Você precisa do auxílio emergencial?

Uma reflexão sobre honestidade, consciência e a natureza do pecado

Pensamos em chamar o ensaio de “uma antropologia bíblica sobre o uso do auxílio emergencial”, mas aí decidimos facilitar ao invés de complicar. Vamos traduzir a antropologia bíblica como doutrina do pecado e tentar demonstrar como somos depravados. Precisamos diariamente buscar em Cristo e no Espírito Santo forças, pois tanto nosso querer quanto nosso efetuar o bem, vem dEle e segundo sua boa vontade (Fp. 2.13). Vamos aos fatos, quais sejam: os seiscentos reais do governo federal, melhor, do povo brasileiro pagador de impostos.

1. Motivações

Desde que a proposta de um auxílio emergencial[1] foi lançada, podemos ver motivações esdrúxulas de como utilizar a grana. São postagens absurdas e das mais variadas, desde quem revela que vai usar o dinheiro para “encher a cara” até o “crente reformado” que fala, com a boca cheia, em usar o auxílio para comprar alguns livros que estão faltando na biblioteca. Comprar livros sempre é importante, mas os compre com seu dinheiro e não com um auxílio emergencial pago por nós mesmos! Estamos falando de famílias que estão esperando o auxílio para poder fazer uma feira ou colocar arroz e feijão na mesa.

2. Desonestidade

Parece simples: olhar a lista que o governo estipulou, e, caso o cidadão atenda os requisitos, inscrever-se para receber o auxílio. Entretanto, a assistência social que parte do governo chama nossa atenção para um desdobramento delicado, quando pessoas que não precisam vão buscar esse recurso. Ou, quando alguém mente sobre seus dados, para tentar se enquadrar como pessoa apta para receber o auxílio.

Se tivéssemos um ranking, o cristão que não precisa do auxílio para a sua sobrevivência e insiste em receber o dinheiro está no primeiro lugar daquilo que é mais insano no quesito de aplicação prática do bem comum e da vida em honestidade. Caríssimos, para os cristãos o funil é mais apertado, porque é da Igreja que parte a bússola moral da sociedade. A honestidade e o consumo consciente são qualidades que integram a identidade essencial do cristianismo. Além disso, também é crucial lembrar de que os crentes são portadores de uma mente transformada (ou deveriam ser): enquanto o povo, alheio à Cristo, busca um jeitinho de se beneficiar, a Igreja possui uma mente convertida pela renovação da Fé, nos termos da carta paulina aos romanos, capítulo 6, que indica o retrato da mente transfigurada.

3. Como proceder

Criticamos tanto os grupos que defendem a existência de verdades relativas, mas não tratamos o pecado com a mesma objetividade[2] e pendemos para o popularmente conhecido jeitinho brasileiro, quando vemos a possibilidade de ganhar tirar alguma vantagem. Não avaliamos se 1) de fato precisamos; 2) se estamos na lista de requisitos; e “esquecemos” que tentar contornar as determinações do governo, burlando o preenchimento da requisição, é mentira e (pois é), mentir é pecado.

Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos? Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida.[3]

Conforme arremata Craig S. Keener, o objetivo de Paulo com essas perguntas retóricas é estabelecer uma “ligação hipotética entre a não vivência da nova vida e a ignorância da nova realidade[4]. A nova vida em Cristo nos torna capazes de avaliar se de fato precisamos de um auxílio por parte do governo – isso até mesmo se for o caso de você se enquadrar em algum dos grupos selecionados!

Pode ser o caso de você não ter um emprego formal, mas ter condições de se manter sem o auxílio do governo. Quem vai te responder isso não somos nós, mas a sua consciência. “A mente da fé, isto é, a mente que confia em Cristo, reconhece uma nova identidade na qual o passado foi perdoado e os impulsos físicos não determinam as ações da pessoa.”[5] E, aqui, voltamos para a brilhante percepção de James W. A. Smith sobre o olhar litúrgico que fornece uma conclusão essencial sobre qualquer instituição.

[…] a lente litúrgica funciona como um luminoso cultural que chama nossa atenção não apenas para as “leis da terra” ou para as decisões dos superiores tribunais de justiça, mas para os ritos que se entrelaçam em nossa vida pública – os rituais e as liturgias que inculcam em nós um mito nacional e nos habituam a uma lealdade inconsciente a uma visão particular do bem. Ao fazermos análises culturais do político através de lentes litúrgicas, ficamos atentos às maneiras pelas quais somos formados pelos ritos da democracia e do mercado, e não apenas informados por suas instituições.[6]

Nossa visão de bem vai ser formada com base naquilo que amamos. Se amamos a Cristo, pensaremos conforme aquilo que Ele nos ensina – e no quesito de providência e consumo, o primeiro versículo do capítulo 23 do livro de Salmos, totaliza o assunto de forma primorosa: o Senhor não deixa falta aos seus filhos. É com base nesse pensamento, pilar, que vamos enxergar se a assistência do governo é um sinal da providência de Deus ou um valor adquirido de forma pecaminosa. A motivação e a nossa situação, são cruciais para concluir essa questão. Que o Senhor nos ajude a enfrentar esse período de pandemia de forma equilibrada, sem retirar de quem realmente precisa. Ajudando com o que temos, mesmo que nosso apoio fique limitado a um consumo consciente dos nossos recursos.


[1] “O Auxílio Emergencial é um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus – COVID 19.” Veja mais em: < https://auxilio.caixa.gov.br/#/inicio >

[2] “Comparado porém o ato do pecado com a causa das virtudes, um só ato pode corromper várias virtudes. Pois, todo pecado mortal é contrário á caridade, raiz de todas as virtudes infusas, como tais. E portanto, um único ato de pecado mortal, excluindo a caridade, exclui consequentemente todas as virtudes infusas, enquanto virtudes.” (AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. 2. La llae. São Paulo: Ecclesia, 2017. p. 427.)

[3] Romanos 6: 1-4.

[4] KEENER, Craig S. A Mente do Espírito: A visão de Paulo sobre a mente transformada. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 112.

[5] Ibidem, p. 113.

[6] SMITH, James K. A. Aguardando o Rei: Reformando a Teologia Pública. São Paulo: Vida Nova, 2020. p. 32-33.

Por: TR Vieira. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Você precisa do auxílio emergencial?