 – Essa Menina anda rápido – disse Zaniel. Na verdade,não fazia a menor diferença para ele e Dara: anjos não se cansam como os humanos.

– Nem parece que está grávida.

– Ela nem tem duas semanas, Dara. E nem tem tido enjoos.

– Enjoos? Isso dá enjoo nelas?

– Onde você esteve nos últimos oito mil anos?

– Achei que você soubesse que eu…

– Deixa pra lá. Veja aquele grupo montado a cavalo.

– Salteadores?

– Eu não vou esperar pra ver. Essa caravana a que ela se uniu não é grande. Não conseguiria se defender muito bem. Vamos.

As formas invisíveis se elevaram em direção ao grupo de homens. Eram uns cinco, mas estavam excepcionalmente bem montados e armados. E estavam mesmo de olho na pequena caravana.

Os anjos se colocaram entre os dois grupos. Dara, sempre mais afoito, se adiantou. Expandiu sua presença e logo os cavalos foram agitados. O incômodo aumentou e passou aos homens que, olhando-se confusamente, saíram dali na direção do poente. Não iam devagar…

– Você gosta disso, não? – Disse Zaniel.

– Ué?! É divertido, não?

Zaniel virou os olhos pra cima, desistindo. Depois fez um sinal e eles voltaram para perto da caravana.

No dia seguinte, ainda pela manhã, uma pequena cidade apareceu logo após uma colina. Ao chegarem a ela, Maria se separou da caravana e foi em direção ao sul da vila. Não demorou muito a chegar à casa de Isabel e Zacarias. Dara e Zaniel seguiam próximos, ainda invisíveis, mas agora caminhando logo atrás de Maria. Ela, saindo da estrada atrás de um grupo de pequenas árvores, viu Isabel, de costas para ela, parada a meio caminho da entrada de sua casa e parecendo esticar as costas com as mãos apoiadas nos quadris. O coração de Maria se encheu de uma alegria peculiar, lembrando o que Gabriel lhe havia dito sobre a prima. Isabel ouviu os passos de Maria sobre algumas folhas secas e se virou. Maria se adiantou:

– Paz, minha prima!! Paz sobre você e sua casa! Que o Senhor mantenha Seu rosto levantado sobre você e sobre a criança com que Ele abençoou você e seu marido!!

– Você sentiu? O que foi isso? – Dara olhava em todas as direções. Parecia procurar qualquer outra coisa – ou alguém – que também estivesse invisível. Pássaros saíram em revoada e um vento inesperado curvou um trigal existente numa encosta próxima.

– Eu não sei, respondeu Zaniel. – Nunca vi isso acontecer. Pelo menos não desse jeito!

Passado o momento, os dois ficaram atentos à conversa das duas mulheres. À medida que ouviam ficavam cada vez mais extasiados.

Zaniel, você tem mais experiência nisso do que eu. Mas eu acho que não nos deram uma missão comum, como as outras que tivemos.

– Não. Nada disso é comum. Tem alguma coisa nova acontecendo.

– Você conversou com Gabriel?

– Impossível! Ninguém consegue um tempo com ele, atualmente. Tem sido chamado ao Trono várias vezes; e sai numa velocidade…

Dara pensou um pouco. Parecia receoso de perguntar o que lhe vinha à mente.

Zaniel,… Você ouviu usarem a expressão “filho do Altíssimo”?

Zaniel olhou seu companheiro diretamente nos olhos… Uma sombra de espanto e temor se projetava sobre seus rostos. Ele tornou a olhar na direção das duas humanas, ambas grávidas, ambas tocadas por Ele… E ambas mortais.

As mulheres cantavam, agora. A Menina tinha acabado de entoar uma magnífica expressão de exultação. Isabel havia esperado que ela terminasse e, quando isso aconteceu, abraçou longamente a prima. As duas, ainda cantando, dirigiram-se para a casa.

Quando a porta se fechou o mundo pareceu estranhamente quieto aos dois anjos. Parecia que nenhum som se fazia ouvir. Era como se eles acabassem de ouvir a mais maravilhosa das melodias. Dara quebrou o silêncio:

– É como se eu nunca tivesse ouvido nada assim, antes.

– Sabe o que mais? – Atalhou Zaniel, que agora olhava o sol relativamente novo, daquele dia. – Eu acho que é só o começo.

Parte 3

O sol já havia desaparecido atrás dos montes e apenas a insegura claridade do anoitecer teimava em permanecer. O lusco-fusco tornava mais difícil a caminhada para o casal, mas eles já estavam quase entrando no vilarejo. Porém, não foi difícil para Zaniel perceber imediatamente o vulto que saía do pequeno aglomerado de casas e vinha em direção a eles. Um sorriso se formou em seu rosto.

– Quem diria? Eu quase havia me esquecido…

Dara seguiu o olhar do companheiro, em direção à aldeia.

– Quê? AhnQuem?…

– Ariel!!

– Aquele é Ariel? O Ariel? – Perguntou Dara olhando para o estranho que se aproximava e que, sem ser visto ou percebido, cruzava agora com José e Maria.

– Exatamente! Ele tem atuado nessa região muitas vezes, mas não achei que estaria aqui agora.

Ariel tinha o aspecto de um guerreiro fabuloso. Era mais alto que qualquer dos outros dois e tinha volumosos cabelos cor de mel. Seu olhar era penetrante, como de todos os anjos, mas com um certo ar felino. Ainda assim, toda a expressão de seu rosto transmitia cordialidade e grande alegria. Um enorme sorriso estampava seu rosto.

– Salve, Luzes do Amanhecer!! Chegam nos limites da noite, mas trazem o brilho d’Ele com vocês!! Zaniel!! Quanto tempo!!

Os dois se abraçaram fortemente. Irradiavam alegria – e alguma surpresa.

– O que você faz aqui… de novo? – Perguntou Zaniel.

– Você sabe que eu sempre tive predileção por essas montanhas. As terras altas de Judá são como minha casa. Então, quando soube que o tempo tinha chegado, pedi permissão para vir. Consegui imediatamente!!

– Fácil assim? Geralmente não é tão simples. – Interrompeu Dara que começava a se sentir parte da paisagem.

