Bill Barkley e uma fé persistente

“Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” João 3.17

Neste último 05 de abril de 2020, por volta das 21h40, recebi um telefonema que me deixou profundamente abalado.

Era a notícia do falecimento de um amigo muito querido, por quem nutria grande admiração e o qual, de muitas maneiras, foi um modelo e inspiração para mim, em minha própria trajetória ministerial. Deus chamou para junto de si seu servo amado, o missionário e fundador da Editora PES, William Wallace Barkley, conhecido carinhosamente por Bill. Ele tinha 90 anos e vinha batalhando contra um câncer agressivo. Bill Barkley deixou viúva sua esposa, Mary Barkley, com quem estava casado há 56 anos, e dois filhos, Tom e Sharon Barkely.

Willliam Wallace Barkley era um teimoso irlandês – da Irlanda do Norte, como gostava de destacar. Ele dizia que seu irmão gêmeo, que faleceu em 2018, nasceu no dia 29 de julho de 1929. Tendo estudado no London Bible College, no começo dos anos 1950, ele passou a frequentar os cultos da Westminster Chapel, que naquela altura era pastoreada pelo conhecido pastor congregacional, o “doutor”, D. Martyn Lloyd-Jones. Bill relata que estes anos de contato direto com a penetrante e profunda pregação de Lloyd-Jones exerceram uma impactante e duradoura “influência e ricas bênçãos” em sua vida.

Em 1958, ele veio para o Brasil com o propósito de servir como missionário no interior do Amazonas. Ele houvera sido influenciado por um missionário irlandês que, nos anos 1930, havia servido entre os “bravos Caiapós”, os quais, conforme ele contou, “haviam matado alguns missionários naquele tempo”. Logo que chegou ao Brasil, se pôs a servir entre as vilas ribeirinhas, subindo e descendo o rio Purus, o rio Manicoré, o Madeira, dentre muitos outros, pregando o evangelho e oferecendo vários tipos de ajuda prática.

Seus anos de serviço missionário acompanharam-no a vida inteira. Bill gostava de usar, em suas conversas, expressões do vocabulário indígena que aprendera naqueles anos. Quando o conheci, em 2002, ele logo me apelidou, dentre outras coisas, de morubixaba.

Aliás, cada conversa com Bill era um aprendizado, desde suas aventuras entres os índios até as hilárias histórias que envolviam a valentia dos irlandeses – uma de minhas favoritas era aquela em que um irlandês viu dois homens brigando na rua; ele correu na direção deles, interrompeu a briga e indagou, um tanto afoito: “cavalheiros, com licença, esta briga é particular ou posso entrar nela?”.  Mas o que mais marcava em suas conversas era a firmeza de suas convicções aliada a um tipo de sabedoria rara, que expressava sempre princípios elevados e generosidade; ele sabia ser firme ao ponto da teimosia em suas ideias, mas jamais perdia a candura e afeto no trato com quem quer que fosse.

Bill conheceu sua amada esposa Mary – a quem costumava chamar de “flor do seu jardim”, em 1964, no Brasil – ela é natural do estado do Kentucky, nos EUA, e servia como missionária no Brasil. Cinco meses depois de se conhecerem, estavam já casados. De seu enlace, nasceram seus filhos Sharon e Tom.

Bill e sua esposa, Mary Barkley.

Sua devoção a Cristo era tangível. Ele a demonstrava em tudo o que fazia. Ele amou Jesus e foi um firme e humilde propagador da sã doutrina da Palavra de Deus e da piedade cristã. Suas próprias palavras oferecem um pequeno vislumbre de seu espírito humilde e de como ele valorizava a oração e a santidade na vida cristã.  Em 2004, na ocasião em que celebrava os 50 anos de ministério de um amigo e colega de ministério, o pastor Jack Walkey, que também veio da Capela de Westminster, ele proferiu as seguintes palavras:

Tem sido meu privilégio conhecer Jack por 45 anos. Logo no início, percebi nele um humilde homem de Deus, para quem as coisas deste mundo não têm atração. Sua entrega total à vontade de Deus, evidenciada pelo viver santo e uma vida de oração, sempre foi um desafio a todos os que o conhecem. Eu tive o privilégio de morar na mesma casa que ele, bem como viajar com ele no rio Purus. Muitas vezes oramos juntos e fui grandemente enriquecido enquanto ele exaltava a majestade e a soberania de Deus, como também reconhecia a inabilidade espiritual e a nulidade do homem. Suas concepções elevadas da grandiosa condescendência de Deus, na sua graça salvadora aos pecadores culpados e condenados, fortaleceram a minha própria e débil compreensão dessas preciosas doutrinas básicas e indispensáveis.

Bill viveu essas verdades que ele admirava em seu amigo Jack e se tornou um dos grandes promotores da fé e espiritualidade da Reforma e dos Puritanos. Aliás, não seria exagero reputar seus anos de serviço como sendo um dos pilares da promoção da fé reformada no Brasil.

