O pensamento grego e a igreja cristã (Parte 4)

A tentação de Eva e Adão

Um dos aspectos fundamentais na tentação de Adão e Eva não foi justamente o desejo de conhecer além do que lhes seria permitido? Adão e Eva desejaram a autonomia.  A partir daqui esse pensamento vigorará em toda raça humana: a sabedoria tem como pressuposto a autonomia. Ter um conhecimento independe e independentemente de Deus. Ser iguais a Deus. Autossuficientes. Satanás lhes ofereceu uma cosmovisão concorrente onde o ponto de referência não era mais Deus, mas, o desejo pessoal deles.[1]

Algo paradoxal aconteceu aqui: O ser que eu mais admiro é justamente o que eu rejeito por meio de minha desobediência a fim de me tornar igual a Ele por via inversa. A lógica seria que eu desejasse me aproximar cada vez mais da sabedoria de Deus por meio da obediência aos seus preceitos. No entanto, mediante a tentação satânica, fui convencido de que o caminho para isso, é uma subversão de sua autoridade.

Negando a sabedoria de Deus é que conseguirei ser tão sábio quanto Ele. Temos aqui uma suspeita moral sobre a integridade do ser de Deus. Ele, começo a pensar, não é tão santo, justo e bondoso como quer nos fazer crer (Gn 3.1-5). O caminho do crescimento, pensam Adão e Eva, é o da desobediência. A suposta queda, podem imaginar, é para cima! Isso consumado, a verdade, já tão evidente, vem à tona. Instalou-se o caos na sua vida, em suas relações e na criação. (Gn 3.7-24).

As Escrituras nos mostram com insistência, que é Deus mesmo quem nos instrui (Sl 32.8-9).[2] No entanto, curiosamente, nossos primeiros Pais que tinham a presença contínua de Deus com eles, rejeitaram a instrução divina, preferindo a sabedoria que supostamente viria da árvore no Jardim do Éden. Narra Moisés: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento (שׂכל) (śâkal), tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gn 3.6).

Eles desejavam o sucesso por seus próprios meios, mas, conheceram o fracasso por serem guiados simplesmente por suas sensações que, de alguma forma, misteriosamente já cultivavam, em oposição à ordem divina.

O entendimento proposto por Deus nunca pode começar por um ato de falta de entendimento que se concretize em desobediência à sua Palavra. Antes, deve começar pela obediência aos seus preceitos. Amadurecemos no processo de aprendizado da obediência.

Em outras palavras, aprendo a obedecer obedecendo. E, enquanto obedeço vamos nos afeiçoando à instrução de Deus e experimentando os seus frutos em nossa vida.

A atitude de Adão e Eva, diferentemente, revelou falta de entendimento que se agravaria na concretização consumada deste comportamento carente de fé em Deus. Esse quadro de desobediência só seria revertido definitivamente por meio da obediência perfeita de Cristo, nosso Senhor.[3]

Aqui temos também outra lição preciosa para nós que muitas vezes tendemos a trocar a instrução de Deus por outra, estranha à sua Palavra. Esta é uma tendência normal do homem pecador. Portanto, todos nós sem exceção estamos, ainda que por vezes de modo sutil, dispostos a substituir o Criador pela criatura (Rm 1.25),[4] criando e cultuando a deuses afeitos aos nossos desejos e circunstâncias.

Retornando a questão ao viés puramente filosófico, Descartes (1596-1650), em suas Meditações, assim se expressou: “Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente”.[5]

A vida humana não é apenas para ser vivida, antes, há de forma imperativa o desejo de compreendê-la. Compreender a vida – ainda que tenhamos necessariamente que passar por vários caminhos, inclusive o teológico –, não escapa à perspectiva antropológica: conhecer o homem. O homem deseja não apenas participar do espetáculo da vida, mas, também, entender os seus processos, compreendendo a natureza de seus atores.


[1] Veja-se: R.K. Mc Gregor Wright, A Soberania Banida, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 248.

[2]Instruir-te-ei (שׂכל) (śâkal) e te ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob as minhas vistas, te darei conselho” (Sl 32.8). A palavra aqui traduzida por “instrução”, é traduzida também por “entendimento” (Gn 3.6; Sl 14.2; 53.2; 2Cr 30.22); “inteligência” (Jr 3.15); “atentar” (Sl 106.7); “prudência” (1Sm 18.5; Sl 2.10; 94.8; 111.10; Is 52.13); “êxito” (1Sm 18.14,15,30; 2Rs 18.7); “discernimento” (Sl 36.3); acudir (Sl 41.1). A palavra se refere “à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (…) Designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é a ênfase no ser bem-sucedido”. (Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478). Vejam-se: William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, p. 789-790; Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.

[3]“Ele [Jesus Cristo] tornou-se o Autor de nossa salvação, visto que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão através de um ato contrário de obediência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 137-138).

[4]20Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. 24 Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; 25pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1.20-25).

[5]R. Descartes, Meditações, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 15), 1973, III.1. p. 107. (Veja-se. também, II.9. p. 103).