– Desculpe, Ariel. Não apresentei meu companheiro. Este é Dara. Fomos designados para acompanhar o casal.

– Salve Dara!! Quem anda com Zaniel deve estar entre os mais experientes, com certeza. Seja bem-vindo!! E, sim, também achei estranho uma liberação tão rápida. Mas tive a impressão de que querem muitos de nós aqui, esses dias. É sua primeira vez em Belém?

Os três já estavam novamente junto do casal, que se apressava para chegar à vila com alguma luz.

– Sim, primeira vez. Essa região é um lugar especial, não?

Um brilho – se é possível – passou pelos olhos de Ariel.

– Sim, é. Desde os tempos antigos. Eu me lembro como se tivesse sido na madrugada passada… – Os olhos do anjo olhavam pro norte, mas ele não parecia estar vendo a campina que se estendia naquela direção – parecia estar vendo além.

Um pouco mais de 20km, depois de Jerusalém.

– O quê? – Perguntou, ansioso, Dara.

– Jacó sonhou. Lembra? Uma escada? Eu estava na escada. O sonho foi uma projeção das escadarias do Trono. Eu estava lá…

– Tempos depois,- continuou – ele enterrou Raquel nessa estrada. Aquele foi um dia triste: nasce um filho, morre uma esposa… Foi bem ali, perto daquela elevação em forma de rampa – que, na época, não existia ainda.

– Os peregrinos vêm orar naquela construção, mais adiante. – interpelou Zaniel.

– Então são dois erros, não meu amigo? Um, o de buscar a intercessão dos mortos; o outro, fazer isso no lugar errado… Os humanos…

José e Maria haviam entrado na vila e se dirigiam para a principal estalagem do lugar. Um décimo de segundo e os anjos estavam com eles.

– Bem… Finalmente chegamos. – Disse Dara.

– Sim, apesar da demora.

– Você sabe que nunca há demora nos planos dEle.

– É, eu sei. – Finalizou Zaniel.

– Você dizia que esse é um lugar especial, Dara! – Ariel falava com a voz ligeiramente alta, como que entusiasmado.

– E não é mesmo?

– É. Faltou mencionar o evento que nos fez vir pra cá, acontecido bem depois da era dos patriarcas… Davi.

– Sim. Essa criança vai nascer na cidade natal do Grande Rei. – Falou Zaniel.

– Então… Um príncipe. Um príncipe nascido de pais sem reino… – Dara observou.

– E, ainda assim, o Reino Lhe será dado! – Ariel tinha o rosto mais brilhante ainda.

Dara se virou para ele e perguntou, intrigado:

– Você sabe de alguma coisa que nós não sabemos?

Ariel olhou para os dois. Um leve sorriso se formou no canto dos lábios.

– Só desconfio… Vamos. O lugar está cheio. Acho que podemos nos materializar aqui sem problemas. Vejamos o que eles estão fazendo na estalagem.

Dizendo isso saiu na frente em direção à porta por onde o casal tinha entrado.

Parte 4

Pouco mais de dez mil anos atrás

Um clarão, um raio, um som prateado…  e lá estava Dara, surgindo de repente, afoito e com os olhos arregalados!

– Onde será? Onde? Acabei de chegar…

– Ainda não nos foi dito – disse um anjo cujo brilho cintilava ligeiramente âmbar. Seu nome era Zarius.

– Não? – Dara parecia aliviado, se isso é possível. Ele olhou em volta com mais atenção, pela primeira vez. – Parece que estão reunindo todo mundo. – Ele pensou alto enquanto mais jatos brilhantes de luz surgiam e se transformavam numa espécie de refração resplandecente, cada brilho diferente em cor e intensidade dos outros. Cada um que chegava logo se envolvia em animada conversa com os demais. Dara ouviu atento, por um tempo. Algumas palavras se destacavam do burburinho das vozes – ou do que seria voz se a luz falasse: “matéria”, “físico”, “corpo”, “água”, entre outras. Dara tentava compreender o sentido do que ouvia e percebeu que, aparentemente, todos – ou talvez a maioria – estavam fazendo a mesma coisa.

– Matéria? Sério?

– Sim. – respondeu Zarius. – Você sabe o que é?

– Claro. Eu ouvi uma palestra de Miguel, uma era dessas. Mas,… então… Ele…

– Não sabemos ao certo. Só Ele faz.

– Só Ele faz.

Uma voz, que só muito tempo depois seria descrita como “de muitas águas”, foi ouvida:

– Ajuntem-se!

E, num momento, todos estavam num certo ponto, distante da origem uma era inteira. Vale dizer que “um momento”, naquela realidade, escapa totalmente à nossa compreensão.

Então… A Presença!

O próprio fulgor e resplandecência de todo aquele ajuntamento de seres celestiais pareceram escurecer, embora não tivesse havido nenhuma mudança neles mesmos. Eram milhões de milhões e, ainda assim, estavam agora como uma sombra.

Com A Presença veio A Canção! E com a Canção e a Presença, O Vigor!

O efeito foi explosivo: toda aquela massa luminosa se desfez em música líquida, pois não era produzida por nenhum aparato, orgânico ou não, e nem se sujeitava a nenhuma lei física. Era a luz cantando – como seria se as estrelas, ainda não existentes, resolvessem fazer um musical.

O que se seguiu com os Filhos de Deus não pode ser descrito em palavras. Pois a canção entoada vibrava de acordo com a compreensão e os sentimentos, à medida que eles, atordoados, percebiam o que estava sendo feito. Começou com a luz – e era uma luz diferente, física, possuindo uma glória diferente daquilo que, neles mesmos poderia ser chamado de luz. A admiração crescia – e a música também.

Fundamentos foram lançados, medidas foram tomadas, cordéis foram estendidos, sempre pela palavra da Presença, a voz da Canção, e o pairar do Vigor, que a tudo energizava, moldava. O fulgor das cores angelicais se misturava pela primeira vez com esse novo ambiente e a refração causada explodia como um feixe de múltiplas direções, parecendo iluminar os recônditos mais afastados do novo ambiente criado – mais tarde chamado de Universo.

Era como se o regozijo fosse o ambiente dentro do qual os céus, a terra e o mar surgiram.

