O evangelho de Buster Scruggs

O que os Irmãos Coen nos ensinam sobre a esperança de nossas canções?

Assisti a A Balada de Buster Scruggs (Netflix, 2018), dos Irmãos Coen, assim que saiu, e desde então tem sido um dos meus filmes favoritos. O longa é composto de seis histórias, todas ambientadas no Velho Oeste americano da segunda metade do século 19 e com um tema em comum — a morte. Todas são excelentes, mas a que mais gosto é justamente a primeira, que dá nome ao filme. Se não me falha gravemente a memória, já a vi umas trinta vezes ou mais com meu filho de cinco anos, e é dela que quero me ocupar neste texto (um dia, quem sabe, escrevo sobre as outras).

Antes, um esclarecimento: nada sei das convicções religiosas dos autores. Todas as ilações que faço aqui são por minha conta e risco. Se forem falar de mim para os Coen, que ao menos seja para dizer-lhes que, puxa!, como eu queria aquele livro que aparece no filme! Mas sigamos.

[Spoilers daqui em diante]

Que pode haver de cristão em um fora-da-lei orgulhoso, de vocabulário rebuscado, tido por misantropo e que mata seus adversários com requintes de crueldade e táticas quase arquimedianas? À primeira vista, nada. Mas talvez estejamos enganados.

Água fresca

A história começa com o nosso carismático “Sabiá de San Saba” cantando uma música aparentemente banal, Cool Water (Água fresca). No entanto, ela nos dá uma pista interessante.

All day I’ve faced the barren waste
Without the taste of water, cool, water
Old Dan and I with throats burned dry
And souls that cry for water, cool, clear, water.
[Todo dia encaro o deserto
Sem um pingo de água, água fresca
O velho Dan e eu com as gargantas secas
E almas que clamam por água, água fresca e limpa].

Notem que não é qualquer água, mas “água fresca e limpa”. Só ela mata a sede e só ela satisfaz. De início eu achei que a música fosse de autoria do próprio Tim Blake Nelson, que também é cantor. A referência à água por si só já é suficientemente sugestiva, mas então descobri algo ainda mais interessante: a música é de 1936 (um anacronismo flagrante, possivelmente intencional), de autoria de Bob Nolan, e há uma estrofe reveladora que o nosso barítono, talvez por simples economia de roteiro, omite:

The shadows sway and seem to say
Tonight we pray for water, cool water
And way up there He’ll hear our prayer
And show us where there’s water, cool, clear, water.
[As sombras balançam e parecem dizer
Essa noite oramos por água, água fresca
E lá de cima Ele ouvirá nossa oração
E nos mostrará onde encontrar água, água fresca e limpa]

Em um dos versos, Scruggs pergunta a seu cavalo Dan se ele consegue ver uma “árvore frondosa e verdinha”, de onde “a água corre solta”. O homem bem-aventurado é como uma árvore frondosa e viçosa plantada junto a uma corrente de águas (Salmo 1). Nosso Davi texano sabe bem disso.

Vestes brancas de pecado

Mas Buster, na verdade, também procura por outra coisa além de água: um bom pôquer e um bom uísque. Mesmo quando os homens são incômodos e desagradáveis e tentam trapacear no jogo, ele não os odeia. Para ele, isso faz parte da natureza humana, “e se alguém encontra nisso motivo para ficar consternado, ele é que é um tolo por ter altas expectativas”. Headshot!

Logo ele encontra uma cantina e pede um uísque para limpar a poeira da garganta e manter a voz afinada. O dono do estabelecimento diz que uísque é ilegal naquele condado. Scruggs não engole a desculpa e pergunta o que os outros homens na cantina estão bebendo. “Uísque”, diz o dono. “Eles são bandidos”. Scruggs ri do homem e lhe diz para não se enganar com suas vestes brancas, pois também é conhecido por violar os preceitos dos homens “e mais do que algumas leis do Altíssimo”. O chefe do bando se mete na conversa e puxa a arma para Scruggs, e este o mata e a todo o resto (incluindo o dono da cantina), deixando um deles agonizando para ser comido pelos lobos e monstros-de-gila. Tudo é tão cômico e plástico que a gente, por um instante, nem se dá conta da crueldade que acaba de ocorrer.