Uma das evidências de sua importância na promoção da fé reformada está na influência que ele exerceu na vida de outros missionários. Lá pelo ano de 1959, ele conheceu, em Manaus, o jovem missionário batista Pr. Ricardo Denham. Ele presenteou Pr. Ricardo com um livro da recém inaugurada Editora Banner of Truth. Esta edição (que guardo comigo em minha biblioteca) trazia uma coletânea de várias edições da revista de mesmo nome da editora. Foi esta publicação que despertou Pr. Ricardo para as “doutrinas da graça” e que o animou a iniciar um ministério de publicações. Alguns anos depois, em 1966, Pr. Ricardo fundou a Editora Fiel, já debaixo da convicção da fé reformada.

Bill também investiu na promoção da fé reformada por meio do livro. Em 1977, já vivendo em São Paulo, fundou uma biblioteca de obras puritanas e começou a sua própria editora, a “Publicações Evangélicas Selecionadas”. Começou assim o que seria um profícuo ministério de publicações de algumas das obras literárias evangélicas mais importantes do incipiente movimento de reforma no Brasil.

Bill publicou grandes obras de Charles Spurgeon, dos reformadores e dos puritanos do século XVI e XVII.  Aliás, Bill amava e admirava os puritanos e viu em suas obras um tipo de reverência, de temor de Deus, de amor pelo evangelho que ele desejava que todos soubessem e conhecessem, e se serviu desses livros que publicava como emissários da mensagem que ele mesmo tinha em seu coração.

Mas, de tudo quanto Bill produziu e publicou, seu maior respeito e admiração eram reservados para a obra e vida pregador que o influenciara tão fortemente quando ele era jovem: o “doutor” D. Martyn Lloyd-Jones. Debaixo do vidro da mesa de sua famosa sala na galeria da rua 24 de maio, em São Paulo, ele mantinha uma fotografia do “doutor” Lloyd-Jones, vestido de sua toga genebrina e pregando para uma multidão na Capela de Westminster (da qual ele mesmo um dia fizera parte). Bill se tornou o principal editor e publicador das obras de Lloyd-Jones em língua portuguesa e, possivelmente, em qualquer outro idioma.

Bill, eu, Pr. Gilson Santos e Sr. Antônio Puccinelli no escritório de Bill, em 2004.

Bill Fez um trabalho incansável e industrioso. Costumava trabalhar sozinho ou com uma pequena equipe de amigos que se dispunham a acompanhá-lo. Desses, destaco o Rev. Odayr Olivetti, um apoiador muito importante por meio de suas traduções, e o Sr. Antônio Puccinelli, um revisor exigente e preciosista, que serviu com fidelidade ao lado do Sr. Bill até seus 98 anos. Quando ele resolveu se aposentar, em 2006, deixou um bilhetinho na mesa de Bill e partiu. Poucas semanas depois, faleceu.

Os anos passaram e Bill seguiu firme em seu ministério, publicando e trabalhando pesado, supervisionando todas as etapas da produção de seus livros e atuando em todas as demais áreas da editora: administração, publicidade, atendimento e tudo o mais. Como editor, era meticuloso, preciso e extremamente cuidadoso na escolha das palavras de cada um de seus livros.

No início dos anos 2010, Bill já sofria um pouco com os efeitos da idade que avançava. Ele se preocupou em encontrar uma casa que abrigasse o trabalho de sua vida e, encontrou em Edmilson Bizerra, diretor da Shedd Publicações, um companheiro disposto a preservar e levar adiante a obra de sua vida.

Nesses últimos anos, Bill seguiu trabalhando como editor da PES. Mesmo com limites que a saúde e idade lhe impunham, seguia teimoso em seu trabalho. Em uma correspondência com D. Mary, ela compartilhou que, certa ocasião, mesmo hospitalizado, ele levara consigo as páginas de prova de um livro no qual trabalhava e usava uma lanterna, à noite, para empreender sua leitura e revisões.

Assim era o Bill. Ele abalou a todos que o conheceram. Nem tanto pelas balas de caramelo que trazia sempre em seu bolso, mas por seu temperamento singular, brioso, e que tinha uma pitada de humor, uma pitada de sagacidade, uma boa dose de teimosia e um coração enorme, que pulsava com o mesmo vigor de seu forte aperto de mão.

Eu, minha filha Rebeca, Bill e Mary na Conferência Fiel para Pastores 2018.

Bill partiu durante seu sono, em casa, já abatido pela enfermidade, mas ainda lúcido e atento a tudo, como lhe era característico. Em seu último dia, esteve na companhia de sua esposa e filhos, que passaram boas horas cantando hinos, lendo a Bíblia e orando com ele.

Deixa saudades e um exemplo que é difícil de ser imitado. Mas quando a gente olha mais de perto, a gente vê que ele também imitava outros gigantes, e que esta linha de piedade chega até a pessoa de Jesus.

Agradeço e louvo a Deus pela vida do velho Bill. Me alegro em pensar que um dia vamos nos encontrar novamente.

So long, my friend Bill.

Por: Tiago Santos. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Bill Barkley e uma fé persistente.