E agora, juntamente com os outros, Dara se aproximava daquela nova e estranha expressão da Glória. Sua atenção foi imediatamente atraída pelo mar. Pairou acima dele um tempo e, após alguns instantes, tocou-lhe a superfície. Outros anjos faziam o mesmo e eles se entreolhavam, fascinados. Dara mergulhou, sua forma luminosa mesclando-se com a água. Não sabia descrever a sensação e, tão rápido quanto entrou, saiu. Ainda não sabia como calibrar a refração celeste de sua presença naquele meio físico específico. Enquanto pensava sobre isso, reparou que vários companheiros se dirigiam para um ponto às suas costas. Foi pra lá e reparou que o mar terminava e começava uma massa de matéria diferente, sólida. Mas não era isso que chamara a atenção de seus amigos e sim dois seres que ali estavam. Zarius se colocou novamente a seu lado:

– São eles, Dara. Um homem. Uma mulher. Notou que eles…

– …têm a forma do Filho…  Eles… Uau!!…

Ninguém soube dizer exatamente quanto tempo durou a canção, exceto Ele – A Presença, a Canção e o Vigor. Mas nenhum dos anjos jamais se esqueceu do momento.

Quando acabou, Dara achou que nunca mais veria algo tão fascinante, inesperado e maravilhoso como o que acabara de presenciar.

Mas, muito tempo depois, próximos a uma pequena vila, perdida num canto do mundo, ele e seus amigos seriam lembrados, mais uma vez, que só Ele sabe o que alguém verá, ouvirá ou… cantará.

Só Ele faz.

Parte 5

– Acho que devíamos fazer alguma coisa.

– Nós estamos fazendo, Dara.

– Estamos parados, Zaniel.

– Estamos fazendo o que nos foi dito…

– Mas eles… Ela… Você a viu… Ela está extenuada, Zan!

Zan? Ele chama você de Zan? – perguntou Ariel, interferindo pela primeira vez na conversa.

– Só quando quer me convencer de alguma coisa.

– Eles já bateram em várias portas. Ela vai dar à luz a qualquer momento.

– Eu sei, Dara.

Os três andavam alguns metros atrás do casal. A intensa movimentação de pessoas, na vila superpovoada em função do censo, começava a diminuir à medida que todos se dirigiam para suas casas. O frio da noite começava a chegar com intensidade.

– Melhor desmaterializar. Daqui a pouco eles vão notar a gente… – observou Ariel.

– Claro, pois só haverá nós e eles na rua…

Dara!… – Censurou Zaniel, desaparecendo em seguida – no que foi imitado pelos outros dois.

– Aquela terceira casa poderia tê-los abrigado. – Dara continuou num tom bem mais humilde. – E nós estaríamos lá, também. Eles teriam hospedado anjos, sem saber…

– Algum dia alguém ainda vai escrever sobre isso. – Disse Ariel, rindo.

– Será que é para eles passarem a noite na rua? – Perguntou Dara,

– Se for pra ser assim… Ele sabe o que faz!

– Só Ele faz! – ajuntou Ariel.

– Só ele faz! – repetiu Dara.

Caminhavam em silêncio, agora. O céu ia ficando de uma nitidez intensa, à medida que a noite chegava. E a temperatura caia um pouco mais. Os três pararam, observando enquanto José tentava, mais uma vez, achar um lugar onde pudessem ficar – e, ao que tudo indicava, esperarem a chegada de seu bebê.

Enquanto aguardavam, Dara observou em volta. Um incômodo crescia dentro dele causado, justamente, por aquilo de que necessitavam. Havia um ar de aconchego, de fogo acesso e comida quente no interior das casas próximas. Podiam perceber, com seus sentidos apurados, as vozes que se achegavam umas às outras, junto às panelas e terrinas de comida. Dara pensava em como seria fácil forçar e arranjar um lugar para o casal – e também como isso seria um ato de desonra sem preço. Os outros dois, embora um pouco mais acostumados ao comportamento humano, compartilhavam com ele do incômodo percebido. José voltara para junto de Maria e balançava a cabeça negativamente. Ela juntou mais o manto que a cobria, olhando o final da vila logo à frente. Os três anjos perceberam quando o rosto cansado da Menina retornou um sorriso encorajador pro marido, enquanto ela dizia algo.

Se feixes de luz podem se emocionar, então foi o que aconteceu.

– “Vamos continuar… Algo vai surgir…” – falou Zanielrepetindo as palavras que acabara de ouvir. Olhou para Dara e Ariel, um leve sorriso estampado no rosto, e inclinou a cabeça indicando que o casal já se movimentava.

Um barulho atrás deles chamou a atenção. Ao voltarem-se em direção ao som, viram um rapaz que acabara de sair da última porta visitada pelo casal. Olharam enquanto o jovem passava por eles, apressadamente, e se dirigia a José e Maria:

– Peregrinos, peregrinos!!

José voltou-se imediatamente. O jovem parou diante dele, curvou-se e, um pouco ofegante, continuou:

– Meu Senhor pede que o perdoem, mais uma vez, pois realmente não temos nenhuma vaga na estalagem. Ele fica constrangido de oferecer o único lugar possível e o faz para que vocês tenham onde se abrigar. Mas, de antemão, pede que o desculpem.

– E que lugar seria esse? – perguntou José enquanto os anjos prestavam toda a atenção à conversa. O servo, visivelmente envergonhado, tinha os olhos voltados para o chão quando respondeu.

– Dando a volta por trás da vila, há uma, ahn… pequena gruta que tem servido… – ele falava tão baixo, agora, que se não fosse a privilegiada audição dos anjos, não teriam conseguido ouvir o que dizia.

– Sim? – Incentivou Maria, agora olhando com atenção o rapaz.

– Tem… servido de estrebaria para a estalagem…

Os anjos se olharam, estupefatos. Por um momento, se alguém olhasse na direção deles, veria uma leve ondulação na noite, um reflexo de refração.

– Estrebaria?! – José elevara um pouco a voz. O servo continuou com alguma dificuldade.