“Se olhou, tem que jogar”: o pecado original

Um tanto decepcionado com a experiência anterior, enfim ele chega a uma cidade onde tem um saloon de respeito — ou seja, com mesas apinhadas de jogadores e uísque à vontade. É obrigado a deixar as armas na recepção, em respeito às normas da casa. Sente-se nu com isso, mas “se todos aqui estão na mesma desvantagem, então…”. Aproxima-se de uma mesa e vê um jogador desistindo do jogo e indo embora. Pergunta aos demais se pode sentar para jogar, e é avisado de que sim, desde que jogue com as cartas do outro homem. Examina o naipe e diz que prefere se abster. “Tarde demais, amigo. Você já olhou as cartas”, diz-lhe o francês à mesa. “Mas eu não apostei”, retruca Scruggs. “Se olhou, tem que jogar”, diz o homem que está sentado de cabeça baixa, de frente para Scruggs. Seu nome é Joe.

Scruggs finca o pé. Não aceita as regras do jogo. Não aceita jogar com um naipe falido. Não aceita o pecado herdado de Adão. O homem mau-humorado se levanta e aponta-lhe o revólver. Ele também não aceitava as regras, já que não deixou sua arma na recepção. Um falso cumpridor da lei, pois. Scruggs o insulta com toda a classe que lhe é peculiar, diz-lhe que nenhum homem pode obrigar outro a se envolver em atos de recreação e solicita que ele coloque sua arma no receptáculo do saloon, para que tenham uma luta justa. Joe recusa. Scruggs, então, recorre a uma “tática arquimediana” para abatê-lo com três incríveis tiros na cara. O assombro é geral. Scruggs faz um breve discurso e, para celebrar tão impressionante vitória sobre a grosseria e trapaça humanas, emenda uma canção, Surly Joe — que na verdade é uma paródia de um clássico americano de 1908, Little Joe Wrangler (ou seja, outro anacronismo).

Surly Joe, the gambler He will gamble nevermore
His days of stud and hold ’em They are done.
[Surly Joe, o jogador, ele nunca mais jogará
Seus dias de pôquer já eram.]

O irmão de Joe acusa Scruggs de atirar pelas costas (o que não foi verdade), e o desafia para um duelo. O “Sabiá” aceita. O adversário é visivelmente mais fraco. Scruggs tira proveito disso e, não sem ardil, dá-lhe um tiro em cada dedo e, com a bala que sobrou, o de misericórdia no coração.

O salvador veste preto

Enquanto se preparava para cantar mais uma canção de triunfo, eis que surge em seu horizonte um jovem e misterioso cavaleiro vestido de preto, que tirava um belo som da gaita. Era um mensageiro da morte — ou a própria morte. Scruggs fica impressionado e o elogia. O jovem fica lisonjeado e o desafia. Scruggs novamente desdenha de seu oponente, mas dessa vez descobre, experimentando de seu próprio veneno, que “não dá para ser o maioral para sempre”. Seu corpo é recolhido por dois coveiros, curiosamente um velho e um moço. AT e NT. Lei e Evangelho. Enquanto é promovido à glória, Scruggs canta sua última canção em dueto com o seu próprio algoz. Ou salvador, quem sabe.

Yipee-ki-yay
When the round-up ends
Yippee-ki-yay
And the campfire dims
Yippee-ki-yay
He shouts and he sings
When a cowboy trades his spurs for wings
Yippee-ki-yay
He shalt be saved
When a cowboy trades his spurs for wings
[Yipee-ki-yay
Quando o rodeio acaba
Yippee-ki-yay
E a fogueira apaga
Yippee-ki-yay
Ele brada e canta
Quando um caubói troca suas esporas por asas
Yippee-ki-yay
Ele então será salvo
Quando um caubói troca suas esporas por asas]

Por quem as harpas tocam?

Enquanto a música entra em fade-out, nosso carismático transgressor de vestes brancas encerra a história com uma frase lapidar que, para mim, é uma das coisas mais belas já ditas sobre a esperança cristã em um mundo caído:

Deve haver um lugar lá em cima onde os homens são honestos, e o pôquer é jogado de forma justa. Se não tivesse, de que serviriam todas as canções?

As canções estão aí. Como diz Scruggs no início da história, elas nunca deixam de tranquilizar a nossa mente no Oeste, onde as distâncias são grandes e a paisagem monótona. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça-as. E descanse em paz, meu salmista Sabiá. Um dia cantaremos juntos e balançaremos a cabeça diante de toda a maldade do mundo que ficou. Yippee-ki-yay!

Soli Deo Gloria!


Texto gentilmente cedido pelo autor. Você pode encontrar outros textos do autor neste link.

Por: Leonardo Galdino. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: O evangelho de Buster Scruggs.