‘1917’ e a beleza do dever

“O tempo é o inimigo”. Esse é o slogan de marketing do épico da Primeira Guerra Mundial 1917, de Sam Mendes, vencedor deste ano do Globo de Ouro de melhor drama. Desde Dunkirk, de Christopher Nolan, o tempo em si tem sido muito destacado como o inimigo mais assustador de um filme de guerra. Tanto em Dunkirk quanto em 1917, o inimigo ostensivo (o exército alemão) é praticamente invisível. Claro, vemos suas balas, bombas e bunkers; mas nós (na maioria das vezes) não vemos seus rostos. Isso ocorre porque tanto Mendes como Nolan, querem que o público se concentre em um vilão mais universal e aterrorizante: o tempo e a morte de parentes próximos.

Todos nós enfrentamos esse vilão – cuja arma é simplesmente uma presença onipresente que constantemente nos lembra que nosso tempo é limitado; nossas vidas são como vapor. No que vamos gastar essa vida preciosa? Buscaremos preservar a nós mesmos e prolongar nossa vida o máximo que pudermos? Ou nos entregaremos a uma causa maior que nós mesmos, mesmo que nos custe a vida?

Missão perigosa

Mendes baseou vagamente a trama de 1917 em torno de uma amálgama de histórias contadas a ele por seu avô, Alfred, que lutou na Batalha de Passchendaele, na Bélgica, em 1917. Mendes lembra que seu avô lhe contou uma história sobre ter que levar uma mensagem pela Terra de Ninguém – uma história que forma o núcleo da trama fictícia de 1917. Seguimos dois soldados britânicos, Aspirante Cabo Schofield (George McKay) e Aspirante Cabo Blake (Dean-Charles Chapman), enquanto eles tentam levar uma mensagem, pelo território inimigo, a outro grupo de soldados britânicos prestes a ser emboscados. Cerca de 1.600 homens – incluindo o irmão de Blake – serão perdidos se a mensagem não chegar a tempo.

A tarefa é aparentemente impossível e provavelmente uma missão suicida, e os rapazes sabem disso. Mesmo homens inferiores ainda se recusariam a ir, sabendo que provavelmente morreriam. No entanto, quando Schofield e Blake recebem ordens austeras do general (Colin Firth desempenha um papel pequeno, mas memorável), eles respondem com uma continência firme.

Esse gesto resoluto, feito com medo inconfundível nos olhos, captura a beleza do dever e a simples obediência, de dizer “sim” a algo custoso e difícil, simplesmente porque uma autoridade superior a você deu a ordem. Em um mundo de “siga seu coração”, onde “faça o que você quiser” deferência à autoridade é equivalente a blasfêmia, o momento parece radical e revigorante – e o resto do filme só se baseia nele.

Experiência imersiva

Fazia muito tempo que um filme não me imergia em seu mundo com tanta força quanto 1917. Essencialmente filmado em tomadas longas de duas horas, o filme – que apresenta a magistral cinematografia da lenda viva Roger Deakins – é um feito cinematográfico raramente tentado, embora não sem precedentes (Birdman, Rope e Russian Ark são outros exemplos de tomadas longas). É difícil imaginar toda a preparação, coreografia, cenografia e tempo necessários para fazer a ação em tempo real fluir sem problemas, mas é o que acontece. Parabéns a todos os artistas envolvidos neste empreendimento monumental.

Alguns podem chama-lo de um filme com um conceito de hiper estilização em “uma tomada única”, mas eu vejo isso como a mágica do cinema na sua melhor forma. Mendes é um diretor talentoso (veja especialmente Road to Perdition e Skyfall), e 1917 é seu melhor filme até agora – certamente o mais cinematográfico. Mas o filme não é apenas imersivo por si; serve bem à história, colocando os espectadores na ação. Nós nos contorcemos quando ratos gigantes correm pelas trincheiras à nossa frente. Nós pulamos quando balas inesperadas surgem em nosso caminho. Ficamos tensos a cada som ameaçador, seja uma barreira de artilharia ou o motor de um avião no céu. Estamos lá com Schofield e Blake enquanto eles enfrentam uma armadilha mortal após outra; é uma experiência de arrepiar.

Poucos filmes me deixaram na “beirada da poltrona” esse ano. A ação é impetuosa e implacável, muito intensificada pelo senso do “tempo se esgotando” da trama em tempo real. Às vezes, há breves instantes em que podemos recuperar o fôlego. Uma cena em particular se destaca: um soldado em uma floresta cantando a música gospel / folk “Wayfaring Stranger” para centenas de seus companheiros quando eles se preparam para liderar a primeira onda de ataques. Os rostos dos soldados estão sóbrios e estranhamente pacíficos enquanto ouvem a letra, provavelmente a última que ouvirão deste lado da eternidade:

Eu sou apenas um pobre viajante

Viajando por este mundo aqui embaixo

Não há doença, nem labuta, nem perigo

Naquela terra brilhante para a qual eu vou.

Assumindo a luta com o tempo

A música cria uma cena significativa, porque nos ajuda a entender como esses homens lidam com a proximidade da morte e por que eles, tão voluntariamente, saem das trincheiras e entram nos campos minados, cheios de arame farpado, corpos e morte. Eles têm esperança. Eles entendem que, morrendo jovens ou velhos, todos estão apenas “viajando por este mundo aqui embaixo”. A esperança de um verdadeiro lar – a “terra brilhante” além do Jordão – coloca em perspectiva a fadiga e as armadilhas da vida. Isso faz o sofrimento doloroso se tornar uma tarefa suportável.

Teria sido compreensível que Schofield e Blake questionassem as ordens que lhes foram dadas, ou até mesmo suas decisões em permanecer fora de perigo e não dentro dele. Certamente, para muitos soldados, o “porquê” da guerra nunca ficou claro. Dezenas de mortos e mutilados de formas horríveis, mas para quê? O desgaste da guerra até o “último homem em pé” provavelmente tenha parecido inútil para muitos nas trincheiras. No entanto, eles seguiram em frente, muitos até à morte.

Ainda mais do que o impressionante mérito técnico e arte de 1917, é isso que o torna tão bonito e inspirador. Quando observamos Schofield e Blake tão voluntariamente cumprindo seu dever, corajosos e, com certeza, com medo, isso nos dá coragem. Isso nos lembra, como alguns dos outros grandes filmes de 2019 também (Uma Vida Oculta, O Irlandês, 63 Up), que a vida é frágil e a morte é inevitável. Não sabemos o número de dias que teremos, nem podemos escolher quão fácil ou difícil será nosso caminho. Para citar a sabedoria de Gandalf: “Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”.

1917 captura a beleza dos homens que lutam contra o vilão do tempo, dando tudo o que podem nos poucos momentos que têm. A eternidade é o prêmio, de qualquer maneira, então por que não gastar sua vida em algo maior? É um filme sobre aproveitar o momento, reconhecer a urgência da missão e escolher obediência sacrificial ao invés do conforto da autopreservação. Dessa forma, também é um lembrete para os cristãos para parar de perder tempo lutando por coisas triviais. A missão de Deus é maior e seu chamado é urgente. Vamos sair das trincheiras e lutar pelo que importa.

Por: Brett McCracken. © The Gospel Coalition. Website: thegospelcoalition.org. Traduzido com permissão. Fonte: ‘1917’ and the Beauty of Duty.

Original: ‘1917’ e a beleza do dever. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.