– Mas, meu senhor, é pelo menos um local abrigado. A palha é nova e seca; eu mesmo fui quem a recolheu hoje, mais cedo. E meu mestre está separando um ou dois braseiros que poderão aquecer o lugar com segurança…

– Eu poderia mostrar pra esse sujeito como se aquece mesmo um lugar. E com as pessoas dentro! – Disparou Dara, que não conseguia mais esconder a indignação.

– Dara! – A voz de Zaniel era quase dura, agora. – Nem pense nisso. Se houvesse alguma intervenção a mais a ser feita teríamos sido informados. Controle-se. Vejamos o que vai acontecer.

– Mas… – Tentou Dara, ainda.

– Dara!! – O tom de Zaniel foi definitivo. Dara calou-se. A conversa havia prosseguido entre os outros três caminhantes que, agora, se dirigiam para o fim do vilarejo com o objetivo de dar a volta para os fundos da rua. Aparentemente Maria havia interferido na crescente indignação de José e argumentado que uma estrebaria seria melhor que nenhum lugar. O jovem servo os deixara por um instante, indo atrás de uma tocha. A noite caíra rapidamente nos últimos minutos e o frio aumentava. O rapaz reapareceu com a tocha, seguido por outro, mais novo, que trazia uma grande caixa aparentemente bem pesada. Num instante, todos haviam dado a volta e se viram parados diante de uma pequena e escura entrada existente na encosta que abrigava parte da vila dos ventos vindos do oeste. Os dois rapazes entraram rapidamente e começaram a mover coisas de um lado para outro. Um deles saiu com uma vaca e um jumento que, de alguma forma, cabiam juntos, lá dentro.

– Vou pô-los aqui ao lado, sob esta cobertura. Eles ficarão bem. – Dizia o mais velho, ansioso. – A encosta protege dois lados; o tapume, ali, protege mais um. E nós vamos… …

Os cinco ficaram olhando enquanto os dois jovens trabalhavam. Rapidamente uma forração foi feita, de modo que, com um pano grosso e limpo, um monte de palha passou a se parecer com um colchão. Um pano mais fino foi posto por cima. Dois fogareiros foram colocados, um de cada lado da “cama”. Uma lamparina, que ali já estava, foi acesa e recolocada em seu lugar, no alto. Enquanto o rapaz mais novo desapareceu, apressado, em direção à estalagem, o mais velho continuava a trabalhar: a grande caixa, deitada de lado, virou uma espécie de mesa e armário; uma bilha considerável foi colocada sobre ela, cheia de água; mais lençóis e panos limpos surgiram, de dentro da caixa, e foram cuidadosamente colocados sobre o colchão. O servo mais jovem retornou trazendo uma espécie de bandeja de borda alta na qual havia uma terrina fumegante, com sopa. Duas cumbucas e uns talheres, além de um pedaço de pão, estavam junto à terrina. Ela foi colocada sobre a mesa improvisada e os dois jovens ficaram parados em pé, meio de lado, olhares ansiosos como que a esperar a aprovação do casal. Maria e José se adiantaram um pouco, parando na entrada da gruta-estrebaria. Zaniel olhou para Dara com uma expressão de “Não falei?” estampada no rosto. Dara assentiu, com a cabeça. E assim ficaram os sete, parados por uns segundos. De repente, Zaniel pareceu ter um estalo:

Êpa! Agora eu tenho que intervir!! – Dizendo isso, ele se deslocou aproximando-se do servo mais jovem. A atitude do anjo, invisível e radiante, se tivesse que ser descrita em termos físicos, seria algo como uma cotovelada discreta…

O mais jovem dos serviçais, tendo uma espécie de sobressalto, pareceu notar, de repente, a barriga de Maria. Saltou para os fundos da estrebaria e trouxe de lá uma manjedoura de tamanho pequeno. Rapidamente colocou-a ao lado da “cama”, forrou com palha nova e limpa, e recobriu com um pano também limpo. Voltou a se colocar ao lado do companheiro com o olhar meio ansioso, meio satisfeito, aguardando.

Maria olhou, e sorriu.

José sorriu.

Os dois servos sorriram, aliviados e recompensados.

Os três anjos sorriram também.

– Por que a manjedoura? – Perguntou Dara, intrigado.

– Eu não sei. Mas fui ordenado a proceder assim. – Respondeu Zaniel.

E os três ficaram olhando o quadro, como que a memorizar cada detalhe de toda a cena.

Parte 6

– Essa foi mais forte.

– Deve ser a qualquer momento, agora.

– O garoto não terá encontrado a parteira, ainda?

– Dara, você poderia… Dara? Cadê ele?

– Onde você acha? A esta altura deve estar arrebatando o rapaz e fazendo-o voar – literalmente – até à mulher. – Respondeu Ariel contendo o riso.

Nem ele nem Zaniel perceberam o momento em que Dara saiu. Estavam completamente atentos ao que ocorria na gruta-estrebaria: Maria tinha provado uma colher da sopa trazida quando, repentinamente, curvou-se, deixando cair o resto no chão. José a ajudara a se deitar e pediu a Simão – o servo mais velho – para trazer uma parteira. O rapaz saiu e as contrações continuaram, cada vez mais próximas umas das outras.

– A Menina está incrivelmente calma para quem está dando à luz pela primeira vez. – Comentou Zaniel.

– Estou vendo. Há graça sobre ela, você sabe.

– Sim. E até por isso, embora seja a primeira vez com ela mesma, a Menina já auxiliou parteiras antes. O parto mais recente foi o de João, filho de Zacarias e Isabel.

– Só não entendi porque ela pediu ao marido para ficar na porta, quase fora da gruta! – Os dois anjos se voltaram ao ouvir esse comentário vindo de trás deles. Era Dara que acabara de chegar, sozinho, e com um semblante intrigado.

– Salve, Dara! Estávamos imaginando o que você estaria fazendo. – Disse Ariel.

– Eu tentei auxiliar o rapaz. Encontramos a parteira. Mas, aí, parece que toda sorte de coisas aconteceu para atrasá-la. Acabei percebendo que há algo mais acontecendo. De qualquer modo, vão se atrasar, pelo que estou vendo.

– Não há atrasos aqui, Dara; e você sabe disso. Ele faz tudo no tempo perfeito.

– Só Ele faz!

