As “duas” mortes de Sísera

Uma breve comparação entre narrativa e poesia bíblicas

Reparem nestes dois textos do livro de Juízes sobre a morte de Sísera, comandante do exército de Jabim, rei de Canaã, que estava em guerra contra Israel. O primeiro é narrativo; o segundo, poético (um salmo, na verdade, composto por Débora e Baraque).

Então Jael, mulher de Héber, pegou uma estaca da tenda e, lançando mão de um martelo, foi de mansinho até perto dele [de Sísera] e lhe cravou a estaca na têmpora, de modo que ela penetrou na terra. Ele estava exausto e dormia profundamente; e foi assim que morreu. (Juízes 4.21 — NAA)

Ela estendeu uma das mãos e apanhou a estaca, e, com a mão direita, pegou o martelo dos trabalhadores. Golpeou Sísera, rachou-lhe a cabeça, furou e atravessou-lhe as têmporas.
Aos pés dela ele se encurvou, caiu e ficou estirado; a seus pés se encurvou e caiu; onde se encurvou, ali caiu morto. (Juízes 5.26–27 — NAA)

No texto narrativo, temos que Sísera foi morto enquanto “dormia profundamente”. Já o segundo nos diz que, aos pés de Jael, Sísera “se encurvou, caiu e ficou estirado”, dando a entender que ele ainda estava de pé quando foi atacado. Quem está com a verdade, afinal?

Ambos os textos. Pois o texto narrativo está descrevendo o fato, o instante puro, enquanto o poético está condensando a realidade em linguagem simbólica.

Um pouco antes no capítulo 4, Débora havia dito a Baraque que “o Senhor entregará Sísera nas mãos de uma mulher” (v. 9). E de fato foi o que aconteceu: as tropas de Sísera foram derrotadas e este “fugiu a pé para a tenda de Jael, mulher de Héber, o queneu, pois havia paz entre Jabim, rei de Hazor, e a casa de Héber, o queneu” (v. 17). O que o cântico de Débora e Baraque faz em Juízes 5.27 é tão somente criar uma imagem da espiral descendente de Sísera: aquele que chegou em pé diante de Jael, encurva-se, cai e por fim termina estirado, mortinho da Silva. É a ação em imagens. É imaginação. É poesia.

Há pelo menos mais dois detalhes interessantíssimos no texto poético. O primeiro é a “taça de príncipes” onde Sísera bebeu o leite oferecido por Jael (Jz 5.25). No texto narrativo, diz apenas que ela “deu-lhe de beber” de um odre de leite (Jz 4.19). O detalhe da taça no texto poético faz toda diferença inclusive para entendermos melhor o texto narrativo, pois revela a astúcia de Jael em se mostrar amiga de Sísera dando-lhe do bom e do melhor quando ele, na verdade, havia lhe pedido apenas água.

O segundo detalhe, e este só aparece no texto poético mesmo, é a expectativa da mãe de Sísera ante a demora do filho em retornar com os seus carros da batalha (Jz 5.28). Ela e suas damas (princesas) começam a achar que Sísera estava ocupado recolhendo os despojos de Israel, que incluíam mulheres e tecidos coloridos e bordados para Sísera e até mesmo um cachecol para sua esposa (Jz 5.29). Mas Sísera — santa ironia! — estava mesmo era envolvido com o cobertor que Jael lhe colocou (Jz 4.18). Um cobertor com as cores da morte. “Duas” e a mesma morte.

Por: Leonardo Galdino. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: As “duas” mortes de Sísera.