– Só Ele faz! – Dara repetiu. Um momento de silêncio se seguiu enquanto Maria experimentava outra contração.

– Então? – Insistiu Dara. – Por que ela pediu que o marido ficasse à porta?

Foi Aziel quem respondeu.

– As mulheres são mais fortes que os homens pra esse tipo de coisa. José não sabe o que fazer e o nervosismo dele pode acabar afetando Maria. Assim, ela – como a maior parte das mulheres – prefere enfrentar isso sozinha, embora mantendo-o por perto. – E, depois, olhando diretamente para Dara. – Você não conhece muito os humanos, não?

– Achei que Zaniel havia lhe falado que eu…

– O rapaz está voltanto. – Interrompeu Zaniel. – E vem sozinho!…

Os três observaram enquanto Simão se dirigia a José e falava com ele. Quando o rapaz foi embora, José se voltou e disse a Maria o resultado da busca.

– “Está vindo, mas ainda está longe.”? – Dara repetiu as palavras de José, tentando entender.

– Está tudo no controle Dele, Dara. Só Ele faz!

– Só Ele faz. – Repetiram Dara e Ariel.

– Só Ele faz!! – Disseram três vozes atrás deles. Os três se voltaram. Quem olhasse com atenção, se soubesse o que procurar, teria a impressão de ver o ar frio da noite parecendo refratar-se, ligeiramente.

– Uriel! Sorath!! Vocês aqui? – Exclamou Ariel com surpresa, esquecendo-se de saudá-los. – Quase não os vejo desde… desde Sodoma!

Hemã!! – Falou Dara. – Você também?! Que surpresa! Mas… Você… Então… Vai haver música?!

Enquanto os seis anjos se olhavam, Zaniel se recuperou da surpresa:

– Salve! Estrelas da Alva! Chegam à noite, mas trazem a luz do Trono com vocês! Sejam bem-vindos!!

Enquanto falava, muitos outros foram surgindo ao redor. De fato, se não fossem capazes de se moverem em dimensões diferentes da física, seria impossível o ajuntamento.

Uma resplandecência ligeiramente âmbar se colocou ao lado de Dara.

Zarius!! – Dara exclamou com alegria, e abraçou o amigo. A quem conseguisse ver, a pequena vila de Belém pareceria ter desaparecido em meio a uma enorme constelação de brilho celestial. O jumento e a vaca, postados à esquerda da entrada da gruta, pareciam ter os olhos arregalados. Mas nunca se soube se viram ou perceberam alguma coisa.

Apesar da surpresa inicial, não houve tempo para cumprimentos e conversas – Maria acabava de ter mais uma contração.

– José! – Apesar do que pudesse preferir, ela chamou o marido. Se pudesse ver, José perceberia uma multidão de mãos luminosas a conduzi-lo na direção da esposa. Mas foram as mãos de José que seguraram as de Maria. A contração passou. O silêncio angelical, desnecessário já que os humanos não os ouviam, parecia afetar o ambiente, de alguma forma.

– Há algo estranho aqui, não? – Observou José.

Acho,… – falou Maria, rosto suado, entrecortando as palavras – …acho que… ainda vamos ver… muitas coisas estranhas, José.

– Você acha?! – Exclamou Dara, repentinamente. Sentiu milhares de pares de olhos em sua direção, expressando surpresa com a quebra do silêncio.

Mas isso não durou muito, pois, naquele exato momento, duas auras se apresentaram e, diante delas, todos inclinaram ligeiramente a cabeça: Miguel e Gabriel entraram na gruta andando, como se tivessem vindo pela estrada até à vila e à estrebaria. Dara olhou para Zaniel e, se anjos podem arregalar os olhos, era isso que estava estampado em sua face, como a perguntar “Miguel? Miguel aqui?!” O momento, já solene, se revestiu de uma intensidade maior. A maioria não sabia exatamente o que tudo aquilo significava; todos estavam prontos para qualquer missão à voz de qualquer palavra de ordem que fosse dada, mas não estavam a par de todos os detalhes. Esperavam e se admiravam quase com a mesma disposição. Enquanto os dois recém-chegados se dirigiam para o casal, Dara e os demais, considerando tudo até ali, sentiam crescer dentro deles o espanto, a expectativa – e uma mistura de intensa alegria com uma conclusão que, se traduzida para nossa linguagem, teríamos de usar a palavra apavorante…

Em poucos minutos as contrações aumentaram. Finalmente, com um grito mais de esforço que de desespero, Maria curvou-se uma última vez enquanto José, nervoso e desajeitado, procurava ajudá-la.

Um choro se ouviu na noite em Belém.

Todos os anjos se puseram sobre um dos joelhos, a começar por Miguel.

A Canção, depois de milênios, estava sendo entoada outra vez…

Parte 7

Três horas depois

– Isaías?

– É. Isaías.

– Posso imaginar várias razões, Dara. Por que, especificamente?

Zaniel, Dara e Ariel estavam sobre a elevação, acima da gruta-estrebaria. Estavam em forma humana, sentados e conversando sobre tudo o que tinha acontecido.

– Bom… Acho que entendi mais coisas esta noite do que nos últimos anos. – Disse Dara com um olhar voltado para a luminosidade fraca que se via na frente da gruta.

– Todos nós, meu amigo, todos nós. – Observou Ariel.

– Mas, – insistiu Zaniel – O que, especificamente, sobre o profeta?

Dara pensou um pouco e respondeu.

– Há duas coisas em minha mente. A visão no templo, no chamado para a missão. Os serafins… como todos nós… não ousamos olhar para o Trono diretamente. Quem se atreveria? Quem poderia?

– Sim. Eu sei. Eu estava lá. – Disse Ariel. – Ficamos em segundo plano enquanto os serafins cumpriam sua missão. Nenhum de nós seria tolo de olhar. Mesmo sendo uma visão dada ao profeta, era uma projeção de nossas atividades próximas ao trono.

– E? – Insistiu mais uma vez Zaniel.

– E agora… o Filho… Ele está ali… Como? Você sabe: Ele é infinito! Temos visto e nos alegrado com Suamajestade por eras e eras. É… É como…. Sabe? É como se naquela estrebaria… Uma estrebaria…

– Entendi – Disse Zaniel. – É como se aquela estrebaria fosse maior por dentro…

– Como se todo o universo criado coubesse ali… – Completou Ariel.

– Mais que o universo… Muito mais…

– Só Ele faz! – Disse Zaniel.

– Só Ele faz! – Repetiu Ariel.

– E não é só isso… Qualquer um pode olhar para ele, tocar nele. Ele tem que ser cuidado…

– É mesmo… – Ariel tinha um sorriso nos lábios enquanto falava. – Vocês viram a surpresa no rosto da parteira? Quando ela chegou e viu que o Senhor já havia… ehr… nascido…

– Ainda assim ela acabou ajudando bastante o casal. Maria estava exausta e José… bem… até que pra um macho humano ele não se saiu tão mal… – Falou Zaniel.

– De qualquer forma… A parteira cuidou Dele… Ele… precisou de cuidados…

Zaniel e Ariel, entendendo o significado disso, olharam para Dara alguns instantes. Depois os três desviaram os olhos para o horizonte ainda escuro e frio daquela madrugada. Faltavam várias horas ainda, para o amanhecer.

– Cada segundo de tudo que aconteceu nas últimas horas está gravado na minha mente. É assim com vocês também?

– Ah, claro, Dara. – Disse Ariel, espirituoso. – Até porque você mesmo se encarregou de ajudar nisso, não é “Zan” ?– E riu gostosamente.

– Com certeza, meu nobre Ariel. Com toda a certeza…

Pouco mais de duas horas antes

A resplandecência agora era tão forte, dentro e em volta da estrebaria, que devia equivaler à potência de vários sóis reunidos. Os anjos acompanharam o trabalho final da parteira – que, tendo perdido o parto, pelo menos auxiliou na limpeza, lavagem e arrumação do bebê. Ela o tinha nos braços, já limpo, quando perguntou a Maria sobre roupas ou panos. Maria pediu que lhe entregasse o filho enquanto tirava de uma sacola alguns panos, tiras trazidas para emergências nas viagens (algumas vezes tais panos eram usados para enrolar os mortos, no caso de alguém vir a falecer durante uma jornada).

Maria mesma envolveu seu bebê nos panos e o pôs na manjedoura, ao lado de sua “cama”. Os anjos não perdiam nada do que acontecia.

Dara estava maravilhado, intrigado, alegre, assim como seus amigos.

Então Miguel se levantou, juntamente com Gabriel e andaram na direção dos três anjos. As atenções de todos estavam como que divididas e eles se colocaram de pé, cada anjo pronto para o que fosse ordenado. Miguel parou diante de Ariel.

– Nobre e valente Leão do Trono, eu vos saúdo! – Disse o arcanjo e todos se admiraram, pois uma saudação, vinda de qualquer anjo, sempre significa uma missão importante.

– Meu senhor, estou à sua disposição para a glória do Eterno. – Respondeu Ariel, cada molécula de seu corpo – ou o que fosse equivalente a isso – pronta para atuar.

– Seu trabalho nessa região – continuou Miguel –, que sabemos ser amada por você, tem comprazido a todos os seus companheiros e trazido glória ao Trono. Você foi escolhido!

– O que meu senhor disser, Arcanjo.

– A uns dois quilômetros a noroeste está um grupo de pastores com seus rebanhos. Sei que você os conhece bem. É a eles que deve ser dada a notícia do que aconteceu aqui, hoje. E é você quem vai fazê-lo!

Um frêmito percorreu todo o imenso grupo. Cada anjo se regozijava com a tarefa. Gabriel, normalmente enviado para anúncios de tal magnitude, tinha um imenso sorriso no rosto, pois os anjos – assim como os eleitos de Deus – parecem ter mais alegria quando veem outros sendo honrados do que quando eles mesmos recebem a honra.

– Este humilde servo do Trono se regozija em poder cumprir a vontade do Soberano. – Respondeu Ariel, os olhos voltados para baixo e, se a luz pode chorar de alegria, faíscas piscavam de seus olhos – ou é assim que deveria ser descrito o que ocorria.

Zaniel estava quase explodindo de alegria e olhou para Dara, a fim de compartilhar o momento. Para sua surpresa, Dara não estava a seu lado! Sem entender o que qualquer anjo poderia estar fazendo num momento daqueles além de prestar atenção às palavras do Arcanjo, Zaniel olhou em volta procurando o amigo. Encontrou-o! E seu queixo caiu, seus olhos aumentaram e seus movimentos paralisaram com o que viu! As alterações em sua luminescência celestial foram tais que chamaram a atenção de Miguel. Este, vendo a atitude de Zaniel, procurou a causa da mesma, olhando para onde Zanielolhava. Não pode deixar de sorrir.

– Dara?! – Soou a voz do Arcanjo. Todos olharam na mesma direção.

Dara, em toda sua resplandecência, estava flutuando exatamente em cima do casal e da manjedoura, completamente absorto com a visão do Filho encarnado, uma criança humana, num berço improvisado e pobre. Ali ele pairava, como pronto a servir ou proteger a família. Despertado pela voz de Miguel, olhou alarmado, percebendo que todos tinham os olhos nele. Muito tempo depois alguns anjos podiam afirmar que a luminescência de Dara tinha ficado ligeiramente avermelhada…

– Dara, – prosseguiu Miguel – sua intenção é nobre, mas desnecessária. – E completou de um jeito mais descontraído: – E saia logo daí, por favor. Se algum humano pudesse ver isso acharia que há auréolas sobre as cabeças dos pais e do bebê…

Os anjos riram, descontraidamente, mas logo voltaram ao assunto pendente:

– Vá Ariel! Cumpra sua missão. Informe os pastores do grande e alegre evento ocorrido esta noite. Diga-lhes também como encontrar este lugar: a manjedoura pode ser um excelente referencial, não?

– Certamente, senhor! Estou a caminho!

– E, Ariel?

– Sim, Arcanjo.

– Será impossível não assustá-los com a glória de sua presença. Lembre-se disso.

– Pode deixar, senhor. – Dizendo isso, todos viram quando o brilho de sua presença começou a aumentar para logo desaparecer num jato ascendente de luz celestial.

Hemã! Lira Divina! – continuou Miguel.

– Aqui estou, Arcanjo!

– Sei que o coro celestial está pronto. Foi pra essa ocasião que vocês se prepararam. – E, falando para todos em redor, continuou – Vão. Sigam após Ariel. E logo que a mensagem for dada, que os homens saibam de nossa alegria pela salvação que vem do Trono. Vão! Podem ir!! Eu e Gabriel aqui ficaremos, vigiando. Depois, sigam de volta, cada um para sua missão. Mas vocês, Zaniel e Dara, juntamente com Ariel, devem retornar para este lugar, acompanhando os pastores. Ao chegarem aqui, receberão suas instruções. Agora, vão!

À ordem dada, cada um expandiu sua presença e glória. E subiram todos, desaparecendo em seguida. Miguel e Gabriel retornaram para junto da manjedoura e ali se ajoelharam, em adoração e prontidão.

Ariel não economizou ao cumprir a ordem!

Surgiu gloriosamente, como se um redemoinho de luz se formasse a cerca de dez metros de altura. Os pastores, cerca de quinze homens e rapazes, imediatamente ficaram paralisados de medo. Ariel resolveu agir com rapidez. Expandiu sua glória de modo que algo como uma parede de luz se desprendeu dele, cercando o grupo de homens e seus rebanhos. As ovelhas pareciam estar completamente tranquilas.

A voz angelical ressoou nos montes:

– Não tenham medo! Eis que eu trago para vocês boas notícias de grande alegria que será para todo o povo!!

Os pastores começaram a experimentar uma sensação difícil de explicar. A presença angelical, a luz celestial, ouvir uma boa notícia, tudo começava a produzir um efeito que ficava entre a total paralisia e vontade de voar. O anjo prosseguiu:

– Porque a vocês nasceu hoje, na cidade de Davi, – E, aqui, a voz de Ariel, bem como todo o seu ser, pareceu se transformar em luz vibrante, celestialmente ressonante, como algo que pudesse ser ouvido com a alma, mais do que com os ouvidos  – o Salvador, que é Cristo, o Senhor!

Não é possível descrever o espanto e a alegria dos pastores. Ariel continuou:

– E isto será como um sinal pra vocês: encontrarão um bebê, envolto em panos e deitado numa manjedoura!

A sincronia de Hemã, líder do coro celestial, não poderia ser mais exata. Foi Ariel terminar sua mensagem e, repentinamente, a parede de luz que cercava homens e animais, elevou-se com rapidez, subindo como um chafariz imenso e luminoso. E agora não era mais a luz impessoal que os cercava, mas havia se transformado – ou isso pareceu aos olhos dos pastores – num imenso exército de anjos. As cores, o brilho, as formas, a dança… nenhuma aurora boreal jamais chegou nem perto de imitar. Tendo a luz subido, a escuridão no solo acentuou o brilho glorioso no céu!

Mas isso é o que se via – e que exigiu dos anjos todo o esforço para que retinas humanas pudessem perceber o máximo possível.

O que se ouviu, porém, era um tipo de música com escalas impossíveis, intervalos desconcertantes, ritmo capaz de desconjuntar ou dissociar moléculas. Anos mais tarde, o próprio Dara ouviu um dos pastores mais jovens contar ao neto: “Se eu tivesse que descrever, meu filho, eu só poderia dizer que, por alguns minutos meu corpo e minha alma foram desmanchados e reorganizados várias vezes, não sei nem como nem por quanto tempo. Sei que nunca vou esquecer o som que ouvi… está sempre em minha mente. E, ao mesmo tempo, sou totalmente incapaz de reproduzi-lo.”

Por falar em Dara, ele e Zaniel, bem atrás de Ariel, cantavam com todos os outros, sentindo o peso enriquecedor e doce de eras e eras do amor, da bondade e da perfeição do Trono. Aquela atitude de misericórdia e amor insistente do Eterno para com seres tão estranhamente apáticos como os humanos, arrancavam de dentro de cada anjo o mais sublime louvor. No que foi entendido pelos humanos presentes, a letra dizia:

“Glória a Deus nas mais altas alturas,

E sobre a terra paz

Entre os homens a quem Ele quer bem!”

Então, repentinamente, o silêncio. A noite e as estrelas estavam de volta. Os pastores ficaram ainda paralisados, olhando para o alto. Alguns imaginavam se não teria sido as estrelas que cantaram…

Agora, apenas Zaniel, Dara e Ariel pairavam, invisíveis, sobre a colina e os rebanhos. Eles mesmos experimentavam uma certa dormência – se você conseguir imaginar feixes de luz flutuando lentamente no ar. Zanieldespertou:

– Ainda temos trabalho a fazer. Dara, é melhor ajuda-los, lá em baixo.

– É pra já!

– Basta uma leve… leve… eu ia dizer… expansão de sua presença…

Ariel ria abertamente. Dara não estava mais ali e Zanielfalava sozinho. Olhando para baixo os dois viram quando um novo “pastor” se juntou aos outros.

– Não se preocupe, Zan! – Ariel ainda ria. – Os homens provavelmente estão muito atordoados para notar um a mais ou a menos no grupo…

Dara, materializado, despertou o grupo de pastores:

– E então, irmãos?!

Todos piscaram algumas vezes, olharam em volta e, parecendo ignorar o estranho, começaram a dizer ao mesmo tempo “Vamos, vamos ver isso!”; “Sim, vamos até Belém!”; “O anjo falou em manjedoura. Procuremos um estábulo, uma estrebaria!”. E logo, tomando rapidamente providências quanto aos rebanhos, foram apressadamente na direção de Belém.

– Ele não vai subir?

– Acho que não, Ariel. Parece estar aproveitando cada momento.

– Bom, tecnicamente, ele está cumprindo a ordem de acompanhar os pastores.

Os dois se olharam. Logo, mais dois estranhos se juntaram ao alegre grupo que descia uma encosta na direção de Belém.

Uma hora e meia mais tarde, de volta à elevação, acima da gruta-estrebaria

– Eu também achava que a visita dos pastores cansaria ainda mais Maria.

– Pois não parecia, Dara. – Zaniel falava num tom alegre e amistoso. – Tive que impedi-lo duas vezes de bater na porta das casas para contar o que havia acontecido na colina.

– Mas os pastores pareciam tão alegres em fazer aquilo. Eu só me empolguei um pouco de mais..

– “Um pouco de mais”? – Ariel ria.

– Eu sei que você sabe que anunciar qualquer coisa a mais, sobre o Senhor, além do que foi estritamente ordenado, é tarefa dos homens. – Zaniel refletia. – Também sei que essa noite… Essa noite! Que noite!… Mas, enfim. Mesmo sendo uma noite especial, é preciso cumprir nossa missão à risca.

– Sim, Zaniel. Sei que é assim e, na verdade, isso me enche de alegria… De qualquer forma, foi muito proveitoso estar junto com eles…

– Dara, você não teve nada a ver com aquele pastor que deu duas ovelhas para José, não é?

Dara olhou constrangido para o chão. Tinha um olhar travesso, se isso é possível aos anjos.

– Eu suponho que ele iria dar as ovelhas de qualquer jeito, Zan

Zan!!! – Ariel ria alto, agora. Zaniel jogou as mãos proalto, como se desistisse de alguma coisa.

– Além disso, identifiquei um parente de José entre os pastores. Coloquei os dois em contato e, amanhã, verão um local melhor para o casal.

– Isso foi bom, muito bom, Dara! – Exclamou com sinceridade Zaniel.

Dara voltou a olhar pensativamente o horizonte.

– Mas, e então, Dara? Qual a segunda coisa que fazia você pensar em Isaías?

O rosto de Dara mudou. Uma sombra passou por seus olhos. Zaniel e Ariel perceberam quando, mesmo encoberta pela materialização, sua resplandecência variou, como que diminuindo um pouco.

– O Servo Sofredor…

Os dois anjos, ouvindo isso, também se encolheram um pouco. Dara continuou após um incômodo momento de silêncio.

Zaniel, eu disse que para haver sombra… é necessário haver luz.

– Sim. Estávamos chegando em Belém. – Zaniel também tinha o olhar fixo no horizonte.

– A sombra sempre nos incomodou. Ainda não sei ao certo o que pensar disso. Não é algo agradável, certamente.

– Você sabe que o desvio ocorrido no início do mundo traz isso consigo. Muitas vezes.

– Sim. Mas, agora… – Ele olhou para a gruta, abaixo deles. – Ele se fez tocável… Pode ser atingido. Essa sombra… Ela vem dele mesmo. Ele é a Luz. Ele vai causar a sombra… Ele vai trazê-la… sobre Si mesmo. Até porque…

– …Só Ele faz! – Completou Zaniel.

– Só Ele faz! – Repetiu Ariel.

Sombra e Luz; Justiça e Amor!

E, de repente, os três estavam invisíveis, dentro da gruta, ajoelhados e solenes. Novamente, alegria imensa. Adoração!

Maria dormia com uma das mãos pousadas sobre a borda da manjedoura. José havia sentado à entrada da gruta e cochilava um pouco. Não se sabe quanto tempo passou. Os três haviam expandido sua presença o suficiente para fazer José ficar tranquilo e dormir.

Ao final, foi Ariel quem quebrou o silêncio:

– Tenho que ir.

A essa palavra os três se levantaram e caminharam para o lado de fora da gruta-estrebaria. José dormia profundamente.

– Sei que Miguel quer que vocês permaneçam aqui, com o casal e o Filho. Então devemos nos encontrar daqui a um ano, mais ou menos.

– Um ano? Achei que você continuaria a servir por esses lados. – Disse Zaniel.

– E vou. – Ariel confirmou. – Mas daqui a um ano mais ou menos. Parece que uma das formas que a sombra pode assumir tentará algo contra o bebê.

Dara chegou a flutuar.

– Pois que tente…

– Dara! – A voz de Zaniel era profunda e compreensiva. Ele se voltou para Ariel. – Mas como sua ausência nos ajudará a prevenir isso?

– Vou trabalhar os próximos meses com Dubbiel.

– Vai para a Pérsia, então?

– Sim. Aparentemente, alguns sábios estão muito entusiasmados com as Letras de Daniel. Miguel quer garantir que eles compreendam corretamente o que estudam. – Ele ficou em silêncio por uns segundos enquanto os outros dois digeriam a informação. – Devemos ajudá-los e estimulá-los a vir conhecer o Rei. Vamos guia-los até aqui.

– E já pensou como vai fazer isso? – A pergunta veio de Dara.

– Acho que um sinal nos céus, talvez.

– Nada como desviar uma rocha celestial…

– Bem, com certeza será fácil eles seguirem um sinal assim… – Completou Ariel amistosamente.

Os três se olharam por um momento. Finalmente, despediram-se com palavras de bênção e de louvor ao Eterno. Ariel, então, simplesmente saiu de vista, deixando os outros dois sozinhos.

– Bem, Dara, o céu já está ficando alaranjado no leste. Mais um dia de trabalho para a glória do Eterno!

– Sim. E que sejam eras. Mas o trabalho que nos espera é novo. Isso – e aqui ele apontou para a família adormecida, dentro da gruta-estrebaria. – Isso nunca aconteceu antes.

– Sabe o que os humanos dizem sobre coisas assim?

– Não, Zaniel.

– “Há sempre uma primeira vez”.

– Gostei disso. – Disse Dara, pensativo. E acrescentou: – Então, venha meu nobre servidor do Trono. Vamos começar esse novo dia de uma era inédita com adoração Àquele que faz!

– Só Ele faz! – Assentiu Zaniel.

– Só Ele faz! – Repetiu Dara.

Os dois voltaram a entrar na gruta silenciosa e ainda iluminada pela fraca luz de um braseiro (o outro havia se apagado). Ajoelharam sobre um joelho e entoaram canções de louvor. Muitos anos depois Maria diria que, embora estivesse cansada demais para ninar seu bebê, tinha a impressão de que ela mesma foi embalada por um acalanto. Quando perguntavam de onde poderia vir tal música, ela respondia simplesmente:

– Parecia vir dos céus…

Por: Maurício Andrade. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Estrelas na Estrada: Um Conto de Natal.